A bailarina do ventre

Oxford, 2002

Peri abriu a janela, desfrutando do toque do ar frio. Estava contente por ter voltado para o seu quarto, embora ansiasse por um espaço maior. Sentou-se na cama com um livro na mão e puxou as pernas para si. Numa das suas primeiras aulas, Azur pedira aos alunos para lerem um artigo sobre a ideia de Deus na filosofia kantiana. Ela achara Kant mais desconcertante à segunda leitura do que à primeira. Percebia porque é que os teólogos se sentiam atraídos pelas ideias do filósofo alemão. Mas, por outro lado, pensadores famosos do campo oposto, por exemplo Nietzsche ou Darwin, também tinham sido influenciados por ele. Peri concluiu que Immanuel Kant, tal como Istambul, tinha uma natureza multifacetada.

Não era de admirar que Azur gostasse tanto dele. Também o professor era multifário. Havia vários Azurs, uma série deles. O orador confiante do painel de debate; o ator da vida diária que adorava e ansiava por atenção; o professor intimidativo das aulas; o exigente Inquisidor no seu gabinete; o delicado anfitrião na privacidade de sua casa… quantas mais facetas teria ele? Os pensamentos de Peri regressaram ao jantar de fim de ano e ao seu rescaldo. Desde então, andava a fugir de Darren, embora ele tivesse ligado inúmeras vezes e deixado mensagens que pareciam cada vez mais preocupadas, e magoadas. Peri ter-se-ia de bom grado trancado no quarto até conseguir pôr a cabeça em ordem, não fosse ter aulas e o emprego na livraria… e Shirin, que arranjava sempre uma desculpa para lhe bater à porta.

A sua atração por Azur tinha tornado a vida quotidiana penosamente intensa. Sempre que ia ter com ele ao gabinete, para falar sobre o bebé na bruma, interpretava e reinterpretava cada gesto dele, cada palavra, incapaz de o encarar com um mínimo de equanimidade. Como um necromante que via sinais divinos em toda a parte, procurava mensagens secretas nas coisas mais banais. Estudava mais do que nunca, decidida a causar boa impressão em Azur com a sua inteligência e a sua genialidade. Mas a oportunidade para o impressionar, o momento da revelação pelo qual ela esperava ansiosamente, nunca chegou. Junto dele, Peri permanecia retraída a maior parte do tempo, com um nó na barriga. De vez em quando, guinava na direção oposta. Armada de uma coragem súbita, ou de desespero, protestava e debatia, desafiava e questionava, e depois remetia-se novamente ao silêncio.

Pensara que nunca lhe aconteceria uma coisa assim. Não era uma daquelas raparigas que ficavam obcecadas por homens mais velhos; raparigas que, na sua opinião, andavam à procura da figura paterna que lhes faltava na vida. Porque é que se sentia atraída por Azur era algo que não conseguiria explicar a ninguém, muito menos a si própria. Se bem que não tivesse vontade nenhuma de contar o que sentia por ele. Tal como o diário sobre Deus que tinha desde a infância, tal como o bebé na bruma, também Azur se tornara um segredo cuidadosamente guardado. Apesar disso, habituara-se a adormecer com um dos livros do professor nas mãos, seguindo o traçado das letras do nome dele com os dedos no escuro, ao som de uma música lamechas. Durante o dia, zanzava perto da faculdade dele, olhando furtivamente a uma esquina para ver se ele aparecia. Sempre que não tinha aulas de grupo ou individuais, ia tomar café à pastelaria que ele frequentava de manhã, e que lhe ficava completamente fora de caminho, mas, das poucas vezes que o vira chegar, escondera-se na casa de banho. Enquanto fazia essas coisas ridículas, uma parte de si, distante e crítica, observava reprovadoramente o seu comportamento, esperando que tudo não passasse de uma fase de loucura temporária.

Incapaz de suportar os seus pensamentos e os de Kant, Peri calçou as sapatilhas e foi correr. Apesar do frio, a promessa de alegria pairava no ar do entardecer como cristais de orvalho. A ausência de barulho que a impressionara quando se mudara para Oxford, vinda de Istambul, já não a surpreendia.

À esquina de Longwall Street, viu uma cabina telefónica. Dada a diferença de duas horas, o pai devia estar em casa a beber… sozinho ou com amigos.

Mensur atendeu o telefone.

— Estou?

Baba… Desculpe, liguei em má hora?

— Peri, minha querida! — exclamou ele. — Como, «em má hora»? Podes ligar quando quiseres. Quem me dera que o fizesses mais vezes.

Ela sentiu um nó na garganta ao ouvir a ternura na voz do pai.

— Estás bem?

— Estou — disse ela. — E a mãe?

— Está no quarto. Queres que a chame?

— Não, falo com ela noutra altura. — Suavemente, acrescentou: — Tenho tantas saudades suas.

— Ai, assim fazes-me chorar, abelhinha.

— Sinto-me péssima por não ter ido a casa no fim de ano.

— Oh, que importância tem o fim de ano? — retorquiu Mensur. — A tua mãe deixou o peru demasiado tempo no forno e queimou o pilaf, por isso comemos carne seca como um tição e arroz preto. Jogámos Tômbola. A tua mãe ganhou. Ela diz que não fez batota, mas alguém acredita nisso? Ah, e vimos uma bailarina do ventre na televisão… quero dizer, eu vi. E mais nada.

Houve coisas que ele omitiu, mas que Peri adivinhou: o consumo excessivo de álcool de Mensur e a bailarina do ventre quase despida a abanar as ancas tinham certamente deixado Selma furiosa e provocado mais uma discussão entre os pais.

Como se lhe tivesse lido os pensamentos, Mensur disse:

— Bebi uns copos, sim. Queres melhor ocasião para isso? Sabes o que se costuma dizer: a maneira como passamos as primeiras horas do Ano Novo determinam o que faremos no resto do ano.

Peri ficou desconsolada.

— Não tem mal não teres vindo — disse Mensur. — Teremos muitos anos para comemorar. A escola é o mais importante de tudo, agora.

«A escola…» Ele não disse «a universidade» ou «a faculdade», disse «a escola». Essa palavra básica que tinha um sentido quase sagrado para inúmeros pais que, não tendo eles próprios muitos estudos, acreditavam no ensino e investiam tudo o que podiam no futuro dos filhos.

— Como é que está o meu irmão? — perguntou Peri. Não sentiu necessidade de especificar qual deles. Só podia ser Hakan, uma vez que raramente falavam sobre Umut e, quando o faziam, era sempre num tom diferente.

— Está bom. Estão à espera de bebé.

— A sério?

— Sim — respondeu Mensur, numa voz que se encheu de orgulho. — Um menino.

Tinha passado mais de um ano desde a terrível noite no hospital, mas a recordação ainda estava muito fresca na mente de Peri. O cheiro a desinfetante, a tinta verde-musgo, as meias-luas vermelhas nas palmas das mãos da noiva… E, agora, Feride ia ter um bebé. As palavras da sua mãe ressoaram-lhe na cabeça: «Muitos casamentos foram construídos sobre alicerces mais frágeis.»

— Acho que nunca conseguiria fazer uma coisa dessas.

— O quê?

— Casar com uma pessoa que me trata mal.

Mensur bufou, meio suspiro, meio riso.

— A tua mãe e eu adoramos-te — disse ele, e fez uma pausa, devido à falta de hábito de falar dos dois no mesmo fôlego. — Nós apoiamos-te nas decisões que te fizerem feliz.

Os olhos de Peri encheram-se de lágrimas. Quando as pessoas a tratavam com compaixão, sentia-se sempre mais vulnerável do que quando a tratavam com animosidade.

— O que é que se passa, minha alma? Estás a chorar?

Ela ignorou a pergunta.

— Mas, Baba… e se um dia eu o envergonhar? Rejeita-me?

— Nunca hei de rejeitar a minha própria filha, aconteça o que acontecer — respondeu Mensur. — Desde que não me tragas para casa um imã barbudo como genro. Isso, sim, daria cabo de mim! E provavelmente também não devias namorar com um daqueles músicos com bíceps tatuados, como é que se chamam? Metaleiros. Não me importava, mas a tua mãe enlouqueceria. Por isso, tirando o imã e o metaleiro, há muitas outras opções.

Peri riu-se. Lembrou-se dos rituais de pai e filha diante da televisão, das vezes em que ele a ensinara a assobiar, a fazer bolas com pastilha elástica, a comer sementes de girassol com sal, partindo destramente as cascas com os dentes.

— A sério, diz lá: quem é o rapaz sortudo? — perguntou Mensur.

A palavra «rapaz» fê-la recompor-se. Na perspetiva do pai, ela só podia gostar de um rapaz, de alguém da sua idade.

— Oh, é só um aluno, nada de sério. Sou demasiado nova para ter uma relação séria.

— Sim, Pericim. — Ele pareceu aliviado. — Isso há de passar. Concentra-te nas aulas.

— Sim, Baba.

— Ah, e não contes nada disto à tua mãe. É escusado preocupá-la.

— Claro que não.

Depois de desligar, Peri correu durante uma hora bem medida. Os pés escorregavam-lhe nas pedras geladas, mas ela não desistiu. Quando voltou para o quarto, tinha as canelas a latejar de dor, por ter abusado do exercício, e sentia a garganta dorida sempre que engolia, os primeiros sinais de uma gripe valente. Adormeceu imediatamente e continuou a correr em sonhos, agarrada a um bilhete que Shirin lhe escrevera e deixara em cima da cama.

«Peri, encontrei a casa perfeita para nós! Prepara-te, vamos sair da residência universitária!»