A limusina

Oxford, 2001

Em pleno inverno, Shirin entrou no quarto de Peri, puxando uma mala cor-de-rosa com rodinhas. Ia passar as férias de Natal com a família. Toda a gente ia a casa nas férias: estudantes, professores, funcionários. Toda a gente, exceto Peri, que, tendo excedido em muito o seu orçamento para o período letivo, deixara para demasiado tarde a compra de um bilhete de avião e resignara-se a ficar em Oxford.

— Tens a certeza de que não queres vir comigo para Londres? — perguntou Shirin pela nona ou décima vez.

— Tenho. Fico bem aqui — respondeu Peri.

Na verdade, não ia ficar exatamente ali. Em Oxford, os alunos deviam abandonar os seus quartos durante as férias, para que as residências universitárias pudessem ser usadas para alojar turistas ou pessoas que fossem assistir a conferências. Quanto aos estudantes que precisassem de ficar, a universidade arranjava-lhes espaços alternativos, temporários e mais pequenos.

Shirin deu um passo na direção de Peri, fitando-a intensamente nos olhos.

— Ouve, Ratito, estou a falar a sério. Se mudares de ideias, liga-me. A minha mãe ia gostar imenso de te conhecer. Adora que as minhas amigas fiquem lá em casa. Assim, pode queixar-se de mim durante horas. É uma família passada da cabeça. Damos cabo uns dos outros, mas somos muito queridos para quem vem de fora. Serás muito bem tratada.

— Prometo telefonar, se me sentir demasiado sozinha — disse Peri.

— Está bem. Mas não te esqueças: quando eu voltar, vamos sair daqui. Está na hora de arranjarmos uma casa.

Peri tinha esperança de que Shirin se tivesse esquecido da ideia, mas pelos vistos, não. Inúmeros alunos de Oxford tinham feito aquele mesmo percurso: começavam a vida de estudante no aconchego íntimo de uma residência universitária, onde tudo era relativamente fácil, com empregados, sala de jantar, biblioteca e salas de convívio; aos poucos, sentiam que aquele ambiente se tornava sufocante; depois, no segundo ano do curso, reuniam um grupinho de potenciais colegas de casa e mudavam-se para um apartamento. Muitos tinham de o fazer, de qualquer maneira, porque as residências não dispunham de quartos suficientes para todos.

Até aí, sempre que Shirin trouxera o assunto à baila, Peri rejeitara a sugestão, educadamente mas com firmeza. Todavia, Shirin era incansável, como em tudo, e o seu entusiasmo quase contagioso. Partilhando fotografias das casas que um agente imobiliário lhe mostrara, garantiu a Peri que não lhe fazia diferença pagar um pouco mais por mês, se, em troca, conquistasse o seu espaço privado e paz de espírito. Como detestava a solidão, nunca arrendaria uma casa sozinha, por isso, se Peri aceitasse a proposta, Shirin é que ficaria em dívida para com ela e não o contrário.

— Vou pensar nisso — respondeu Peri, constrangida.

— Não há nada para pensar. A vida na residência universitária é para os caloiros. Os únicos que cá ficam são os alunos demasiado tímidos para fazerem a mudança… e os totós.

— E aqueles que não têm dinheiro.

— Dinheiro? — repetiu Shirin, com o tipo de desdém que reservava para as pessoas insuportáveis e para as chatices inevitáveis, como problemas de esgotos e lixo por recolher. — Esse é o menor dos teus problemas. Deixa isso comigo.

De vez em quando, Shirin dera a entender, embora nunca abertamente, que a sua família era abastada. Tivera a sua quota-parte de dificuldades na vida, sem dúvida, mas falta de dinheiro não fora uma delas. Peri depreendeu que a casa em Londres, que ela descrevia como degradada e com infiltrações, não fosse nada assim. Shirin estava disposta a pagar a renda na totalidade. Peri só tinha de enfiar os livros e as roupas numas quantas caixas e segui-la naquela nova aventura.

— Muito bem, querida, tenho de ir. — Shirin deu dois beijinhos a Peri, envolvendo-a numa nuvem de perfume. — Feliz Ano Novo! Estou desejosa de que chegue 2002! Tenho a sensação de que vai ser o melhor período das nossas vidas.

Peri pegou na garrafa de água que estava na sua secretária e acompanhou a amiga à portaria.

O porteiro principal encontrava-se na entrada. Ex-oficial do exército, parecia conhecer todos os estudantes pelo nome.

— Boas férias, Shirin, e até para o ano — disse ele alegremente. — E para si também, Peri.

Peri teve a sensação de que ele se despedira de si com um pouco mais de carinho na voz. Provavelmente tinha pena dela, a única aluna que não ia passar as férias a casa.

Lá fora, estava uma limusina preta com um motorista à espera. Enquanto via Shirin afastar-se, empoleirada nos seus saltos altos, vacilando ligeiramente com a mala a reboque, Peri sentiu-se dilacerada por emoções contraditórias. Partilhar casa com Shirin podia exacerbar o sentimento de intimidação que a inundava devido à personalidade forte da amiga. Além disso, quereria ela realmente ficar em dívida para com Shirin, ou com quem quer que fosse? E, no entanto, não seria maravilhoso terem uma casa só para elas?

Enquanto o carro se afastava, Peri despejou a água no seu rasto, cumprindo uma velha tradição turca: «Vai como água e regressa como água, minha amiga.»