O jogo de sombras
Oxford, 2001
Na sexta-feira à noite, quando a maior parte dos estudantes estava nos pubs e discotecas a divertir-se merecidamente, Peri ficou na biblioteca da faculdade, a ler. Quando o último aluno se foi embora, o silêncio dentro do edifício tornou-se mais espesso, sem a interrupção causada por tossidelas e sussurros, restolhar de páginas. Substituir o estudo pelo prazer era o mesmo que trocar uma dieta por um banquete, e ela lamentou (e não o fez pela primeira vez) a sua inépcia social. Gostava, contudo, de estar entre livros, que lhe davam uma sensação de liberdade como nada no mundo. Tentou não pensar no facto de, agora, a maioria das suas leituras estar relacionada com o Professor Azur. Por várias vezes, nas últimas semanas, dera por si a sonhar acordada que diria uma coisa inesperada no seminário, uma coisa genial e arrojada, que o faria estacar de repente e vê-la com outros olhos.
Ao seu lado, na mesa, estava a máquina Polaroid de armar que comprara recentemente. Quando ia correr, às vezes deparava com céus absolutamente extraordinários — nasceres do sol em rosa-coral, pores do sol estrondosos, prados cobertos de geada — que queria captar em papel. Saíra-lhe cara, mas valia o dinheiro que custara. Também gastara de mais em livros e tencionava arranjar um computador novo. «Que se lixe», pensou. «Terei simplesmente de trabalhar mais.»
Levantou-se, esticou as pernas. Estava sozinha naquela secção; era como se estivesse sozinha no edifício inteiro. Enquanto passava entre as estantes, sentiu um movimento súbito, tão silencioso como uma sombra. Virou-se muito depressa. Era Troy.
— Olá, não te queria assustar.
— Não me andas a seguir, ou andas? — perguntou Peri.
— Não… bem, sim. Não te preocupes que eu não mordo. — Troy sorriu e fez um aceno de cabeça ao ver o livro que ela tinha na mão. — O que é que andas a ler?… Ateísmo na Antiga Grécia. É para o Azur?
— É — respondeu Peri, sentindo-se ligeiramente constrangida.
— Eu avisei-te que o homem era o diabo, mas tu não ligaste.
— Porque é que o odeias tanto?
— Porque ele não tem noção dos limites. Sei que isso pode parecer-te uma coisa positiva, mas não é. Um professor devia comportar-se como um professor. Ponto final.
— E achas que ele não o faz?
Troy suspirou profundamente.
— Estás a brincar? Aquele tipo não ensina Deus. Ele está convencido de que é Deus.
— Bolas, estás a ser tão duro.
— Espera e verás — ripostou Troy, e deu imediatamente um passo atrás, como se tivesse dito mais do que tencionava. — Seja como for, tenho de ir. Vou ter com uns amigos ao Bear. Queres vir?
— Obrigada, mas tenho que estudar — disse Peri, surpreendida por ele a ter convidado.
— Está bem. Bom fim de semana. Pensa no que eu disse.
Quando Peri saiu da biblioteca, já o céu estava azul-escuro quase negro, excetuando o reflexo fantasmagórico dos lampiões, e parecia tão perto que se diria possível esticar o braço e puxá-lo para os ombros, como se fosse um xaile índigo. Manteve a cabeça erguida enquanto andava, olhando para as gárgulas e estátuas grotescas que se debruçavam sobre ela das ameias do edifício, como que guardando os segredos dos séculos. Nesse momento, teve consciência das anciãs disputas teológicas da cidade, dos seus doloridos ossos escolásticos, que ainda assombravam os seus espaços. Apertou o fecho do casaco até ao queixo; em breve, teria de comprar um casaco de inverno. Estava a tentar poupar dinheiro.
Quando dobrou uma esquina, ficou surpreendida ao ver pessoas a segurarem em velas na escuridão. Uma vigília. Aproximou-se, percorrendo com o olhar as filas de fotografias e flores dispostas no passeio. Um cartaz dizia LEMBRAR SREBRENICA.
Peri perscrutou os rostos dos mortos: rapazes, pais, maridos; um deles parecia o seu irmão Umut na época em que fora detido.
Entre o grupo que fazia a vigília, Peri avistou Mona, com um lenço magenta que enrolara na cabeça e nos ombros. Também ela vira Peri e dera um passo em frente para lhe falar, segurando numa vela.
Peri apontou para os rostos nas fotografias.
— É tão triste.
— É mais do que triste — disse Mona. — É genocídio. Não podemos esquecer, nunca. — Fez uma pausa, observando Peri com um interesse novo. — Porque é que não te juntas a nós?
— Hum, claro — respondeu Peri. Pegou numa vela e na fotografia do rapaz que parecia o seu irmão e postou-se no passeio. A noite fechou-se em seu redor como um rio inchado.
— São só estudantes muçulmanos? — perguntou Peri.
— Bom, foi o Conselho de Estudantes Muçulmanos que organizou a vigília, mas apareceram outros para dar o seu apoio. Vieram pessoas do seminário do Azur. Olha, o Ed está ali.
E estava. Peri foi falar com ele, quando Mona, ocupada com os seus colegas da organização, a deixou sozinha.
— Olá, Ed.
— Peri, olá. Parece que sou o único judeu aqui. Ou meio judeu.
Como se a referência à religião fosse uma deixa lógica, Peri disse:
— Posso perguntar-te porque é que decidiste fazer o seminário sobre Deus?
— Por causa do Azur. O homem mudou a minha vida.
— A sério? — Peri lembrou-se do olhar que captara entre Ed e o professor.
— No ano passado, ele ajudou-me imenso. Eu ia acabar com a minha namorada.
— E ele disse-te para não o fazeres?
— Não propriamente. Disse-me para tentar compreendê-la, primeiro — explicou Ed. — Ela e eu estávamos juntos desde o liceu. Mas ela mudou. Tornou-se religiosa, assim, da noite para o dia. Eu já não a reconhecia. — Com a decisão dela de cumprir estritamente a Tora e o empenho dele na ciência, o abismo entre as prioridades de um e de outro tornou-se intransponível. — Fui ter com o Azur, não sei porquê. Podia ter ido falar com um rabino, mas o Azur pareceu-me a pessoa certa.
— O que é que ele te disse?
— Foi estranho. Mandou-me ouvir tudo o que ela dizia durante quarenta dias. Um mês e dez dias. O que não é assim tão difícil, quando se gosta de uma pessoa. Mandou-me fazer o Sabat com ela. E deixá-la mostrar-me tudo o que quisesse, deixá-la levar-me para dentro do seu mundo. Sem protestar, sem comentar.
— Fizeste-o?
— Fiz. Foi inacreditavelmente difícil! Sempre que ouço disparates… desculpa, mas, para mim, aquela conversa toda sobre religião não passa de disparates… sempre que a ouço, a minha mente revolta-se. O Azur disse para eu deixar os juízos de valor para os juízes. Os filósofos não julgam. Compreendem. — Ed soltou uma gargalhada. — Mas há mais.
— Que mais?
— Ao fim de quarenta dias, o Azur chamou-me e disse: muito bem, agora é a vez da tua namorada. Durante quarenta dias, tu vais falar e ela ouvir. Ela vai fazer uma desintoxicação religiosa.
— E ela fê-la?
— É claro que não. — Ed abanou a cabeça. — Acabámos. Mas percebi o que o Azur estava a tentar fazer e gostei dele por isso.
O entusiasmo dele irritou-a, aquela confiança desenfreada, típica de um discípulo pelo seu mestre.
— Mas nós não somos filósofos. Somos alunos de licenciatura.
— Precisamente. Todos os professores nos dão espaço… exceto o Azur. Ele pressiona-nos muito. Acha que, seja qual for a nossa vocação na vida, todos devemos ser filósofos.
— Não é esperar demasiado de alunos banais?
Ed fitou-a.
— Tu não és banal. Ninguém é.
Peri cerrou os lábios.
— O que foi? Não gostas dele? — perguntou Ed.
— Gosto, é só que… — Peri engoliu em seco. — Pergunto-me se ele andará a fazer experiências connosco, e isso incomoda-me.
— Talvez ande, mas que importância é que isso tem? — ripostou Ed. — Ele mudou a minha vida. Para melhor.
Começou a chover, uma chuvinha ligeira que, a qualquer instante, se poderia transformar num aguaceiro. A vigília teve de ser adiada. Arrumaram os cartazes, as velas e as fotografias. Mona corria de um lado para o outro, tratando de tudo.
Peri esticou o braço para se despedir de Ed. Ignorando o gesto, ele puxou-a para si e deu-lhe um abraço caloroso.
— Cuida de ti. E confia no Azur, é um excelente tipo.
Sozinha no escuro, Peri voltou a pé para a sua residência universitária, o ar carregado com o cheiro a chuva e terra. Não se importou de ficar molhada. Observou os edifícios que tinham assistido a séculos de debates acesos; vizinhos transformados em inimigos, livros destruídos, ideias silenciadas, pensadores perseguidos… tudo em nome de Deus.
Quem tinha razão: Troy ou Ed? Numa noite, ouvira duas opiniões completamente opostas sobre o professor; e o problema era que tinha a sensação de que podiam ambas estar certas. Como num antigo teatro de sombras otomano, uma cortina separava-a da realidade e deu por si sem nada a que se agarrar, a não ser imagens. Azur era o marionetista atrás do biombo, presente e sempre com os cordelinhos nas mãos e, no entanto, desconhecido e inalcançável.