O pintassilgo-verde

Oxford, 2001

Como não sabia onde procurar o Professor Azur, Peri seguiu o seu palpite de que o conseguiria encontrar na Faculdade de Teologia. Se dava aulas sobre Deus, de certeza que era aí que ele estava.

O edifício medieval, imponente e despretensioso, era a estrutura mais antiga de Oxford construída para aulas e palestras. Ao longe, com os seus arcos com várias arquivoltas, portas de madeira esculpida e arcobotantes, mais parecia uma delicada aguarela de um artista sonhador do que o festim de arquitetura que era. Pairava no ar uma letárgica expectativa, como se as pedras vetustas, tendo-se cansado de décadas de tranquilidade, estivessem à espera de qualquer coisa… ou, pelo menos, foi essa a sensação de Peri ao aproximar-se, naquele dia.

Houve algo que a atraiu para o interior do edifício, algo elevado e espiritual nas linhas sublimes do teto abobadado do século XV. Ninguém a impediu de entrar e parecia não haver vivalma na comprida sala, iluminada pelas janelas de estilo gótico perpendicular… exceto um aluno, sentado de pernas cruzadas no chão, absorto num livro. Ao ouvir os passos de Peri, levantou a cabeça. À luz que entrava na diagonal através de uma janela alta, as feições dele ficaram desfocadas por um instante e, depois, definiram-se: a testa estreita, o cabelo ruivo, as faces sardentas. Era o estudante que barrara o acesso de Peri ao Debate sobre Deus; o estudante que atacara o Professor Azur à frente de toda a gente. Lembrava-se do nome dele, mas só porque era Troy, como a antiga cidade turca de Troia.

— Olá — disse Peri, cautelosa.

— Olá. — O sorriso que se lhe abriu no rosto foi de reconhecimento.

— Estavas no museu, no outro dia. Trabalhas lá? — perguntou Peri.

— Não, foi trabalho de voluntário. Sou um mero aluno de licenciatura… como tu.

Peri ficou à espera que ele a repreendesse por ter entrado à socapa no debate, mas ou ele não a vira, ou preferiu simplesmente não trazer o assunto à baila. Em vez disso, conversou descontraidamente, perguntando-lhe de onde era e o que estudava. Destituído de qualquer vestígio de autoridade, ele era uma pessoa acessível, inclusive afável.

— Ando à procura do Professor Azur — disse Peri, quando a conversa se esgotou. — Sabes onde fica o gabinete dele?

O rosto de Troy ficou imóvel por um instante. A voz, quando falou novamente, parecia vazia, como um balão sem ar.

— Aqui não o encontras. Atualmente, só há gabinetes administrativos neste edifício. Seja como for, porque é que andas à procura dele?

Como Peri não esperava ser interrogada, a sua voz hesitou.

— Hum… estou interessada no seminário dele.

— Não me digas que estás a pensar tirar «Deus»?

— E porque não? — perguntou Peri. — Que tem isso de mal?

— Tudo! — respondeu Troy. — O tipo é um lobo disfarçado de professor universitário!

— Não gostas dele?

— Ele expulsou-me da turma. Aliás, vou meter-lhe um processo na justiça. Vou acabar com ele em tribunal.

— Uau, não sabia que os alunos podiam fazer isso! — exclamou Peri. — Quer dizer… Lamento que tenhas tido problemas.

— Problemas? — Troy repetiu a palavra com desdém. — O Azur é o diabo em pessoa. Mefistófeles. Sabes quem é?

— Claro, do Fausto.

Troy pareceu agradavelmente surpreendido por uma rapariga turca conhecer o Fausto.

— Olha, tu pareces simpática, mas és estrangeira, não vais conseguir perceber até que ponto o homem é louco varrido. Tens de me ouvir. Fica longe do Azur!

— Bom, obrigada pelo aviso — disse Peri, sentindo esmorecer o pouco de empatia que surgira entre eles. — Mas eu decidirei por mim própria.

Troy encolheu os ombros.

— Tudo bem, a escolha é tua. Ele tem um gabinete na faculdade onde trabalha. A entrada fica em Merton Street. No pátio, procura a terceira escadaria à esquerda. Na entrada aberta, vais ver uma lista com nomes pintados a branco sobre um fundo preto.

Peri agradeceu-lhe, pensando, porém, no seu âmago que era estranho Troy ter-se mostrado tão solícito a indicar-lhe o caminho para um homem que ele considerava o diabo encarnado.

A faculdade do Professor Azur ficava numa viela empedrada, muito antiga, que partia da High Street e onde se entrava por um arco gótico cor de mel e um pátio de pedra.

Peri encontrou facilmente a escada. Escritos a giz de cada lado da parede exterior estavam os resultados da última corrida de barcos da universidade, encimados por um par de remos cruzados. No interior do pórtico, leu os nomes inseridos em ranhuras num quadro: Prof. T.J. Patterson, G.L. Spencer, Prof. M. Litzinger… e Prof. A.Z. Azur, no primeiro piso. Atravessou o corredor escuro e estreito, de lajes. À direita, ficava uma entrada, com o lintel inclinado sob o peso da antiguidade; a porta estava entreaberta, com uma folha de papel afixada.

«Professor A.Z. AZUR

Disponível: Terças-feiras 10h00-12h00 / Sextas-feiras 14h00-16h00

Teoria: Se tiverem dúvidas, consultem-me no horário de atendimento

Contrateoria: Se tiverem uma dúvida urgente fora do horário de atendimento, apareçam e logo se vê

Analisem cuidadosamente se o que se aplica ao vosso caso é a teoria ou a contrateoria.»

Como não era nem terça nem sexta, Peri percebeu que teria de se ir embora e voltar noutra altura. Todavia, a ambiguidade do bilhete deu-lhe coragem. Bateu à porta; um gesto em vão, uma vez que, pelo silêncio que reinava lá dentro, pressentiu que não estava ninguém. Bateu novamente, só para ter a certeza. Das profundezas do quarto, ouviu um som demasiado melodioso para ser humano, porventura evocativo de um besouro a trinar para atrair um parceiro ou uma borboleta a libertar-se do seu casulo. Peri pôs-se à escuta, de corpo tenso. Uma vez mais, o silêncio era absoluto.

Foi inundada por uma onda de curiosidade, aquela fome voraz de coisas inalcançáveis. Num ápice, decidiu espreitar e, depois, ir-se embora tão discretamente como chegara. Abriu a porta, muito suavemente. Rangeu.

Peri não estava nada preparada para o que se lhe deparou. A uma luz açafrão que se derramava pela janela alta de guilhotina, meio aberta, com vista sobre o belíssimo jardim inglês, havia torres de livros, apontamentos rabiscados, manuscritos e gravuras. As paredes estavam forradas de estantes, de alto a baixo. A atravessar o gabinete, suspensos entre as estantes, estavam vários cordéis coloridos — como as cordas da roupa nos bairros pobres de Istambul —, nos quais se encontravam pendurados notas e mapas com molas. À frente da porta, via-se uma secretária antiga, com pés em forma de garra, cor de cerejeira, completamente coberta de livros. De entre as páginas espreitavam papelinhos vermelhos, como línguas em miniatura espetadas numa expressão de falsa surpresa. A cadeira de braços, o sofá e a mesinha de apoio, e até o tapete escarlate tecido à mão, tinham livros e livros. Se existia um santuário dedicado à palavra escrita, era aquele gabinete.

Não foi, contudo, nem a quantidade de livros nem a desarrumação do quarto que fizeram Peri estacar subitamente. Estava um pássaro, um pintassilgo-verde de penas amarelo-esverdeadas e cauda bifurcada, preso lá dentro. Devia ter entrado pela janela e adejava de um lado para o outro, procurando de forma frenética a liberdade que provavelmente tinha acabado de perder. Peri deu uns passos hesitantes e susteve a respiração. Pondo as mãos em concha, tentou apanhar a delicada criatura com o máximo de cuidado que pôde, mas o pássaro, apavorado com a presença dela, ficou tresloucado. Descrevendo voltas e voltas, em pânico, esvoaçava de um canto para o outro e, às vezes, aproximava-se incrivelmente da janela aberta, sem nunca perceber que era a saída.

Movendo-se destramente, Peri pousou o exemplar do Rubaiyat em cima de uma pilha de livros e tentou abrir mais a janela velha e pesada. Porém, o caixilho devia estar encravado na parte superior, porque era impossível empurrar a janela mais para cima. Abanou-o com toda a força. O pássaro, aterrorizado com o barulho, passou por ela a toda a velocidade e atirou-se contra o vidro, para lá do qual, tão perto e, no entanto, tão distante, se estendia o céu infinito. Tremendo do impacto, aterrou numa prateleira suficientemente perto de Peri para que ela conseguisse ver os seus olhinhos como contas a brilharem de terror. Olhou para a graciosa criatura com compaixão, sentindo que a angústia de estar num ambiente desconhecido lhe era profundamente familiar.

Peri procurou uma ferramenta à sua volta para a ajudar a soltar o caixilho da janela. Enquanto os seus olhos varriam o seu lado esquerdo e depois o direito, detetou um cheiro que não conseguia identificar. Misturado com o odor bafiento dos livros, sentia a fragrância agridoce de toranjas numa taça de bambu, a sua cor clara e luminosa a contrastar com os tons terrosos que predominavam no gabinete. Para lá disso, havia outro odor. Não demorou a distinguir a sua origem. Num peitoril, um pau de incenso queimava num suporte de bronze em que se formara um dedo de cinza.

Encontrou um abre-cartas de metal, cuja ponta afiada era perfeita para desapertar os fechos que estavam a segurar a janela. Depois de soltar o caixilho de cada lado, empurrou uma última vez. A janela deslizou para cima até meio, mais facilmente do que pensara. Agora, só tinha de orientar o pássaro na direção da abertura que se tornara uma possibilidade maior de fuga. Despindo a camisola de lã, começou a sacudi-la no ar.

— É uma dança nova? — perguntou uma voz atrás de si.

Peri apanhou um susto tão grande que soltou uma exclamação. Quando se virou, deu de caras com o Professor Azur, parado na entrada, com um braço apoiado na moldura da porta, a observá-la com uma expressão divertida nos lábios. Ao perto, o cabelo castanho e comprido tinha reflexos dourados, como fios de ouro entrelaçados numa tapeçaria escura. Ele estava sem óculos.

— Ai, peço imensa desculpa — disse ela, de jorro, dando um passo na direção dele e recuando outro imediatamente. — Eu não queria invadir o seu gabinete.

— Então, porque é que o fez? — perguntou ele, parecendo genuinamente curioso.

— Hum… é que vi este pássaro.

— Qual pássaro?

Peri apontou para a sua esquerda, onde, um minuto antes, vira a criatura, mas agora o espaço estava vazio. Nervosa, olhou à sua volta. O pintassilgo-verde tinha desaparecido sem deixar rasto.

— Deve ter saído pela janela enquanto falávamos.

Ele ficou calado durante um minuto inteiro, de olhos focados a irradiarem uma estranha familiaridade, como se ela fosse um dos muitos livros que ele lera em tempos e estivesse a tentar lembrar-se de qual era. Por fim, disse:

— Era âmbar.

— Desculpe?

— O incenso para o qual estava a olhar — explicou. — Às quintas, é âmbar. Queimo incensos diferentes em diferentes dias. Gosta de âmbar?

O coração de Peri alvoroçou-se. Sim, conhecia o poder do âmbar.

— As mulheres romanas costumavam andar com bolas de âmbar. Há quem diga que era pela fragrância, outros para se protegerem das bruxas.

Peri arregalou os olhos. Não sabia se era uma consequência do aviso de Troy ou algo na presença de Azur, mas sentia-se nervosa.

— Não me diga que tem medo? — disse ele, apercebendo-se do desconforto dela.

— De âmbar?

— De bruxas!

— É claro que não! — respondeu Peri, muito depressa. Uma voz dentro de si disse-lhe que se ele a vira a examinar o incenso, então estava ali há tempo suficiente para ter avistado o pássaro. — Uma vez mais, professor, peço imensa desculpa por ter entrado no seu gabinete.

— Quantas vezes costuma pedir desculpa? — perguntou Azur. — Duas vezes em três minutos. Se é essa a sua média, é um pouco excessiva, não acha?

Peri corou. Ele tinha razão. Pedia desculpa com demasiada frequência: por ter chegado com uns minutos de atraso a um compromisso; por não ter segurado uma porta mais uns segundos para uma pessoa passar; por ultrapassar alguém no passeio; por roçar com o carrinho do supermercado noutro cliente… Estava constantemente a dizer «desculpe».

— Eis uma hipótese — disse Azur, sacudindo a cabeça para afastar o cabelo dos olhos. — As pessoas que pedem desculpa desnecessariamente também têm tendência a agradecer desnecessariamente.

Peri engoliu em seco.

— Talvez sejam apenas almas ansiosas a tentar sobreviver. Fazem os possíveis por acompanhar o passo dos outros, mas sabem que existe sempre uma lacuna.

— Que tipo de lacuna? — perguntou Azur.

— Como se não nos encaixássemos — disse Peri, e arrependeu-se imediatamente de o ter dito. Porque é que estava a revelar os seus sentimentos àquele homem, que não só era um desconhecido, como ainda por cima professor da universidade, duplamente distante do seu mundo?

Azur passou por Peri, sentou-se à secretária, escrevinhou um bilhete num pedaço de papel e pendurou-o na corda da roupa por cima de si.

— Portanto, está com receio de que os outros alunos pensem que não é um deles? Uma impostora a fingir que é igual a toda a gente? Acha que é… diferente? Que está possessa? Que é esquisita? Louca?

— Eu não disse isso — protestou Peri. Todos os músculos do seu corpo estavam contraídos, à espera do golpe seguinte.

Sem se aperceber da reação dela, Azur insistiu:

— Diga-me: o que é que a faz pensar que não merece estar em Oxford?

— Também não disse isso! — O seu olhar aterrou no tapete escarlate que lhe fez lembrar os tapetes na Turquia. — Aqui, as pessoas são tão inteligentes — disse ela, falando para os seus pés.

— E você não?

— Sou, mas tenho de trabalhar imenso. Os outros alunos adaptam-se facilmente à vida universitária, enquanto, para mim, é mais complicado — disse Peri, lembrando-se, só então, do motivo que a levara ali. — Na realidade, eu gostava de ver o programa do seu seminário sobre Deus. O Dr. Raymond sugeriu que eu lho pedisse diretamente a si.

— Ah, o Dr. Raymond…?

Azur parecia não ter uma opinião muito favorável do «orientador moral» dela — o seu conselheiro académico —, mas não desenvolveu o assunto. Ao invés, tirou um papel de um livro encadernado a couro, leu-o na diagonal com uma careta, amassou-o numa bola, atirou-o destramente para um cesto dos papéis e anunciou:

— Depreendo que esteja a pensar inscrever-se em Setembro. O seminário está cheio e há uma lista de espera.

Peri não estava à espera disso. A partir do instante em que lhe disseram que o seminário estava fora do seu alcance, ficou desejosa de entrar.

— No entanto — disse Azur, ao ver a desilusão dela —, há um aluno que terá de desistir. Por isso, a dada altura, talvez tenhamos uma vaga.

O rosto de Peri iluminou-se. Por debaixo do seu desejo intenso, sentiu-se um nadinha constrangida ao pensar que esse aluno a quem ele se referia provavelmente era Troy.

— Houve um rapaz…

— Sim… está cheio de raiva e agressividade — disse Azur. — Quem está cheio de raiva e agressividade não pode estudar Deus.

O silêncio prolongou-se entre eles, desenrolando-se como um pergaminho. De trás da secretária, Azur fixou os olhos em Peri.

— Diga-me porque é que quer fazer este seminário?

— Na minha família, a fé é um assunto que nos divide. O meu pai é…

— Os seus pais não estão aqui. Estou a perguntar-lhe a si.

— Bom, sempre me senti ambivalente em relação à fé… e curiosa. Preciso de clarificar os meus pensamentos.

— A curiosidade é sagrada. A incerteza é uma bênção — disse Azur, repetindo a opinião que expressara no debate. — Quanto a clarificar os seus pensamentos, sou a última pessoa em Oxford com quem devia falar nesse sentido.

Lá fora, um pássaro chilreou e Peri perguntou-se se seria o pintassilgo-verde, de regresso à natureza que, embora cheia de perigo e selvajaria, era a sua casa. Distraída, não reparou no professor a inclinar-se para a frente e a pegar no livro de poemas que ela tinha pousado.

— Aha! Que temos nós aqui? Uma edição antiga do Rubaiyat! — exclamou Azur. Antes que ela pudesse reagir, já ele tinha aberto o livro e visto o CV entre as páginas.

— Ah, isso é só… — gaguejou Peri.

Com um misto de deleite e incredulidade, o Professor Azur passou os olhos pela página que Shirin redigira.

— Bem, quem diria! Tomou conta de um polvo?

Peri ficou petrificada.

— Uma criatura misteriosa, extremamente inteligente — disse ele. — Cerca de dois terços dos neurónios residem nos tentáculos, como deve saber.

Não tendo alternativa, Peri concordou.

— Acha que os braços de um polvo têm mente própria? — perguntou Azur. Para alívio de Peri, ele não parecia estar à espera de uma resposta. — Durante décadas, as pessoas pensaram que, quanto maior fosse o cérebro de um animal, mais inteligente ele era. Associavam inteligência ao tamanho do cérebro. Que sexista! Os homens têm mais tecido cerebral do que as mulheres. E, depois, temos o magnífico polvo, destruindo mitos com os seus seis braços, que são seis e não oito, porque as pessoas se enganam e contam as patas também. E se, em vez de um grande cérebro desajeitado e centralizado, o próximo passo na evolução for uma complexa rede de cérebros múltiplos?

Um súbito arrepio de excitação perpassou Peri, quase a contragosto. Apercebeu-se de que gostava de o ouvir.

— Como o polvo se torna mais inteligente à medida que envelhece, se vivesse mais tempo, poderia ser uma das espécies mais geniais do planeta. Mas Aristóteles, o maior filósofo de todos, pensava que os polvos eram burros. O que é que isso nos diz sobre Aristóteles?

Peri teve a sensação estranhíssima de que, fosse qual fosse o rumo da conversa, já não era sobre um filósofo e um molusco e, sim, sobre Azur e ela própria.

— Que Aristóteles estava errado e talvez até fosse pouco objetivo — disse. — Como achou que não havia nada de interessante no polvo, convenceu-se de que sabia tudo o que havia para saber. E, por isso, não viu que era um poço de maravilhas.

O professor sorriu.

— Exatamente… Peri — disse, olhando para o nome dela no currículo. — Tal como o polvo de Aristóteles, Deus é um enigma que requer exploração.

— Mas é diferente. Nós não precisamos de acreditar num polvo; sabemos que existe. Enquanto, em relação a Deus, nem sequer somos capazes de concordar se existe ou não um deus.

Azur franziu o sobrolho.

— O meu seminário não tem nada que ver com a crença. O que nós procuramos é o conhecimento.

Havia firmeza na sua voz. Introspetiva e impaciente. Peri desconfiou que era aquele o tom que ele usava quando falava sozinho, sempre que trabalhava pela noite dentro ou caminhava pelas ruas, em manhãs encharcadas de orvalho.

— O seminário sobre Deus é um encontro de mentes curiosas. Vimos todos de meios muito diferentes, mas temos uma coisa em comum. Espírito de investigação! É um programa que exige muitas leituras e pesquisa. Não me interessa se é crente ou não. Entre os meus alunos, só existe um pecado: a preguiça.

Num tom cauteloso, Peri perguntou:

— E o programa…

— Ah, o sagrado programa! — troou Azur. — A Academia abomina a improvisação. Os alunos têm de ser informados do que vão ler todas as semanas, temos de os avisar com um mês de antecedência. Senão, entram em pânico!

Dito isto, abriu uma gaveta, tirou uma folha, pô-la dentro do Rubaiyat e devolveu-lhe o livro.

— Aqui tem, se precisa mesmo de saber — disse ele. Mas ficou-lhe com o CV.

— Obrigada — disse Peri, embora desconfiasse que o documento que ele lhe dera era tão pouco representativo da verdade como o CV que Shirin lhe escrevera.

— Antes de se ir embora — acrescentou Azur. — Disse que estava confusa e curiosa, e parece ter o hábito de complicar a sua vida: esses são os três C essenciais para o estudo honesto da possibilidade de Deus.

— Quer dizer a Confusão e a Curiosidade…

— E a Complicação! Há quem lhe chame Caos! — explicou Azur. — Qualquer pessoa que tenha os C necessários está numa boa situação para estudar Deus.

Sem ter a certeza se isso significava que ela entraria para a turma do seminário, mas sentindo, não obstante, que tinha de agradecer a Azur, Peri sorriu e fechou suavemente a porta do gabinete ao sair. Quando atravessou o pátio, olhou para trás na direção do edifício, tentando encontrar a janela que encurralara o pintassilgo-verde. Os seus olhos percorreram a fachada desgastada pelo tempo e fixaram-se numa janela de guilhotina, por trás da qual deslizou a sombra do professor, como um pensamento fugaz. Mas talvez fosse imaginação sua.