A lista

Istambul, 2016

— Já sabem o que aconteceu? Que horror, que horror!

Era a relações públicas, dirigindo a sua pergunta à sala em geral. Saíra para ir à casa de banho, mas voltara de imediato, com o rosto corado.

— O que foi desta vez? — perguntou alguém.

Existem dois tipos de cidades no mundo: as que dão garantias aos seus residentes de que o dia seguinte e o outro a seguir e o outro serão mais ou menos todos iguais; e as que fazem o contrário, relembrando insidiosamente aos seus moradores a incerteza da vida. Istambul pertence à segunda categoria. Não há espaço para a introspeção, não há tempo para esperar que os relógios acompanhem o ritmo dos acontecimentos. Os habitantes de Istambul precipitam-se de uma notícia de última hora para outra, movendo-se depressa, consumindo ainda mais depressa, até acontecer outra coisa qualquer que exija a sua total atenção.

— Vi no feed do meu Twitter, uma explosão — anunciou a relações públicas.

— Em Istambul? — perguntou a mulher de negócios. — Quando?

As três perguntas fundamentais, sempre por essa ordem: O quê? Onde? Quando? O quê: uma explosão terrível. Onde: num dos bairros mais populosos do centro histórico da cidade. Quando: havia cerca de quatro minutos. A explosão tinha sido tão forte que desmoronara a fachada do edifício onde ocorrera e estilhaçara os vidros da rua toda, ferindo transeuntes, fazendo disparar alarmes de automóveis e pintando, por um breve instante, o céu noturno de um castanho-ferrugento.

A maior parte dos convidados, conduzidos pela mulher de negócios, correu para o andar de cima, para ver as notícias na televisão. Peri seguiu-os, ainda que lentamente, até à sala luminosa e confortável. Manteve-se atrás do grupo, de onde conseguia vislumbrar o grande ecrã plano. Uma repórter alvoroçada — uma rapariga com o cabelo tão comprido que o poderia ter usado como manto — falava muito depressa, segurando no microfone com as duas mãos. «Continuamos sem saber quantas pessoas morreram, quantas ficaram feridas, mas as perspetivas não são boas. Nada boas. A única coisa que sabemos para já é que se tratou de uma bomba de grande impacto.»

Uma bomba. A palavra, como um fumo tóxico saído do nada, ficou a pairar no meio da sala. Até aí, os convidados tinham esperado, no seu âmago, que tivesse sido uma fuga de gás ou um gerador avariado a causa da destruição. Não teria atenuado a gravidade do que acontecera, mas uma bomba era diferente. Uma bomba significava não só um incidente trágico, mas também a intenção de matar. Os desastres eram assustadores, sem dúvida. O mal aliado aos desastres era aterrorizador.

Ainda assim, tinham aprendido a viver com bombas… ou com a possibilidade delas. Acreditavam que os terroristas, por muito aleatórios e erráticos que fossem, seguiam determinados padrões. Não atacavam à noite. Escolhiam quase sempre as horas em que houvesse luz e pudessem atingir o máximo número de pessoas, no mínimo espaço de tempo, e sair nas parangonas do dia seguinte. A noite, embora perigosa por muitos outros motivos, estava a salvo desse tipo de violência. Ou assim julgavam eles.

Donde, a pergunta da mulher de negócios:

— Uma bomba? A esta hora?

— Provavelmente os terroristas também ficaram presos no trânsito — comentou o homem de negócios, sarcástico. — Já nada anda a horas em Istambul, nem sequer Azrael.

Riram-se, um riso breve e sem alegria. Perante uma calamidade, as piadas faziam as pessoas sentir-se sujas, culpadas, mas, ao mesmo tempo, dissolviam o medo e atenuavam o peso da incerteza, que era demasiado grande.

Entretanto, no ecrã de televisão, em pano de fundo, juntara-se uma multidão de crianças e homens, suspensos de cada palavra da repórter, desejosos de que ela os escolhesse para serem entrevistados. Um rapaz, que não devia ter mais de doze anos, acenou, excitado por ver a câmara apontada a si.

A imagem mudou para um plano tirado de um helicóptero, mostrando o bairro visto de cima. Casas construídas em cima umas das outras, tão amontoadas que pareciam um bloco único de betão. Porém, analisando mais de perto, as diferenças eram discerníveis. Um edifício, em especial, parecia ter passado por anos e anos de guerra civil. Janelas estilhaçadas, paredes queimadas, vidros partidos no passeio.

«Estávamos em casa, a família inteira, a ver televisão, quando ouvimos um estrondo e o chão tremeu. Pensei que fosse um terramoto», disse uma testemunha, um homem baixo e entroncado, de pijama. A sua voz denotava um entusiasmo que ele mal conseguia conter, atordoado por estar a falar para milhões de pessoas no mesmo canal de televisão que ainda há pouco estivera a ver. Quando começou a descrever «como se sentia», a pedido da repórter, uma faixa vermelha deslizou no ecrã em rodapé anunciando o número de mortos.

Na mansão à beira-mar, os convidados voltaram para a sala, um a um, para porem o resto do grupo a par das notícias.

— Cinco mortos, quinze feridos.

— Esse número pode aumentar. Alguns dos feridos encontram-se em estado crítico — disse o jornalista, que ficara na sala para telefonar para a redação.

Com o à-vontade com que antes passavam pratos de comida à mesa do jantar, distribuíam agora pormenores sangrentos. Não importava a redundância e menos ainda a repetição. Quanto mais partilhavam, menos verdadeiro tudo se lhes afigurava. A tragédia era um bem como outro qualquer: destinava-se a ser consumido, individual e coletivamente.

A namorada do jornalista encheu os pulmões de ar antes de dizer:

— Portanto, estavam a fabricar uma bomba dentro de casa. Imaginem só. Montaram as peças como se fosse uma espécie de Lego demoníaco e a bomba detonou. A boa notícia é que os terroristas morreram na hora. A má notícia é que os vizinhos de cima também perderam a vida. O senhor era um professor aposentado.

— Provavelmente dava aulas de Geografia, coitado — disse o homem de negócios, arrastando ligeiramente as palavras. — Que destino… Devia ser um cidadão honesto, que corrigia exames de alunos e usava fatos puídos. Ao fim de anos de trabalho árduo, reforma-se. Já não tinha de aturar os putos ignorantes. Um bando de terroristas instala-se no andar de baixo… e c’os diabos, começam a fazer bombas… Bum! Lá se foi o professor. Ensinava aos alunos o que eram cotovelos de rio e quais as capitais dos países, quando estamos rodeados pela porra da geografia do terror!

Ninguém falou durante um momento.

— Sabe-se quem eram os bombistas? — perguntou a relações públicas. — Eram marxistas? Separatistas curdos? Islamitas?

O arquiteto soltou uma gargalhada.

— Que belo cardápio!

Peri ouviu o marido pigarrear ao de leve.

— Não é só o terrorismo e o horror de tudo isto que está em causa — disse Adnan. — É a facilidade com que nos habituamos a este tipo de notícia. Amanhã, por esta hora, poucas pessoas estarão a falar sobre o professor. Daqui a uma semana, já ninguém se lembrará dele.

Peri baixou os olhos, sentindo a tristeza das palavras dele chegar-lhe ao coração e instalar-se dentro de si, como o calor que perdura nas brasas morredoiras de uma fogueira.