O círculo

Oxford, 2001

Na primeira semana do novo ano letivo, no início de uma tarde, com o céu plácido como o lago de uma aldeia, Peri preparou-se para a primeira sessão de «Entrar na Mente de Deus / no Deus da Mente». Uns dias antes, encontrara um envelope para si na portaria da residência universitária e o remetente era nada mais nada menos do que o Professor Azur. O bilhete fora rabiscado claramente à pressa num cartão, numa diagonal ligeiramente a descer:

«Cara Peri Nalbantoğlu,

Se ainda estiver interessada no meu seminário, começa na quinta-feira às 14h00 em ponto! Traga âmbar, se precisar… mas nada de desculpas.

O polvo aguarda-a.

A.Z. Azur»

Desde que recebera o bilhete, ainda não tivera tempo, entre as aulas de grupo e o emprego na livraria, para refletir sobre o que teria pela frente. A caminho do seminário, porém, com um caderno de apontamentos apertado de encontro ao peito, ficou surpreendida ao perceber quão ansiosa estava.

Ao entrar na sala, Peri contou mentalmente dez alunos: cinco rapazes, cinco raparigas. Entre eles, para seu espanto, estava Mona, que a cumprimentou com igual surpresa.

Peri observou os outros alunos, reparando nos sorrisos constrangidos e na maneira como estavam sentados a uma distância educada uns dos outros, e ficou aliviada ao ver que não era a única que parecia nervosa. Alguns dos alunos estavam absortos nos seus pensamentos, enquanto outros conversavam baixinho ou liam a descrição do seminário, provavelmente pela quinquagésima vez. Um rapaz, com a cabeça apoiada no bloco de notas, parecia dormir.

Peri empoleirou-se numa cadeira junto da janela e contemplou um carvalho de grande envergadura, com as folhas em decadência a brilharem em tons de rubi e dourado. Perguntou-se se teria tempo para ir à casa de banho, mas o medo de voltar já depois de o seminário ter começado manteve-a colada ao assento. Lá fora, o dia enevoara-se e, embora ainda fosse cedo, parecia o final da tarde.

Às duas horas em ponto, a porta abriu-se e o Professor Azur entrou na sala a passos largos, carregando uma pilha de pastas, uma grande caixa de lápis de cor e o que parecia ser uma ampulheta. Vestia um casaco de bombazina azul-escuro com remendos de cabedal nos cotovelos. Embora tivesse a camisa branca imaculadamente passada a ferro, a gravata não tinha o nó feito, como se lhe houvesse faltado a paciência para o fazer, e o cabelo vinha todo desgrenhado. Ou atravessara um vendaval ou, então, passara os dedos pelo cabelo ínfimas vezes.

Muito depressa, despejou tudo na secretária e pousou a ampulheta num apoio para livros, virando-a imediatamente. Grãos de areia escorreram do bolbo superior para o inferior, como pequeninos peregrinos numa viagem sagrada. Ele postou-se diante do quadro branco, alto e esguio, e, num tom enérgico que pôs fim à letargia na sala, disse:

— Olá a todos! Shalom Aleichem! Salamun Alaykum! Que a paz esteja convosco! Namaste! Jai Jinendra! Sat Nam! Sat Sri Akaal! As minhas saudações não obedecem a nenhuma ordem de preferência ou precedência, caso estejam na dúvida.

Aloha! — disse alguém, muito alto.

Outros alunos acrescentaram uma miríade de saudações, uma confusão de vozes e risos.

— Ótimo! — exclamou Azur, esfregando as mãos. — Vejo que estão cheios de autoconfiança, o que é sempre um sinal promissor… ou uma receita para o desastre. Veremos qual dos dois é.

Por detrás dos óculos pretos de tartaruga, os olhos dele brilhavam como contas de vidro polido pelo mar. O seu tom de voz elevava-se em ondas de entusiasmo, como um explorador que regressa de terras longínquas e partilha as suas aventuras com os amigos. Felicitou toda a gente por ter tido curiosidade e garra para se inscrever no seminário e, com uma piscadela de olho, acrescentou que esperava que também tivessem forças para ir até ao fim. Pelo à-vontade e rapidez com que falava, era difícil, se não mesmo impossível, adivinhar quando estava a brincar e quando falava a sério.

— Como já devem ter reparado, vocês são onze. Dez teria sido demasiado perfeito e a perfeição é um tédio — disse Azur. Olhou em redor e estalou a língua. — Já vi que temos muito trabalho para fazer… Afastaram as cadeiras umas das outras como se tivessem medo de ser contaminados pelo vírus da pneumonia. Portanto, minhas senhoras e meus senhores, importam-se de se levantar?

Surpreendidos, divertidos, os alunos obedeceram.

— Tão obedientes! A virtude suprema aos olhos do Senhor, segundo dizem. Agora, podem colocar as vossas cadeiras a formar um círculo? Sendo o círculo a forma mais adequada para se falar sobre Deus.

Diferentes assuntos requeriam diferentes disposições de cadeiras, explicou Azur. Para discutir política, cadeiras dispersas e amorfas; para sociologia, um triângulo bem feito; para estatística, um retângulo; e para relações internacionais, um paralelogramo. Mas Deus tinha de ser discutido num círculo, com toda a gente na circunferência equidistante do centro, olhando para os olhos uns dos outros.

— A partir de agora, quando eu entrar na sala todas as semanas, espero encontrar-vos sentados num círculo.

Demoraram uns minutos, e com um certo arranhar e raspar de cadeiras, a cumprir a tarefa. Quando acabaram, a forma que tinham criado mais parecia um limão espremido do que propriamente um círculo. O Professor Azur, embora não estivesse completamente satisfeito, agradeceu-lhes o esforço. De seguida, pediu-lhes para se apresentarem em poucas frases, referindo o seu background e, em especial, porque é que estavam interessados em Deus, «quando há seguramente coisas muito mais divertidas para os jovens fazerem».

O primeiro a falar foi Mona. Disse que, depois da tragédia do 11 de Setembro, estava extremamente preocupada com a perceção do Islão no Ocidente. Escolhendo as palavras com cuidado, disse que se orgulhava de ser uma jovem muçulmana, amava a sua fé do fundo do coração, mas sentia-se frustrada com a quantidade de preconceitos com que tinha de lidar quase todos os dias.

— As pessoas que não sabem nada sobre o Islão fazem generalizações grosseiras sobre a minha religião, o meu Profeta, a minha fé. — Rapidamente, acrescentou: — E sobre o meu lenço na cabeça. — Disse que estava ali para participar em discussões honestas sobre a natureza do Todo-Poderoso, uma vez que todos eram criados por Ele e criados de maneira diferente por um motivo. — Respeito a diversidade, mas também espero que, em troca, me respeitem.

O rapaz ao lado de Mona, quando chegou a sua vez de falar, endireitou as costas e pigarreou. Chamava-se Ed. Como vinha do ramo das ciências, abordava Deus «com cautela objetiva e neutralidade intelectual». Acreditava que a ciência e a fé se podiam casar, possivelmente, mas era preciso filtrar as partes irracionais da religião, que eram muitas.

— O meu pai é judeu, a minha mãe é protestante, ambos não praticantes — acrescentou. — Suponho que, como a Mona, mas de uma maneira diferente, estou interessado na identidade e na fé na era moderna… embora, sinceramente, Deus nunca tenha sido um problema para mim.

— Então, porque é que aqui estás? — perguntou um rapaz de cabelo cor de areia, musculoso e com umas marcas de bexigas, rodopiando um lápis entre os dedos. — Pensei que toda a gente nesta turma tivesse problemas com Deus!

Peri reparou que Ed levantou os olhos para o Professor Azur, que lhe fez um aceno de cabeça quase impercetível. Houve qualquer coisa entre eles, uma mensagem que ela não conseguiu decifrar.

Azur virou-se para o rapaz de cabelo cor de areia.

— Normalmente, espero que os alunos comentem as palavras uns dos outros, e incentivo isso, mas não nesta fase tão inicial. Somos pintainhos a eclodir. Primeiro, vamos tirar a cabeça de dentro da casca.

O próximo a falar foi Róisín, uma rapariga bonita com um nítido sotaque irlandês. Tinha uns grandes olhos castanhos e o cabelo liso e escuro e, quando começou a falar, uma madeixa ficou-lhe momentaneamente presa no lábio. Disse que tinha sido criada como católica e que ia à missa todas as semanas. Tinha a sorte de estar rodeada de pessoas maravilhosas na Associação Católica de Oxford, mas queria alargar a sua perspetiva.

— Pensei que seria interessante fazer este seminário. Só para ver como Deus é discutido fora da minha zona de conforto. Por isso… — Deixou a frase em suspenso, como se confiasse nos outros para a terminarem.

— Acho que agora sou eu — lançou o rapaz de cabelo cor de areia, rodopiando o lápis mais depressa. — Chamo-me Kevin, sou de Fresno, na Califórnia, e vim para cá estudar com uma bolsa Rhodes.

Crispando o rosto largo, Kevin argumentou que Ernest Hemingway, que tinha razão sobre tudo, acertara em cheio quando dissera que todas as pessoas que pensam eram ateias. Ele próprio era um ateu convicto.

— Não acredito em nenhuma destas tretas e é por isso que aqui estou. Quero participar em debates construtivos sobre a ciência, a evolução e aquilo a que vocês teimam em chamar Deus. Tenho a certeza de que rapidamente vos vou irritar a todos.

Alguém fungou; de troça ou de pena, era impossível adivinhar.

— Olá a todos. Chamo-me Avi. Sou membro da Associação Chabad de Oxford. Também trabalho a tempo parcial na Biblioteca Judaica Samson, que é a maior biblioteca judaica da zona. Muitos de vocês provavelmente não sabem, mas Oxford tem um importante património judeu.

Avi declarou que havia suficiente ódio no mundo para catapultar a humanidade para a Terceira Guerra Mundial. O fantasma da História assombrava o momento presente. Disse que os seres humanos eram capazes de horríveis atrocidades, como as do Holocausto e a destruição das Torres Gémeas. A necessidade de acalentar um verdadeiro diálogo entre as religiões era urgente. O Medo de Deus era o argumento mais forte para dissuadir a faceta violenta do Homo sapiens. Na era moderna, Deus era mais necessário do que nunca.

Avi parecia disposto a continuar, mas a rapariga morena ao lado dele interrompeu-o, enérgica e irrequieta. Chamava-se Sujatha. Falou sobre as diferenças entre a filosofia do Oriente e a sua contraparte do Ocidente, «ou do Médio Oriente, melhor dizendo, porque todas as religiões abraâmicas provêm da mesma região. É preciso alguém de fora para reparar até que ponto são parecidas».

Sujatha disse, enquanto britânica de origem indiana, que o seu lema na vida era: «A tua ideia de ti cria a tua realidade.» Aos seus olhos, Deus não tinha atributos. Não queria ofender ninguém, mas achava o Deus abraâmico demasiado severo, crítico, distraído.

— Eu digo: tudo é Deus. Enquanto vocês dizem: tudo é de Deus. Essa preposiçãozinha faz uma diferença enorme.

Simultaneamente dócil e rebelde, Sujatha concluiu dizendo que estava desejosa de discutir a fundo essas disparidades filosóficas.

A cada pessoa que falava, Peri escorregava cada vez mais na cadeira, encolhendo a olhos vistos. Só lhe apetecia desaparecer por completo. Começou a sentir uma suspeita persistente de que o Professor Azur escolhera os alunos a dedo, não tanto pelo mérito do seu currículo académico, mas pelas suas histórias e ambições pessoais. Todos os alunos provinham de contextos diferentes e havia claras diferenças de opinião entre eles que poderiam facilmente entrar em confronto. Talvez fosse isso o que Azur pretendia: um conflito… ou muitos. Talvez estivesse a fazer experiências com os alunos sem eles terem consciência disso, como se fossem uma ninhada de ratos, correndo e arranhando as paredes do seu laboratório mental. Se assim era, o que poderia ele estar a testar…? Uma nova ideia de Deus?

Havia mais uma coisa que incomodava Peri. Se todas as pessoas à sua volta tinham sido selecionadas para formarem uma Babel em miniatura, porque é que ela fora escolhida? Que poderia Azur saber sobre si, tendo-lhe ela contado tão pouco? Quanto mais voltas dava à cabeça, mais insegura se sentia. As palavras do Dr. Raymond ecoaram-lhe nos ouvidos: «O método de ensino dele é pouco ortodoxo. Não cai bem a toda a gente. É um seminário que divide os alunos. Alguns gostam muito; outros ficam profundamente infelizes.»

— Olá, chamo-me Kimber — apresentou-se uma rapariga de cabelo tão encaracolado que, sempre que mexia a cabeça, uns quantos caracóis saltitavam para cima e para baixo. — Tenho uma resposta longa e uma resposta curta.

— Comece pela longa — disse o Professor Azur.

Kimber explicou que o pai era padre da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Eram mórmones. Toda a sua família e amigos eram mórmones. Disse que estava interessada naquele seminário, porque Deus dava sentido à sua vida e queria expandir o seu conhecimento acerca Dele. Acrescentou que, atualmente, os jovens só se interessavam por namorar, ou estudar para os exames, ou arranjar um emprego que lhes desse tanto dinheiro que nem saberiam o que fazer dele. Mas ela acreditava que a vida não podia ser só isso.

— Cada um de nós nasceu com um objetivo específico na terra. Eu ainda ando à procura do meu.

— E a resposta curta? — perguntou Azur.

Kimber riu-se.

— Fiz uma aposta com uma amiga. Ela disse que o professor é do pior que há a corrigir trabalhos escritos. Eu sou aluna de dezoitos e dezanoves. Nunca chumbei a uma única disciplina desde que entrei para a escola. Por isso, aceitei o desafio.

Um sorriso sereno perpassou os lábios de Azur.

— «A verdade é uma coisa tão rara, é delicioso dizê-la.»

Peri, com a boca meio tapada pela mão, não pôde deixar de murmurar para si própria:

— Emily Dickinson.

— Avancemos. Próximo! — instruiu o professor.

Adam. Nariz arredondado, covinha no queixo e sobrancelhas altas que lhe davam uma expressão de quem está constantemente surpreendido com o mundo. Disse que culturalmente era anglicano, mas não ia à igreja. Não era necessário ir à igreja, acrescentou, porque acreditava que Deus era Amor e Deus amava-o como ele era.

— Acredito no princípio universal de «Vive, Ama, Aprende». Tudo com maiúsculas. E é só.

— É a minha vez? — perguntou a rapariga ao lado dele. — Chamo-me Elizabeth. Nascida e criada em Oxfordshire, praticamente nunca saí daqui. A minha família vem de uma orgulhosa linhagem Quaker. Eu não tenho nenhum problema com Deus, mas tenho um problema com o facto de ser um Deus masculino.

Elizabeth explicou que os seres humanos tinham perdido o contacto com a natureza e com a Terra enquanto Deusa. Ao longo da História, a feminilidade tinha sido suprimida. O preço eram as guerras, o derramamento de sangue e a violência. Disse que se interessava por religiões antigas, xamanismo, Wicca, budismo tibetano.

— Tudo o que nos ajude a restabelecer a ligação com a Mãe Terra. — Urgiu toda a gente a parar de pensar em Deus como um Ele e a começar a treinar dizer Ela.

Os únicos alunos que ainda não tinham falado eram Peri e o rapaz ao seu lado. Peri fez um gesto a indicar-lhe para se apresentar primeiro e ele imitou-a. Ela cedeu.

— Muito bem, chamo-me Peri…

— E a citação era de Emily Dickinson, bravo — interrompeu Azur.

Peri percebeu que estava a corar. Não fazia ideia de que o professor a ouvira.

— Venho de Istambul e… — Perdeu o fio à meada e gaguejou, sentindo-se tola por mencionar a cidade onde nascera em vez de dizer qualquer coisa mais substancial, como os outros tinham feito. — Hum… não sei… não sei… muito bem porque é que aqui estou.

— Então, desiste — disse Kevin, atrevido. — Assim, voltamos a ser dez. Quero o número perfeito!

Uma onda de riso espalhou-se pelo círculo. Peri baixou os olhos. Como é que conseguira meter os pés pelas mãos numa simples apresentação, quando todos os outros, apesar das suas aparentes diferenças, as tinham feito com uma perna às costas?

O último aluno a falar foi um rapaz chamado Bruno. Disse que não era marxista, nem nada disso, mas que, no que tocava à ideia de a religião ser o veneno do povo, concordava com Marx… e com o antigo líder albanês Enver Hoxha, cujas opiniões lera em tempos e achara notáveis, pela clareza com que abordava o tema da religião.

— Muito bem, rapaz — disse Azur —, mas, quando citamos outras pessoas, em especial filósofos e poetas para quem as palavras são importantes, temos de o fazer com rigor. O que Marx realmente disse foi: «A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, e a alma de situações sem alma. É o ópio do povo.»

— Pois. Vai dar ao mesmo — recomeçou Bruno, quase sem disfarçar a irritação por ter sido interrompido quando falava de um assunto que o apaixonava. Com o queixo espetado, como se se preparasse para um soco, disse que Mona tinha pedido discussões honestas e ele ia ser tão honesto que poderia parecer malcriado. Tinha noção de que algumas pessoas poderiam não gostar do que ele tinha para dizer, mas acreditava que aquele seminário prezava o debate franco. Tinha um problema com o Islão. Para ser justo, acrescentou, teria um problema com qualquer religião monoteísta, mas o Cristianismo e o Judaísmo tinham sido reformados, enquanto o Islão, não.

Bruno argumentou que a maneira como o Islão tratava as mulheres era inaceitável e que, se tivesse nascido mulher naquela fé, a teria abandonado à velocidade da luz. Disse que o Islão teria de ser profundamente modificado para se adequar ao mundo atual, mas, naqueles moldes, era inconcebível, porque tanto o Livro Sagrado como os hadiths eram considerados absolutos, inequívocos.

— Se a mudança é proibida, como é que podemos melhorar esta religião?

Do seu canto, Mona lançou-lhe um olhar gélido e disse-lhe o que pensava.

— Quem diz que eu preciso que tu melhores a minha religião?

— Excelente, grande começo! — atalhou Azur. — Obrigado por partilharem os vossos pensamentos com tanta eloquência. Depois de vos ouvir perorar uns para os outros sobre religião, em vez de sobre Deus, que é o nosso tema principal, tenho de vos explicar, de maneira muito clara e direta, de que tratará este seminário.

Dando uma volta no interior do círculo de alunos, o professor moveu-se com confiança e falou com ardor.

— Não estamos aqui para discutir o Islão, nem o Cristianismo, nem o Judaísmo, nem o Hinduísmo. Até poderemos abordar estas tradições, mas só na medida em que o nosso tema central o exija. O que faremos é uma investigação científica sobre a natureza de Deus. Não podem deixar que as vossas crenças pessoais se intrometam. Lembrem-se de que, como disse Russell, quando nos deixamos levar pelas emoções em relação a um assunto, qualquer assunto, «o grau das nossas emoções varia de maneira inversamente proporcional ao nosso conhecimento dos factos».

A luz na sala esmoreceu quando uma nuvem grande passou à frente do Sol. Os olhos de Azur cintilaram.

— Estamos entendidos?

— Sim — responderam os alunos, num coro efervescente.

Uns segundos depois, baixinho:

— Não. — Foi Peri quem falou.

Azur deteve-se.

— O que é que disse?

— Desculpe… é só que… não acho que haja nada de mal em reagir às emoções. — Peri gesticulou com as duas mãos. — Somos seres humanos. Isso significa que somos mais levados pelas emoções do que pela razão. Então, porquê menosprezar as emoções? — Ela levantou os olhos para o professor, com medo da expressão que lhe veria no rosto.

Ele parecia sereno, compreensivo, até ligeiramente impressionado com o protesto.

— Muito bem, menina de Istambul, continua a questionar as coisas.

Azur disse que, se chegassem ao fim do curso em Oxford a falar, a pensar e a escrever da mesma maneira que quando tinham entrado para a universidade, teriam desperdiçado o seu tempo e o dinheiro da família. Mais valia voltarem já para casa.

— Estejam prontos para mudar, todos vocês. Só os rochedos é que não mudam… e por acaso, até mudam.

Ali estavam eles, na universidade mais antiga do mundo anglófono, disse Azur. Oxford fora não só um centro de estudos académicos e investigação científica ao longo dos séculos, mas também um núcleo de debate teológico e disputa religiosa.

— Vocês têm sorte! Estão no sítio certo para falar sobre Deus!

Enquanto o Professor Azur fazia a sua preleção, todo o seu comportamento se alterou. O rosto, até aí impávido, tornou-se vivaz. O tom deixou de ser cuidadoso e contido, e adquiriu acutilância, uma lâmina de aço que normalmente ele mantinha nas sombras, mas que agora não tentou sequer esconder. Fez lembrar a Peri um dos gatos vadios de Istambul, não daqueles tímidos e machucados que se afastavam das pessoas, mas um daqueles felinos independentes que rastejavam ao longo dos muros mais altos, cheios de pose e aprumo, inspecionando o bairro como se fosse o seu reino secreto.

— Muito bem, tenho uma pergunta: se alguém da Idade do Bronze aparecesse e vos pedisse para descrever Deus, o que é que diriam?

— Que é misericordioso — respondeu Mona.

— Autossuficiente — acrescentou Avi.

— Que é uma Ela e não um Ele — disse Elizabeth.

— Nem Ela nem Ele — ripostou Kevin. — São só mentiras.

O Professor Azur franziu o sobrolho.

— Bravo, chumbaram redondamente no teste.

— Porquê? — protestou Bruno.

— Porque se esqueceram de que não partilham a mesma linguagem que o vosso antepassado cabeludo! — Pegou numa pilha de papéis e numa caixa de lápis de cor, e pediu a Róisín para os distribuir. — Esqueçam as palavras. Expliquem através de imagens!

— O quê? — bradou Bruno. — Quer que desenhemos? Somos criancinhas?

— Quem me dera que fossem — disse Azur. — Teriam mais imaginação e uma noção melhor da complexidade.

Mona levantou o braço.

— Professor, o Islão proíbe os ídolos. Nós não desenhamos Deus. Cremos que Ele está para lá da nossa perceção.

— Muito bem. Então, desenha o que acabaste de me dizer.

Nos dez minutos que se seguiram, mexeram-se e remexeram nas cadeiras e nas folhas, suspiraram e queixaram-se, mas, aos poucos, começaram a produzir uma série de obras. Uma imagem do universo: estrelas, galáxias e meteoros. Um aglomerado de nuvens brancas perfuradas por um relâmpago. Uma imagem de Jesus Cristo, de braços abertos. Uma mesquita com cúpulas douradas ao sol. Ganesha com a sua cabeça de elefante. Uma deusa com seios generosos. Uma vela no escuro. Uma página deliberadamente deixada em branco… Toda a gente visualizava Deus à sua maneira. Quanto a Peri, após uma breve hesitação, fez uma pinta, que depois transformou num ponto de interrogação.

— Acabou o tempo — avisou o Professor Azur. Distribuiu mais uma pilha de folhas. — Agora que já desenharam o que é Deus, gostaria que ilustrassem o que Deus não é.

— O quê?

Azur arqueou as sobrancelhas.

— Pare de exclamar, Bruno, e trabalhe.

Um demónio com olhos amarelos de serpente. Uma máscara de ferro de terror. Um pântano fétido. Uma arma fumegante. Uma faca com sangue ressequido. Fogo. Destruição. Um fragmento do Inferno… Estranhamente, imaginar o que Deus não era foi-lhes mais difícil do que imaginar o que era. Só Elizabeth pareceu achar a tarefa fácil. Desenhou simplesmente um homem.

— Obrigada pela vossa colaboração — disse o Professor Azur. — Podem pegar nos dois desenhos e mostrá-los lado a lado, ao círculo todo?

Assim fizeram, inspecionando os trabalhos uns dos outros.

— Agora, virem as imagens para vocês. Já está? Ótimo! Estamos prestes a examinar uma questão levantada por filósofos, estudiosos e místicos ao longo da História: qual é a relação entre as duas imagens?

— Hã? — Desta vez, Bruno não estava sozinho no seu desconcerto.

— O primeiro desenho, o que representa Deus, encarna ou exclui o segundo desenho, o que representa o que Deus não é? — Azur começou a andar de um lado para o outro. — Por exemplo, se Deus é omnipotente e omnipresente, todo-poderoso e benevolente, isso significa que Ele, ou Ela, também encarna o mal, ou significa que o mal é externo a Ele, ou Ela, uma força exterior que Ele/Ela tem de combater? Qual é exatamente a relação entre o que Deus é e o que Deus não é?

Azur prosseguiu.

— Fizeram dois desenhos. Digam-me como é que estão ligados um ao outro. Escrevam um texto. Pode ser em qualquer estilo, desde que seja corajoso, ousado, honesto e assente em pesquisa académica.

Ninguém disse uma só palavra. Quando estavam a desenhar, tinham encarado o exercício de ânimo leve, sem acreditarem muito nele. Se soubessem que o professor lhes pediria para escrever um texto sobre a ligação entre as duas imagens, teriam pensado melhor, mas agora era demasiado tarde.

— Voltem aos filósofos, aos místicos, aos estudiosos do passado. Afastem-se dos dias de hoje. Afastem-se da vossa própria mente.

— Está a dizer para nos afastarmos da nossa própria mente? — repetiu Kevin.

— É este, portanto, o vosso trabalho para a próxima semana. Esforcem-se, impressionem-me! — anunciou Azur, enquanto pegava nas pastas, nos lápis de cor, na ampulheta, em que o último grão de areia acabara de escorregar para o bolbo inferior. — Mas, aviso-vos já que não é fácil impressionar-me!