A página vazia

Istambul, verão de 2001

Terminado, finalmente, o primeiro ano em Oxford, Peri passou as férias em Istambul. De vez em quando, a mãe mencionava um ou outro jovem en passant, usando o mesmo conjunto de adjetivos. Para Selma, os estudos de Peri eram, não propriamente um despertar intelectual ou o precursor de uma carreira promissora e, sim, um breve interlúdio antes de ela se casar. Fora a sete santuários, só no mês anterior, para acender velas, atar faixas de seda e fazer desejos de que a filha arranjasse rapidamente um bom casamento.

— Enquanto estavas fora, mudaram-se para cá novos vizinhos. Uma família como deve ser — anunciou Selma, enquanto descascava uma pilha de favas para o jantar. — Têm um filho. Um rapaz muito esperto, bonito, honrado…

— Quer dizer que me arranjou um marido adequado — murmurou Peri. Enrolou uma madeixa de cabelo no dedo, puxando-a desajeitadamente. Reparou que era muito mais curta do que o resto e teve uma súbita e sinistra sensação de que a sua mãe lhe cortara uma madeixa, enquanto dormia. A ideia de o seu cabelo se encontrar nesse momento num desses santuários, enterrado entre as oferendas de Selma, deixou-a ligeiramente enjoada.

— Deixa a rapariga em paz, mulher — disse Mensur, da sua cadeira. — Estás a baralhá-la. Ela precisa de se concentrar nos estudos. Queremos um diploma e não um marido.

— Este rapaz tem um diploma — protestou Selma. — Andou na universidade. Podem ficar noivos agora e casar-se depois de ela acabar o curso. Que tem ela a perder?

— Só a minha liberdade, a minha juventude e a minha mente — retorquiu Peri.

— Pareces o teu pai a falar — disse Selma, e voltou para as suas favas, como se tivesse provado o seu argumento.

Assunto encerrado… mas só temporariamente.

No final do verão, num dia balsâmico em Istambul, Peri foi às compras. Uma gabardina, um novo par de sapatilhas, uma mochila… tinha de os comprar antes de voltar para Oxford. Quando saiu do autocarro, perto da Praça Taksim, reparou num ajuntamento de pessoas. Estavam paradas no passeio, em frente de um café frequentado por estudantes, especados a olhar pelas janelas abertas para o televisor ligado lá dentro, em altos berros. Nos seus contornos dançavam sombras, pintalgadas por uma luz cor de alperce nos pontos onde o Sol incidia nos seus perfis.

Um homem de ombros largos levara as mãos à testa, de sobrancelhas franzidas. Uma rapariga de rabo de cavalo parecia chocada, com o corpo hirto. As suas expressões preocuparam Peri. Abriu caminho por entre o grupo, curiosa.

Foi então que viu o que se passava no ecrã: um avião a espetar-se contra um arranha-céus, com um fundo azul tão intenso que quase lhe feria os olhos. As imagens estavam a ser transmitidas repetidamente, como que em câmara lenta, embora parecessem cada vez menos reais. Espirais de fumo emanavam do edifício. Folhas de papel vogavam no vento. Como que catapultado, um objeto precipitava-se para diante, depois outro… Peri soltou uma exclamação, apercebendo-se de que não eram objetos, eram pessoas lançando-se para a morte.

— Americanos… — murmurou o homem ao seu lado. — É o que acontece quando as pessoas se metem onde não são chamadas.

— Eles estavam convencidos de que mandavam no mundo, não estavam? — comentou uma mulher, e abanou a cabeça, fazendo balouçar as argolas dependuradas das orelhas. — Agora sabem que são mortais… como todos nós.

Os olhos de Peri cruzaram-se com os da rapariga de rabo de cavalo. Por um instante, pareceu que só as duas sentiam a mágoa, o choque, o terror. Mas a rapariga apressou-se a desviar o olhar, oferecendo-lhe pouca camaradagem. Perturbada com as conversas à sua volta, Peri afastou-se, com a cabeça a rebentar de perguntas. Para onde quer que se virasse, via pessoas a procurar teorias da conspiração para se alimentarem, como abelhas zumbindo à caça de néctar.

«Tenho de telefonar à Shirin», pensou. Precisando de ouvir a voz confiante da sua amiga, ligou-lhe de uma cabina telefónica. Felizmente, ela atendeu logo.

— Olá, Peri. Que mundo fodido, hã! Parece uma praga vivermos em tempos tão interessantes.

— É horrível! — exclamou Peri. — Nem sei o que pensar.

— Inocentes massacrados — interrompeu Shirin, exaltando-se. — Porquê? Porque uns quantos sacanas tarados acreditam que vão para o paraíso se matarem em nome de Deus. E isto vai piorar, verás. Agora, todos os muçulmanos vão ser vilipendiados. Mais inocentes vão sofrer ataques de todos os lados.

Peri reparou que alguém colara uma bola de pastilha elástica por baixo da cabina telefónica: um pequeno ato de malícia, mas não deixava de o ser.

— Que horror! Que barbaridade! E é tão assustador. Como é que uma coisa destas pôde acontecer?

— Bom, de certeza que é isso que toda a gente vai andar a discutir nos próximos tempos. Durante meses, talvez até anos. Jornalistas, especialistas, académicos. Mas, na realidade, não há nada para discutir. A religião alimenta a intolerância e isso leva ao ódio que, por sua vez, leva à violência. Ponto final.

— Mas não é injusto pensar assim? — disse Peri. — Há tantas pessoas religiosas que seriam incapazes de fazer mal a quem quer que seja. Não foi a religião que fez isto. Foi a maldade em estado puro.

— Sabes que mais, Ratito? Não vou discutir contigo. Desta vez, estou tão confusa como tu. Preciso de falar com o Azur, senão enlouqueço.

Peri sentiu um choque dentro de si.

— Vais ter com ele? Mas o ano letivo ainda não começou.

— E daí? Vou a Oxford amanhã. Eu sei que ele está lá. Muda o teu voo e vem comigo.

— Vou tentar — disse Peri. Achou escusado explicar que, mesmo que conseguisse arranjar um bilhete em cima da hora, não teria dinheiro para o pagar.

Em casa, Peri encontrou os pais tão perdidos como ela, vendo as mesmas imagens na televisão que estavam a ser transmitidas vezes sem conta.

— Os fanáticos estão a começar a controlar o mundo — comentou Mensur.

Começara a beber mais cedo do que habitualmente e, pelo ar, já tinha bebido bastante. Pela primeira vez, pareceu hesitante em relação à ida da filha para Oxford.

— Talvez não te devêssemos ter mandado estudar para fora; já nenhum lugar é seguro. Nunca pensei dizer isto na vida, mas talvez agora o Ocidente se tenha tornado mais perigoso do que o Oriente.

— Oriente, Ocidente, que diferença é que isso faz? Ninguém pode escapar ao seu kismet… — ripostou Selma. — Se Alá o escreveu na tua testa com a Sua tinta invisível, pouco importa se estás aqui ou na China. A morte virá à tua procura.

Perante isto, Mensur pegou na esferográfica que usava para fazer as palavras cruzadas e escreveu, numa linha irregular na testa, o número 100.

— O que é que estás a fazer? — perguntou Selma.

— A mudar o Destino! Vou viver até aos cem anos.

Peri não ficou por perto para ouvir a resposta da mãe. Não tinha paciência para as discussões dos pais. Tomada por um profundo sentimento de solidão, foi para o quarto e pegou no seu diário sobre Deus. Por mais que tentasse escrever umas frases sensatas, não foi capaz. Não nesse dia. Tinha tantas perguntas na cabeça sobre religião, fé e Deus… o tipo de Deus que permitia que acontecessem atrocidades e, ainda assim, esperava que Lhe obedecessem. Fixou a página, engolida pelo seu vazio. Perguntou-se o que diria Azur a Shirin quando se reunissem no gabinete. Adorava poder entrar secretamente naquela sala, como o pintassilgo-verde, e escutar a conversa deles. Também ela tinha perguntas para fazer ao professor. Talvez Shirin tivesse razão em insistir; Peri precisava de um seminário sobre Deus, não propriamente para descobrir novas verdades sobre um ser supremo, mas para deslindar as incertezas que fervilhavam dentro de si.

Depois, fez uma coisa que nunca contaria a ninguém: rezou por todas as pessoas mortas nas Torres Gémeas. Rezou pelas suas famílias e entes queridos. E, antes de terminar a prece, acrescentou um pequeno pedido a Deus: ter vaga no seminário de Azur, para poder aprofundar os seus conhecimentos sobre Ele e, se fosse possível, dar algum sentido ao caos que reinava dentro e fora da sua mente.