A excêntrica desconhecida

Oxford, 2001

Como nunca tivera um emprego, Peri não fazia a mínima ideia de por onde começar a procurar. Estava, porém, decidida a arranjar um trabalho qualquer, apesar das exigências dos seus horários, já para nem falar do seu visto de estudante, que só lhe permitia trabalhar um número limitado de horas por semana. Por isso, foi imediatamente ter com a sua amiga exuberante que tinha uma opinião sobre tudo… até sobre questões acerca das quais nada sabia.

— Precisas de um CV — opinou Shirin — que mostre a tua experiência profissional.

— Mas eu não tenho experiência.

— Pff, inventa! Quem é que vai averiguar se trabalhaste como empregada numa pizaria qualquer em Istambul?

— Estás a dizer-me para mentir?

Shirin revirou os olhos.

— Ai, o poder da semântica! Dito assim, parece horrível. Só te estou a dizer para usares a imaginação. É como se pusesses um bocado de maquilhagem na tua biografia. Não me digas que és contra a maquilhagem!

Por um brevíssimo momento, as duas raparigas ficaram paradas, a esquadrinhar o rosto da outra: Shirin, pintada; Peri, sem um único produto cosmético. Foi Shirin quem quebrou o silêncio.

— Acho melhor dar-te uma ajuda.

No dia seguinte, de manhã cedo, Peri encontrou um envelope enfiado por baixo da sua porta. Aparentemente, Shirin redigira-lhe um CV.

Um minuto depois, já Peri estava a bater à porta da amiga. Assim que ouviu um ténue murmúrio vindo de lá de dentro, entrou de rompante, abanando a folha.

— O que é isto? Eu não fiz nenhuma destas coisas!

De Shirin, ainda enfiada na cama com a cabeça debaixo de uma almofada, ouviu uma resposta abafada:

— Bah, eu sabia! A bondade não compensa.

— Agradeço a ajuda — disse Peri. — Mas aqui diz que fui empregada num bar vanguardista de Istambul, que depois foi destruído por um incêndio. Fogo posto! E que trabalhei na biblioteca de manuscritos otomanos, especializada em bobos da corte e eunucos! Ah, e mais esta: que, nos verões, tomava conta de um polvo, num aquário privado!

Shirin, sentando-se, de pijama de cetim rosa-salmão, puxou a venda dos olhos para a testa e riu-se.

— Sou capaz de me ter entusiasmado um nadinha de mais nessa última.

— Só na última? Como é que achas que esta parvoíce me vai ajudar a arranjar um emprego a tempo parcial?

— Não vai. Mas fará de ti uma curiosidade estrangeira. Confia em mim: os britânicos cultos entusiasmam-se todos com o multiculturalismo. Mas não em demasiada, só um toquezinho de multiculturalismo. As pessoas como tu e eu podemos ser um bocado… excêntricas. Isso torna-nos uma companhia divertida. Portanto, bem podes exagerar um pouco, tirar proveito disso. Se os estrangeiros não lhes trouxerem excitação e boa comida, quem é que os quer em Inglaterra?

Peri ficou calada.

— Ouve, o que é que achas que o comum dos britânicos sabe sobre o teu país? Ou pensam que toda a gente na Turquia nada com golfinhos e come calamares, ou então que usa burcas e entoa slogans islamitas.

Peri pestanejou, quando uma onda de imagens lhe inundou a cabeça.

— O que eu estou a dizer é que ou têm uma impressão muito soalheira, de praias arenosas e hospitalidade oriental, esse tipo de merda. Ou, então, uma impressão muito negra, de fundamentalistas islâmicos, brutalidade policial e o Midnight Express. Quando querem ser queridos para ti, atiram a primeira; quando te querem confrontar, lançam a segunda. Nem as pessoas mais instruídas são imunes aos clichés. — Shirin levantou-se para lavar a cara no lavatório junto da parede. — Quer gostes quer não, o que ouves da minha boca é a verdade nua e crua. Tens de lutar contra os estereótipos.

— E é assim que se luta, falsificando informações? — perguntou Peri, olhando para o CV na sua mão.

— Essa é uma maneira, porra! — disse Shirin, passando os dedos pelos cabelos e ficando com gotas de água agarradas ao queixo.

Motivada, mas com um sentimento de culpa, Peri calcorreou as ruas com o seu CV. A princípio, procurou letreiros pendurados nas montras a dizer «Precisamos de colaboradores». Não havia nenhum. Enchendo-se de coragem, entrou numa pastelaria e falou com o gerente. Foi educadamente rejeitada. A seguir, tentou o pub onde tinha ido com os pais. O resultado foi o mesmo. O terceiro lugar que experimentou foi a sua livraria preferida, Dois Tipos de Inteligência. Os donos não ficaram surpreendidos ao ouvirem a pergunta de Peri. Estavam sempre a receber a visita de estudantes a pedir emprego a tempo parcial.

— Já trabalhaste nalgum lugar, querida? — perguntou o marido.

Peri hesitou.

— Infelizmente, não. Mas sabem que adoro livros.

A mulher sorriu.

— Hoje é o teu dia de sorte! Andávamos à procura de uma pessoa para nos ajudar nas próximas semanas. Não te podemos prometer continuar a empregar-te depois disso. Talvez de vez em quando, quando tivermos mais movimento na loja. Que me dizes?

— Perfeito! — respondeu Peri, com dificuldade em acreditar no que tinha acabado de ouvir.

Quando ia a sair da loja, viu, numa prateleira, o Rubaiyat de Omar Khayyam, o poeta adorado do seu pai. Aquela edição antiga, com uma introdução do tradutor Edward FitzGerald e recheada de ilustrações, era irresistível. Por sorte, fizeram-lhe um belo desconto.

Lá fora, começou a chuviscar. Pingos finos e mornos que a animaram. Sorriu, guardou o CV dentro do livro e consultou o relógio. Ainda tinha uma hora livre antes da aula seguinte. Pensou que era tempo suficiente para ir procurar Azur e lhe pedir o programa do seminário sobre Deus. Depois de tudo o que Shirin dissera sobre ele — já para nem falar nos sentimentos confusos que a perpassaram quando o vira no debate —, tinha um certo receio de o conhecer pessoalmente.

A pensar no professor, abriu ao acaso o livro de poesia, que era a alma e o sopro de Khayyam:

«Ah, Amor! Pudéssemos tu e eu com o Destino conspirar

Para esta triste Ordem das Coisas captar.»

Leu os versos cuidadosamente, lentamente. Seria um presságio do que estava por vir? Se assim era, de que se trataria? Se o seu pai a tivesse visto a procurar um sinal nas palavras de um poeta que vivera havia quase mil anos, não teria gostado.

Contudo, Peri não sentia que estivesse a desafiar a regra de ouro do pai, ao consultar Khayyam.

— É por isso que gosto tanto de poesia — murmurou para si própria. — Posso tocar, ver, ouvir, cheirar e saborear poemas. Todos os meus sentidos são ativados. Acredita em mim, Baba!

Estava, portanto, na hora de finalmente conhecer o professor cara a cara.