Os oprimidos

Istambul, 2016

Os Bonbons du harem ainda mal tinham desaparecido da mesa, quando um cão entrou a trote pela porta aberta, abanando a cauda com um vigor que contrastava com a sua estrutura pequena. Era um pomeraniano com uma cabeça raquítica, olhos melancólicos e um pelo hirsuto cor de folhas outonais esmaecidas.

Pom-Pom, querido, tiveste saudades minhas? — disse a mulher de negócios.

Arrancando a criatura do chão, pousou-a no colo. Daí, o bicho observou os convidados, piscando os olhos, com as suas feições de raposa assumindo uma expressão passiva que podia, a qualquer instante, transformar-se numa rosnadela hostil.

— Sabem quando é que me apercebi de que este país tinha mudado? — perguntou a mulher de negócios, sem se dirigir a ninguém em especial. — Quando levei o Pom-Pom ao veterinário, no mês passado.

Normalmente, o veterinário ia lá a casa regularmente, explicou ela, mas, havia umas semanas, ele magoara-se numa perna e, embora continuasse a trabalhar como antes, já não fazia visitas ao domicílio. Com o Pom-Pom debaixo do braço, ela dirigira-se para a clínica. Antigamente, os donos de cães eram praticamente um grupo homogéneo: modernos, urbanos, secularistas, ocidentalizados. Como os conservadores muçulmanos consideravam os cães makrooh, detestáveis, não gostavam de partilhar o seu espaço com canídeos.

— Nunca percebi o que aquela gente tem contra os cães. Um disparate qualquer pegado, de que os anjos se recusam a entrar numa casa onde haja um cão — continuou a mulher de negócios. — Ou numa casa com quadros.

— É um hadith de al-Bukhari — explicou um magnata dos jornais, que só recentemente se juntara ao grupo. A sua camisa branca sem colarinho, imaculada, realçava-lhe o cabelo preto, que fora cortado todo do mesmo tamanho. Não usava bigode, nem barba, tinha o rosto escanhoado. Ao contrário de todos os outros ali presentes, pertencia à burguesia islâmica em ascensão. Apesar do seu desejo intenso de conviver com a elite ocidentalizada do país, jamais lhe teria passado pela cabeça levar a sua mulher, que usava lenço na cabeça, a um jantar daqueles. «Ela sentir-se-ia constrangida entre eles», dissera para si próprio. Na realidade, era ele quem se sentia constrangido. É claro que estava satisfeito com ela enquanto esposa — Alá sabia como ela era uma mãe generosa para os seus cinco filhos —, mas, fora de casa, especialmente fora do seu círculo de amizades, achava-a pouco refinada, inclusive inconveniente; observava todos os seus gestos e ouvia todos os seus comentários com uma sobrancelha arqueada. Era melhor ela ficar em casa.

Recostou-se na cadeira e disse:

— Já agora, o hadith não se refere a qualquer quadro em geral. Alerta para os retratos, para evitar a idolatria.

— Nesse caso, estamos lixados — comentou o homem de negócios. Com uma gargalhada complacente, abriu os braços e apontou para as obras de arte nas paredes. — Temos um cão e muitos retratos. Até nus. Talvez esta noite sejamos fustigados com pedras!

Apesar do tom jovial, as suas palavras perturbaram visivelmente alguns dos convidados, que sorriram, incomodados. Sentindo a tensão, Pom-Pom rosnou, pingando saliva reluzente dos caninos.

— Chhhh, a mamã está aqui — disse a mulher de negócios à minicriatura e, dirigindo-se ao marido, num tom menos afetuoso: — Não tentes o destino, pode acontecer alguma coisa de mal. — Bebeu um copo de água de um trago, como se a irritação a tivesse desidratado. — Onde é que eu ia? Ah, portanto, quando fui ao veterinário, fiquei surpreendida ao ver mulheres de lenço na cabeça, na sala de espera, com cães aos pés! Chihuahuas, shih tzus, caniches. Gostavam mais de canídeos do que nós! É óbvio que os muçulmanos religiosos estão a mudar.

— Eu não diria que estão a mudar — comentou o magnata dos jornais. — Ouça, nós, pessoas religiosas, nunca tivemos as liberdades que vocês têm. Fomos oprimidos durante décadas por uma elite modernista como vocês… sem querer ofender ninguém.

— Mesmo que isso fosse verdade, esses tempos já lá vão. Agora, são vocês que têm o poder todo — murmurou Peri, com a voz trémula, como se tivesse relutância em dizer o que lhe ia na cabeça, mas, uma vez mais, não conseguisse calar-se.

O magnata dos jornais protestou.

— Discordo. Uma vez oprimidos, para sempre oprimidos. Não sabe a sensação que é ser-se oprimido. Temos de nos agarrar ao poder; caso contrário, pode voltar a ser-nos arrancado das mãos.

— Oh, deixe-se de coisas! — exclamou a namorada do jornalista, que tinha claramente muito pouca resistência ao álcool. Apontou com o dedo para o magnata. — Você não é oprimido! A sua mulher não é oprimida! Eu sou oprimida! — Bateu no peito. — Eu, com o meu cabelo louro e a minha minissaia e a minha maquilhagem e a minha feminilidade e o meu copo de vinho… Eu é que estou encurralada nesta cultura despótica.

Os olhos do jornalista arregalaram-se, alarmados. Com medo de que a namorada suscitasse a ira do magnata, e o fizesse perder o emprego, tentou dar-lhe um pontapé por baixo da mesa, balouçando o pé através do ar, em vão.

— Bom, todos somos oprimidos — atalhou a anfitriã, numa tentativa pouco convincente para reduzir a tensão.

— É simples — disse o cirurgião plástico. — As pessoas ganham mais e, por isso, anseiam por um estilo de vida melhor. Tenho muitas doentes que usam lenço na cabeça, mas, no que toca a peitos descaídos e pescoços flácidos, as mulheres muçulmanas religiosas não são assim tão diferentes das outras.

O homem de negócios fez um vigoroso aceno de cabeça.

— Isso só prova a minha teoria: o capitalismo é a única solução para os nossos problemas. O antídoto para as aberrações jihadistas é o mercado livre. Se o capitalismo pudesse seguir o seu rumo sem interrupções, conquistaria até as mentes mais resolutas.

Dito isto, abriu uma caixa de charutos de casca de nogueira polida, com uma imagem de Fidel Castro incrustada na tampa, e passou-a ao jornalista, com uma piscadela de olho.

— Edição limitada do Duty Free de Beirute. Tire um. Tire dois.

Os convidados masculinos, olhando, envergonhados, para a anfitriã, mexericaram, todos eles, na caixa e tiraram um charuto.

— Não se preocupem com a minha mulher — disse o homem de negócios. — Nesta casa impera a liberdade. O laissez-faire!

Todos se riram. Pom-Pom, incomodado com o barulho, ladrou, furioso.

Aproveitando a oportunidade, Peri acendeu um cigarro. Reparou que a empregada que vira à entrada andava agora em bicos dos pés, a pousar cinzeiros na mesa. Perguntou-se o que pensaria aquela mulher sobre todos eles. Provavelmente era melhor não saber.

— A nossa querida Peri está muito pensativa, esta noite — comentou a mulher de negócios.

— Foi um longo dia — respondeu Peri, tentando esquivar-se.

O seu marido inclinou-se para a frente, como que para partilhar um segredo. Tinha o hábito de beber café preto e forte e com um pedaço de açúcar na boca. Enquanto o cubo se lhe dissolvia na língua, Adnan disse:

— Às vezes, acho que a Peri gosta mais das pessoas dos livros de ficção do que das da vida real. Em vez de tweetar os amigos, ela prefere pendurar os seus poemas preferidos em cordéis suspensos no nosso quarto.

Peri sorriu. Era mais um ritual que ela aprendera com o Professor Azur.

— Invejo-a — disse a decoradora de interiores. — Nunca tenho tempo para ler.

— Oh, eu adoro poesia — acrescentou a relações públicas. — Apetece-me largar tudo e mudar-me para uma aldeia de pescadores. Istambul corrompe-nos a alma!

— Venha a Miami, comprámos uma casa à beira-mar — disse o homem de negócios.

A mulher dele arqueou as sobrancelhas.

— A lata deste homem! Não tem um pingo de sensibilidade artística. Nós falamos em poesia, ele responde com Miami.

— O que é que eu fiz agora? — protestou o homem de negócios.

Ninguém o criticou. Era demasiado rico para que o criticassem cara a cara.

Nesse instante, tocaram à campainha, uma, duas, três vezes, um misto de frustração, desculpa e impaciência.

— Ah, finalmente. — A mulher de negócios levantou-se de um salto. — O médium chegou!

— Viva! — gritaram os convidados em coro.

Pom-Pom correu para a porta, latindo e ladrando furiosamente.

No alvoroço que se seguiu, Peri ouviu um apito perto de si. Pegou no telemóvel do marido e olhou para o ecrã. Tinha uma mensagem pormenorizada da mãe, apesar de lhe ter dito para escrever simplesmente «Liga-me». «Encontrei o número, perdi a emissão do meu programa de TV.» A seguir trazia a informação pedida: «Shirin: 01865…» Os dígitos dançaram diante dos olhos de Peri, uma combinação de números para abrir um cofre que estava fechado há demasiado tempo.