O beijo mortal

Oxford, 2001

Peri não foi a casa nas férias da Páscoa. Ainda não se habituara à maneira como, em Inglaterra, o ano letivo estava dividido em três períodos. As longas pausas entre eles desestabilizavam-na. Não só porque não podia viajar até ao seu país com tanta frequência como os outros alunos; não só porque não era nem extrovertida nem exploradora e, por conseguinte, não tinha propensão para investigar o meio que a rodeava; mas também porque, nessas alturas, sentia mais intensamente o abismo que a separava dos outros. Quando toda a gente andava a escrever ensaios e a assistir a aulas, ela conseguia facilmente acompanhar a carneirada; mas não sabia o que fazer do seu tempo quando supostamente deveria relaxar e divertir-se.

Apesar disso, nessa mesma semana, recebeu um convite inesperado. Mona, que também ficara em Oxford nas férias, correndo de uma atividade social para outra, como era seu hábito, recebera a visita de duas primas dos Estados Unidos e, juntas, tencionavam viajar para o País de Gales, onde tinham arrendado uma casa de campo.

— Porque é que não vens connosco? — perguntou Mona. — Vais gostar. Montes de ar puro.

Enchendo a mala com mais livros — incluindo dois do Professor Azur — do que conseguiria ler numa semana, Peri aceitou o convite. Deduziu que Mona andaria distraída, a maior parte do tempo, com as primas. Peri estaria acompanhada e sozinha, ao mesmo tempo, o que lhe pareceu suportável.

Ficou surpreendida a primeira vez que viu placas em galês e em inglês. Até aí, nunca lhe passara pela cabeça que pudesse haver mais do que uma língua oficial no mesmo país. Na Turquia, nunca vira um letreiro público em turco e em curdo. Era tão grande o seu espanto que, sempre que via uma dessas placas, tinha de parar para a fotografar.

— És louca — disse Mona, rindo-se. — A paisagem é incrível e tu fotografas placas de sinalização?

As vistas eram, de facto, esplendorosas. Ovelhas com os cordeirinhos recém-nascidos a pastar nos campos cheios de cor; tapetes de verde salpicados de urze roxa, jacintos-dos-bosques e agrião-dos-prados. A casa de campo que arrendaram era uma casinha com as vigas de madeira expostas, caiada, empoleirada na vertente oeste de um vale. De manhã, era banhada por um sol maravilhoso; à tarde, por uma sombra profunda de tranquilidade. Ao longe, o rio Wye corria como um sinuoso fio de prata, serpeando por entre as colinas.

Peri adorou a casa: o fogão de ferro forjado, os tetos baixos, os toros de lenha empilhados lá fora, o piso de lajes do rés do chão, até o cheiro dos lençóis que estavam sempre gelados quando se enfiava na cama. Partilhou o quarto com Mona e as primas instalaram-se no outro. Embora a aldeia mais próxima ficasse a um quilómetro e meio, havia tanto que fazer durante o dia que ela pouco tempo teve para ler. Peri, que sempre fora uma rapariga urbana, observou a natureza com prazer e curiosidade, descobrindo as maravilhas que se escondiam nas pequeninas coisas, e sentiu que era só isso que importava: essas pequeninas coisas. Sempre assolada por pensamentos negativos, imaginou que ocorrera uma catástrofe — uma guerra nuclear — e elas eram as únicas sobreviventes, longe da civilização. Sabia que a mãe ficaria chocada se visse a filha ali, quatro raparigas no meio do nada.

Uma noite, da sua cama, viu Mona a rezar a um canto, com o rosto virado para Meca. Não tinham conversado absolutamente nada sobre religião, evitando ambas o assunto. Se Shirin ali estivesse com elas, de certeza que o teria trazido à baila.

Quando Mona apagou a luz, um silêncio súbito desceu sobre o quarto. Peri virou-se e revirou-se na cama.

— Quando eu era miúda, uma abelha picou-me no lábio — murmurou devagar, como se estivesse a limpar o pó a essa recordação. — Fiquei com a boca tão inchada que parecia um balão de água. O meu pai disse que a abelha estava loucamente apaixonada… por mim. Quis beijar-me. Sempre me perguntei se ela saberia que ia morrer, assim que usasse o ferrão. É estranho, não é?, se elas sabem e, mesmo assim, o fazem. Autodestruição.

Mona virou-se de lado. Ao luar que entrava pela janela, a sua silhueta parecia uma escultura.

— Só os seres humanos têm consciência. É a ordem divina. É por isso que Alá nos responsabiliza, a nós, humanos, pelo nosso comportamento.

— Pois, mas os animais não querem morrer. Têm um instinto de sobrevivência. E, no entanto, vão e picam. Devem saber que se estão a suicidar. Uma pessoa olha para a natureza e pensa: Uau, que bonito e doce, quando, na realidade, é horrivelmente cruel.

Mona suspirou.

— Tu não geres o mundo, não te esqueças disso. Ele é que está encarregado de tudo e não tu. Tem fé.

Como é que Peri podia confiar num sistema em que as abelhas estavam condenadas a morrer, prematuramente, se se apaixonassem? E se aquela era a ordem divina que as pessoas tanto louvavam, como é que a podiam considerar justa e sagrada? Puxou o edredão para o queixo, sentindo frio.

Nessa noite, Peri gritou, a dormir, e murmurou palavras em turco que pareciam o zumbido de mil abelhas a tentarem libertar-se.

As primas, que acordaram com o barulho, riram-se no quarto ao lado. Mona, estupefacta, sentou-se na cama. Rezou para que os demónios, fossem eles quais fossem, que atormentavam a sua amiga, desaparecessem para bem longe. No dia seguinte de manhã, regressaram a Oxford. Sempre que Mona e Peri falavam sobre a viagem ao País de Gales, faziam-no com um sorriso alegre, embora pressentissem, cada uma à sua maneira, que, subjacente aos momentos especiais, havia algo mais negro…