A profecia

Istambul, 2016

Um silêncio eletrificado cobriu a mesa como um toldo, enquanto os convidados esperavam que o médium aparecesse. Pela porta aberta, ouviram a anfitriã a dar-lhe as boas-vindas, a voz dela tilintando como carrilhões de vidro.

— Onde é que se meteu?

— Foi o trânsito! Um inferno — irrompeu uma voz masculina, aguda e nasal.

— A quem o diz! — respondeu a mulher de negócios. — Entre, querido, tenho convidados mortinhos por o conhecer.

Segundos depois, o médium entrou na sala, envergando umas calças pretas, uma camisa branca e um colete de brocado às cornucópias, em tons de verde-água e dourado, saído de outros tempos. Tinha uma barbinha muito curta, aos retalhos, que parecia ter despontado a caminho da festa. Uns olhos pequenos e muito juntos, um rosto anguloso pontuado por um nariz estreito e afilado, e um queixo que parecia ter sido desenhado à última hora, o que lhe dava, no todo, um ar de raposa à caça.

— Tantos convidados! — exclamou, entrando calmamente. — Terei de cá ficar acampado, se todos quiserem que lhes leia a sina.

— Esteja à vontade — replicou a mulher de negócios.

— São só as senhoras — explicou o homem de negócios, do seu canto. No que lhe dizia respeito, não havia nada tão entediante como ouvir as sinas das outras pessoas. Gostava de traçar a sua própria sina, a sua fortuna. Queria ter uma conversa em particular com o administrador executivo do banco, enquanto a mulher se entretinha com as suas tolices. — Porque é que as senhoras não se mudam para os sofás, onde ficarão mais confortáveis? — sugeriu.

Obedientemente, a mulher de negócios conduziu o médium e as mulheres para os sofás de cabedal. Fez sinal a uma empregada:

— Traga ao nosso novo convidado um…

— Pode ser um chá quente — disse o médium.

— O quê? Que disparate! Tem de beber alguma coisa mais forte, faço questão.

— No fim, quando acabar o meu trabalho — insistiu o médium. — Por agora, o meu copo tem de estar límpido, como a minha mente.

Peri, que ouvira esta troca de palavras, pensou: «Chá não é propriamente límpido. E este tipo também não.» Entretanto, os convidados masculinos tinham-se agrupado sob uma instalação de arte, uma escultura de parede de um gigantesco peixe pré-histórico, de lábios vermelhos e um fez otomano com uma borla. Finalmente livres da companhia feminina, os homens podiam dizer os palavrões todos que quisessem e soprar fumo de charuto para onde lhes apetecesse. O homem de negócios fez sinal à mesma empregada:

Evladim1, traga-nos conhaque e amêndoas.

Tendo saído da mesa como todos os outros convidados, Peri deixou-se ficar no meio da sala. Sentia-se dividida, como lhe acontecia sempre naquelas situações. Não gostava da segregação entre sexos, comum no convívio social em Istambul. Nas casas conservadoras, a separação ia a tal ponto que homens e mulheres podiam passar uma noite inteira sem trocar uma palavra, reunidos em assoalhadas diferentes. Os casais separavam-se à chegada e voltavam a encontrar-se no final do serão, a caminho da saída.

Nem os meios liberais excluíam este hábito. Depois do jantar, as mulheres juntavam-se como se precisassem do carinho, consolo e reconforto umas das outras. Conversavam sobre uma série de tópicos, mudando de estado de espírito em uníssono: vitaminas, suplementos alimentares e receitas sem glúten; filhos e escolas; pilates, ioga e ginástica; escândalos públicos e mexericos privados… Discutiam celebridades como se fossem suas amigas e as amigas como se fossem celebridades.

Quanto a Peri, regra geral, preferia as conversas masculinas às femininas, apesar de os assuntos dos primeiros tenderem a ser mais negros. Antigamente, juntava-se automaticamente aos homens e imiscuía-se nas suas discussões sobre economia, política, futebol… Eles não se importavam com a sua presença, considerando-a mais ou menos um deles, embora nunca falassem sobre sexo na companhia dela. O comportamento de Peri chamava a atenção das mulheres e, por vezes, suscitava nelas uma certa raiva. Reparara, desconcertada, que algumas mulheres ficavam aborrecidas ao vê-la sentada junto dos seus maridos. Aos poucos, abandonou esse seu pequeno ato de rebeldia; mais um sacrifício que fez no altar das convenções sociais.

Nesse instante, não queria companhia nem feminina nem masculina, apetecia-lhe simplesmente estar sozinha. Discretamente, esgueirou-se para o terraço. Um vento gelado, vindo do mar, arrepiou-a. Sentia o cheiro a maré baixa. Do outro lado do Bósforo, na parte asiática da cidade, o céu adquirira um tom escuríssimo de azul. Um nevoeiro esfiapado erguia-se da água, fazendo lembrar tiras esgaçadas de musselina. Ao longe, um barco de pesca preparava-se para zarpar. Peri pensou nos pescadores, austeros e taciturnos, falando em vozes abafadas para não assustar os peixes, de olhos fixos nas águas que lhes davam o seu sustento diário. Uma parte de si ansiava por estar naquele barco, naquela quietude esperançosa.

Nesse instante, como que troçando dos seus desejos, sirenes da polícia rasgaram o ar, algures no lado europeu da cidade. Enquanto ela estava parada a contemplar a paisagem, alguém estava a ser espancado, alvejado, violado… e, sim, naquele instante, alguém se estava a apaixonar em Istambul.

Na sua mão esquerda, tinha o telemóvel do marido. Apertando o aparelho de metal com mais força, Peri decidiu-se. Não falava com Shirin havia anos. O número até já podia nem ser o mesmo. E se fosse, não havia certezas nenhumas de que Shirin quisesse falar consigo. Contudo, o desejo de tentar, acontecesse o que acontecesse, era demasiado forte para o ignorar. Tendo deixado o passado infiltrar-se no presente, sentiu-se esmagada por uma onda de arrependimento.

Mexericando no telemóvel, Peri andou com a lista de contactos para cima e para baixo. O seu polegar deteve-se num nome familiar: Mensur. Ao lado dele, lia-se «Baba». Os rituais do casamento… os pais do nosso cônjuge tornavam-se automaticamente nossos pais, como se o passado de outra pessoa — todos aqueles anos de amor, desentendimento e frustração — pudesse, num só dia e com uma só assinatura, ser transferido. O seu marido não apagara o nome de Mensur após a sua morte súbita. Talvez fosse esse o primeiro sinal de envelhecimento: deixar que amigos e familiares mortos continuassem a ter uma existência virtual, não os apagando da lista de contactos. Porque, um dia, também nós seríamos um desses nomes e um desses números.

Peri marcou o número que a sua mãe lhe enviara. Esperou, sentindo o silêncio que emanava do telefone expandir-se; esse segundo de suspense, em que não sabemos se vamos ouvir o toque de chamada na linha ou o toque de interrompido; a dúvida fugaz que precede todos os telefonemas internacionais.

— Não vens, Peri?

Ela virou-se, com o telemóvel encostado ao ouvido. Adnan pusera a cabeça de fora, debruçando-se na soleira, com um copo de água na mão. Embora, ao longo de quase todo o seu casamento, Peri se tivesse sentido aliviada por ver que ele não era, nem se tornaria alcoólico, havia alturas em que desejava que ele se descontrolasse… que, de vez em quando, cometesse erros dos quais se arrependesse no dia seguinte.

— As pessoas já perguntaram onde é que te meteste — disse Adnan.

Nesse segundo, o telefone começou a tocar, a uma distância de terras e mares, em Inglaterra, numa casa que ela imaginou completamente diferente daquela.

— Já vou ter contigo — respondeu.

Adnan fez um aceno de cabeça e uma sombra perpassou-lhe o rosto.

— Está bem, querida. Não te demores.

Ela viu-o virar-se e dirigir-se para junto do grupo, que parecia mais animado e divertido do que quando ela se afastara. Contou: um, dois, três… Um clique. O seu coração sobressaltou-se, enquanto se preparava para ouvir a voz de Shirin. E foi a voz dela, de facto, que ouviu, mas uma versão fria e automática. A mensagem de voice mail.

«Olá, ligou para a Shirin. Neste momento, não posso atender. Se tiver coisas simpáticas para dizer, por favor deixe a sua mensagem, nome e número de telefone depois do apito. Senão, fale antes do apito e não volte a ligar!»

Peri desligou imediatamente. Detestava deixar mensagens de voz, o seu tom de falsa afabilidade. De seguida, marcou outra vez o número. Desta feita, deixou uma mensagem.

«Olá, Shirin… sou eu, a Peri.» Apercebeu-se da debilidade da sua voz. «Provavelmente não queres falar comigo e eu entendo. Já lá vão anos…» Engoliu, sentindo a boca seca como giz. «Preciso de falar com o Azur. Tenho de ouvir da boca dele, se me perdoou…»

Um apito. O ecrã ficou em branco. Peri não se mexeu, digerindo as implicações das palavras que lhe tinham escorregado dos lábios, quase como se tivessem vontade própria. Estranhamente, sentiu-se aliviada. A sua mente já não era uma orquestra de ansiedades e hipóteses e segredos e desejos reprimidos. Fizera-o. Telefonara a Shirin. Fosse qual fosse o resultado, estava pronta para o enfrentar. Sentiu a noite, não como uma força externa, mas interna… a avolumar-se-lhe dentro do peito, a arder-lhe nos pulmões, a avançar ao longo das suas veias, atrevendo-se a manifestar-se. «Não há ligeireza», pensou, «como a que sentimos quando conquistamos um medo de longa data».

1 «Minha menina.»