O rosto do outro
Oxford, 2002
Um táxi esperava-as ao portão. Fizeram o caminho em silêncio durante uns momentos, até Peri pontuar o sossego com um espirro.
— Santinho, Ratito!
— Obrigada… Ainda não acredito que vou viver contigo — gemeu Peri, vendo as ruas deslizar pela janela.
Ignorando as reticências de Peri, Shirin continuara a procurar casa. Conseguira convencer as autoridades da universidade de que podiam desistir dos quartos na residência a meio do ano letivo. Com o seu zelo indomável, rapidamente arranjara uma casa. Diligente como uma abelha zumbindo de flor em flor, pagara a caução e o primeiro mês de renda, e contratara um carro para transportar os seus modestos pertences. Organizara tudo de maneira tão fluida e implacável que, quando chegou o dia, Peri só teve de pegar no casaco e acompanhar a amiga porta fora.
— Descontrai-te, vai ser divertido — disse Shirin, entusiasmada. — Nós as três!
Peri susteve a respiração.
— Quem é que vai viver connosco?
Shirin tirou um estojinho de base da carteira e observou-se no espelho, como se tivesse de verificar a sua expressão antes de responder.
— A Mona.
— O quê? E só agora é que me dizes?
— Olha, para partilhar casa, é melhor três pessoas do que duas. — Shirin sorriu; nem ela parecia acreditar nas suas palavras.
Peri abanou a cabeça.
— Devias ter-me pedido a opinião.
— Desculpa, esqueci-me. Tenho andado com a cabeça cheia. — A voz de Shirin suavizou-se. — O que foi? Pensei que gostasses da Mona.
— E gosto, mas vocês as duas não se dão bem!
— Precisamente — retorquiu Shirin. — Preciso desse desafio.
— O que é que queres dizer com isso?
A explicação de Shirin teria de esperar. Tinham chegado à morada. Uma casa vitoriana em banda, em Jericho, com janelas de sacada no rés do chão, tetos altos e um pequeno jardim nas traseiras.
Mona estava parada nos degraus da entrada, com sacos e caixas ao seu lado. Acenou-lhes e foi ao encontro delas, com uma expressão a denotar nervosismo. Bastou uma olhadela para Peri perceber que Mona tinha sido enredada na teia de Shirin… exatamente como ela própria.
— Olá, Mona — disse Shirin, depois de pagar e sair do táxi.
Constrangidas, as três ficaram postadas no passeio, a cumprimentarem-se. As diferenças entre elas contrastavam com a harmonia arquitetónica da rua: Mona com o seu comprido casaco ocre e lenço bege na cabeça; Shirin com a sua camada de maquilhagem, vestido preto curto e botas de salto alto; Peri de calças de ganga e gabardina azul.
— Depois, mandamos fazer cópias — anunciou Shirin, tilintando as chaves na mão. — Isto vai ser uma aventura.
Dito isso, abriu a porta e correu para dentro de casa. A seguir, entrou Mona, com o pé direito primeiro, movendo os lábios numa prece.
— Bismillah ir-rahman ir-rahim.
A última a entrar foi Peri, espirrando e tossindo. Embora já tivesse visto fotografias da casa, e apesar de estar mobilada, pareceu-lhe meio vazia. Viver debaixo do mesmo teto com outras pessoas, interagir com elas a horas imprevisíveis, todos os dias, afigurou-se-lhe assustador… Essa proximidade forçada entre pessoas que, não sendo amantes, partilhavam uma certa intimidade. Tentou não dar importância aos seus receios, mas não conseguiu. O destino era um jogador que adorava aumentar as apostas. Peri pressentiu que, no fim daquela experiência, ou seriam grandes amigas, irmãs para a vida, ou iam acabar em brigas e lágrimas.
Se as casas tivessem personalidade, aquela teria a de uma adolescente rabugenta. Nunca parava de se queixar. As escadas chiavam, as tábuas do soalho rangiam, as dobradiças das portas lamuriavam-se, os armários da cozinha protestavam, o frigorífico rouquejava e a máquina do café resmungava, ressentindo-se de cada gota que era obrigada a verter. Apesar disso, pertencia-lhes, desde que pagassem a renda. Até tinham um jardinzinho, onde tencionavam organizar um churrasco quando o tempo melhorasse.
Dos três quartos do andar de cima, dois eram mais ou menos do mesmo tamanho, enquanto o dos fundos era mais pequeno e escuro. Peri insistiu em ficar com esse. Dado o seu parco contributo financeiro, pareceu-lhe justo. Desconfiava que Shirin e Mona tinham, sem a consultar, decidido partilhar as despesas. A maior parte do dinheiro sairia dos bolsos de Shirin, fiel à sua palavra. Mona contribuiria para pagar as contas, que provavelmente não excederiam o que ela costumava pagar pelo quarto na residência universitária. Quanto a Peri, deveria ajudar apenas nas compras de supermercado. Nestas circunstâncias, ela nunca aceitaria instalar-se num dos quartos maiores.
— Que disparate! — protestou Mona. — Temos de tirar à sorte. A que ficar com o palito mais curto dorme no terceiro quarto.
— Quer dizer que preferes deixar isso nas mãos do destino? — disse Shirin, abanando a cabeça, espantada.
— O que é que sugeres? — perguntou Mona.
— Tenho uma ideia melhor — respondeu Shirin. — Alternamos. Todos os meses, arrumamos as coisas e mudamos para o quarto ao lado, como as tribos nómadas. Seremos como os Hunos, mas mais pacíficas. Assim, toda a gente será tratada como igual.
— Bom, agradeço-vos muito, às duas, mas nem pensar — atalhou Peri. — Ou fico com o quarto mais pequeno ou vou-me embora.
Shirin e Mona trocaram um olhar divertido. Nunca a tinham ouvido falar naquele tom.
— Tudo bem — cedeu Shirin. — Mas tens de parar de stressar por causa de dinheiro. A vida é demasiado curta. Sabe-se lá quanto é que eu te vou ficar a dever no fim? Talvez me ensines alguma lição valiosíssima, hã?
Nas horas seguintes, recolheram-se aos respetivos quartos e entretiveram-se a arrumar as suas coisas. Apesar do tamanho reduzido e do mobiliário escasso, o espaço de Peri, cuja janela tinha vista sobre o jardim, seduziu-a de imediato. A sua maior surpresa foi, no entanto, a pesada cama de dossel envolta em cortinados. Era um vestígio de outra época e, quando se deitava nela e fechava as cortinas, Peri sentia-se numa carruagem puxada por cavalos. Havia também um nicho aconchegado junto da janela. Colocou aí uma cadeira e declarou que era o «canto de leitura».
À hora do jantar, bateu à porta do quarto de Mona, que ficava em frente do seu. As duas desceram à cozinha, desejosas de preparar a sua primeira refeição juntas. Ficaram surpreendidas ao ver Shirin já à mesa, a dispor uma garrafa de vinho, um pacote de sumo de maçã, um prato com azeitonas e três copos.
— Temos de comemorar — disse Shirin. — Três raparigas muçulmanas em Oxford! A Pecadora, a Crente e a Confusa.
Seguiu-se um breve silêncio, enquanto Mona e Peri decidiam qual dos epítetos se destinava a cada uma. Peri pegou no copo de vinho e ergueu-o:
— À nossa amizade!
— À nossa crise existencial coletiva! — brindou Shirin.
— Fala por ti — retorquiu Mona, bebericando o sumo de maçã.
— Bom, tu estás em negação — comentou Shirin. — Neste momento, nós, muçulmanos, estamos a passar por uma crise de identidade. Especialmente as mulheres. E as mulheres como nós ainda mais!
— Esse «como nós» significa o quê?
— Significa as mulheres que estão expostas a mais do que uma cultura. Estamos a fazer perguntas muito importantes. Rói-te de inveja, Jean-Paul Sartre! Vê bem! Temos uma crise existencial como tu nunca viste!
— Não gosto desse tipo de conversa — disse Mona, sentando-se. — Porque é que achas que somos assim tão diferentes dos outros? Falas como se viéssemos de outro planeta.
Shirin bebeu um trago de vinho.
— Vê se acordas, mana! Andam loucos pelo mundo fora a fazer coisas completamente doentias em nome da religião, da nossa religião. Talvez não da minha, mas decididamente da tua. Isso não te incomoda?
— O que é que isso tem a ver comigo? — perguntou Mona, espetando o queixo. — Pedes a todos os cristãos que conheces para se desculparem pelos horrores cometidos pela Inquisição?
— Se vivêssemos na Idade Média, sim, provavelmente pedia.
— Ah, quer dizer que os cristãos e os judeus de hoje são todos anjinhos sem asas? — redarguiu Mona. — Já alguma vez passaste por um posto de controlo em Gaza? Não me parece! E o genocídio no Ruanda? Srebrenica? Não culpas todos os cristãos do mundo por essas matanças horrendas, como é óbvio! Então, porquê culpar todos os muçulmanos pelos atos de um bando de tarados?
— Hum, importam-se de parar de discutir? — pediu Peri, entre duas tossidelas. Sentia-se febril.
Shirin insistiu.
— É claro que há montes de marados entre os cristãos e os judeus, e temos de condenar todos os tipos de fanatismo, venham de onde vierem. Mas não podes negar que, neste momento, há mais fanatismo no Médio Oriente do que em qualquer outro lugar. Consegues andar sozinha no Egito sem seres sexualmente atacada? E nem estou a falar de andar na rua à noite! Conheço pessoalmente várias mulheres que foram assediadas a caminho de uma peregrinação. Em lugares sagrados! Em plena luz do dia! Nas barbas da polícia saudita! As mulheres não denunciam estas coisas, porque sentem vergonha. E porque é que somos nós quem sente vergonha e não os molestadores? Há uma tonelada de coisas que temos de questionar.
— Eu estou a questionar — respondeu Mona. — Eu questiono a História. A política. A pobreza mundial. O capitalismo. As diferenças salariais. A fuga de cérebros. A indústria da guerra. Não te esqueças do legado atroz do colonialismo. Séculos de pilhagem e exploração abusiva. É por isso que o Ocidente é tão rico! Deixemos o Islão em paz e comecemos a falar sobre as questões verdadeiramente importantes.
— Típico — retorquiu Shirin, atirando as mãos ao ar, de exasperação. — Culpar os outros pelos nossos problemas.
— Hum… e se jantássemos? — tentou Peri mais uma vez, mas sem esperar resposta. Era uma situação que conhecia demasiado bem… era como se estivesse outra vez a viver com os pais. Acusações iradas a voarem de um lado para o outro, um pingue-pongue de mal-entendidos. Apesar disso, agora era-lhe mais fácil fazer o papel de espectadora. A tensão no ar não a afetava como acontecia em casa. Shirin e Mona não eram os seus pais, a esganarem-se. Não sentia necessidade de fazer de mediadora. Sem qualquer responsabilidade emocional a pesar-lhe nos ombros, a sua mente tinha liberdade para analisar. Por isso, escutou-as, invejando-as intimamente. Apesar da polaridade gritante entre elas, exprimiam-se com igual paixão. Mona tinha a sua fé; Shirin, a sua fúria. E ela, agarrava-se a quê?
— Só estou a dizer — continuou Shirin — que os desafios que um jovem muçulmano tem de enfrentar hoje são mais profundos do que os desafios que se colocam a um monge budista ou a um ministro mórmon. Temos de aceitar isso como um facto.
— Eu não aceito nada — ripostou Mona. — Enquanto tiveres um preconceito contra a tua própria religião, não é possível conversarmos como deve ser.
— Lá vamos nós outra vez — disse Shirin, elevando o tom de voz. — Assim que abro a boca e digo o que penso, ficas ofendida. Alguém me pode explicar porque é que os jovens muçulmanos se ofendem por tudo e por nada?
— Talvez por estarmos a ser atacados? — replicou Mona. — Todos os dias tenho de me defender, quando não fiz nada de mal. As pessoas esperam que eu prove que não sou uma potencial bombista suicida. Sinto-me permanentemente examinada à lupa… fazem ideia da solidão que isso causa?
Como que em resposta, as nuvens de chuva que se tinham acumulado ao longo do dia rebentaram sobre a cidade, fustigando a janela. Peri pensou no rio Tamisa, ali perto, inchando, tentando libertar-se do seu leito.
— Solidão, tu? Não me lixes! — ripostou Shirin. — Tens milhões de pessoas do teu lado. Governos. A religião tradicional. Os média dominantes. A cultura popular. Também partes do princípio de que tens Deus do teu lado, o que deve valer alguma coisa. Ainda queres mais companhia do que essa? Sabes quem são os verdadeiros solitários da nossa região? Os ateus. Os Yazidis. Os gays. As drag queens. Os ambientalistas. Os objetores de consciência. Esses é que são os marginalizados. A menos que recaias numa dessas categorias, não te queixes de solidão.
— Tu não entendes nada — disse Mona. — Já fui intimidade, insultada, expulsa de um autocarro, tratada como se fosse burra… tudo só por causa do lenço que uso na cabeça. Nem imaginas a maneira horrível como já fui tratada! É só um bocado de pano.
— Então, porque é que o usas?
— É uma escolha minha, é a minha identidade! Se eu não me importo com a tua maneira de estar na vida, porque é que te hás de importar com a minha? Quem é que é liberal aqui, pensa lá!
— Que porra de ignorância — retorquiu Shirin. — Primeiro é um lenço, depois são dez, de repente são milhões. Quando dás por ti, é uma república de lenços na cabeça. Foi por isso que os meus pais saíram do Irão: o teu bocado de pano forçou-nos ao exílio!
A cada palavra que era proferida, a expressão de Peri tornava-se mais dura. Cravou os olhos na mesa de madeira, lascada num canto. Sempre se sentira atraída por cicatrizes e imperfeições por baixo de uma superfície lisa.
— Qual é a tua opinião, Peri? — perguntou Shirin, de repente.
— Sim, diz lá: qual de nós tem razão? — disse Mona.
Peri mudou de posição, nervosa sob o olhar delas. Fitou um rosto expectante e depois o outro, procurando desajeitadamente as palavras. Shirin tinha razão nalguns aspetos, disse, e noutros era Mona quem estava certa. Por exemplo, concordava que a vida podia ser sistematicamente injusta para um membro de uma minoria — fosse esta cultural, religiosa ou sexual — numa cultura muçulmana fechada, embora também tivesse noção das dificuldades que se deparavam a uma mulher que usasse lenço na cabeça numa sociedade ocidental. Para si, dependia tudo do contexto. E queria sempre ajudar quem fosse impotente, quem estivesse em desvantagem em determinado lugar e em determinado momento. Por isso, não era categoricamente a favor de ninguém, a não ser da parte mais fraca.
— Isso é demasiado abstrato — respondeu Shirin, tamborilando os dedos impacientemente na mesa. A avaliar pela expressão de Mona, por uma vez pareciam concordar uma com a outra. A resposta de Peri, por muito equilibrada que fosse, não satisfizera ninguém.
— Deixa-me esclarecer uma coisa — disse Mona, virando-se novamente para Shirin. — Não tenho nada contra os ateus. Nem contra os gays. Nem contra as drag queens. A vida é deles. Mas não gosto de islamófobos. Se te vais pôr a falar como uma neoconservadora belicosa, é melhor eu sair desta casa.
— Eu, neoconservadora? — Shirin pousou o copo com tanta força que o vinho salpicou a mesa. — Queres ir-te embora? Tudo bem! Mas isso é a saída mais fácil. Temos de tentar captar o que a outra está a dizer.
«Captar. Tenho de me lembrar desta expressão», pensou Peri.
— Concordo — disse Mona.
— Excelente — respondeu Shirin. — Vamos escrever um Manifesto das Mulheres Muçulmanas. Daria uma bela sigla, MMM. Pomos no texto tudo o que nos deixa frustradas. O fanatismo. O sexismo.
— A islamofobia — acrescentou Mona.
— Acho que devíamos mesmo começar a preparar o jantar — disse Peri.
Riram-se todas. Por um instante, foi quase como se a tempestade tivesse passado. Reinava a acalmia. Lá fora, a chuva abrandara; o entardecer transformou-se em anoitecer; a Lua era um talismã nacarado no colo do céu. O Tamisa, do lado de lá de Port Meadow, corria com força em redemoinhos profundos, serpeando, prateado, na escuridão.
— Sabes que mais — disse Mona, com um suspiro resignado, como se revelasse algo que demorara algum tempo a compreender. — Nasceste numa religião extraordinária, deram-te um Profeta maravilhoso como guia, mas, em vez de te dares por abençoada e tentares ser melhor enquanto pessoa, a única coisa que fazes é queixares-te.
— Por falar no Profeta — disse Shirin —, há coisas que me parecem…
— Nem penses — atalhou Mona, com a voz trémula pela primeira vez. — Podes atacar-me. Não tem mal. Mas não permito que ataquem o meu Profeta quando pouco ou nada sabem sobre ele. Podes criticar o mundo muçulmano à vontade, mas deixa-o fora disso.
Shirin bufou de frustração.
— Porque é que havemos de poupar seja quem for ao pensamento crítico? Especialmente se estamos na universidade!
— Porque aquilo a que chamas pensamento crítico é um disparate interesseiro! — retorquiu Mona. — Porque eu sei o que vais dizer e também sei que o teu olhar é impuro e o teu conhecimento contaminado. Não podes avaliar o século VII através da lente do século XXI!
— Posso, sim senhora, se o século VII estiver a tentar dominar o século XXI!
— Quem me dera que te sentisses orgulhosa de quem és — disse Mona. — Mas sabes o que és?… Uma muçulmana que odeia ser muçulmana.
— Ai! — redarguiu Shirin, fingindo-se magoada. — Nunca percebi as pessoas que se sentem orgulhosas de ser americanas, árabes ou russas… cristãs, judias ou muçulmanas. Porque é que haveria de sentir satisfação por uma coisa que não escolhi? É como dizer que me orgulho de medir um metro e setenta e cinco. Ou congratular-me por ter um nariz de papagaio. É a lotaria genética!
— Mas sentes-te muito contente com o teu ateísmo — disse Mona.
— Bom, eu costumava ser uma ateia militante… já não sou, graças ao Professor Azur — explicou Shirin, num tom teatral. — Mas esforcei-me muito para ser cética. Empenhei-me nisso de corpo e alma e com muita coragem. Separei-me de multidões e congregações! Não foi uma coisa que me aterrou no colo, por isso, sim, orgulho-me do percurso que fiz.
— Então, é verdade, desprezas a tua cultura. Desprezas… desprezas-me a mim. Para ti, eu sou antiquada ou sofri uma lavagem ao cérebro. Sou oprimida. Ignorante. Mas eu estudei o Alcorão, ao contrário de ti. Achei-o profundamente eloquente, sábio, poético. Estudei a vida do Profeta. Quanto mais lia sobre ele, mais admirava a sua personalidade. A minha fé dá-me paz. Mas provavelmente isso nem te interessa! Não sei porque é que aceitei vir cá para casa.
Dito isso, Mona precipitou-se escada acima e foi para o quarto. As tábuas do soalho protestaram sob o peso das emoções da rapariga.
Shirin pegou no copo vazio e atirou-o com toda a força contra a parede. Choveram pequeninos fragmentos, como tristes confetti. Peri estremeceu, mas levantou-se de imediato para varrer o chão.
— Não te mexas — disse Shirin. — Fui eu que fiz esta porcaria toda. Eu limpo.
— Está bem — respondeu Peri. Sabia que Shirin só apanharia os cacos maiores e que as lascas ficariam espetadas entre as tábuas, prontas para alguém se cortar nelas, um dia. — Vou para o quarto.
Shirin soltou um suspiro.
— Boa-noite, Ratito.
Peri deu uns passos, mas depois hesitou, de olhos fixos em Shirin, cujo rosto perdera subitamente a sua audácia.
— Ele avisou-me que não seria fácil — murmurou Shirin para dentro, quando pensava que já estava sozinha.
— Quem é que te avisou? — perguntou Peri.
Shirin levantou a cabeça, as suas pálpebras a adejarem, alvoroçadas.
— Nada — respondeu. O seu tom denotava uma certa irritação que não existia antes. — Ouve, mais tarde conversamos, está bem? Agora, preciso de um banho de imersão. Foi um dia muito longo.
Incapaz de dormir, sozinha na cozinha, Peri serviu-se de mais um copo de vinho, com a mente num turbilhão. Teria ela descoberto um segredo, por acaso? O comentário inadvertido de Shirin aborreceu-a. Quer através da intuição quer da razão, desconfiou que, por trás da ânsia de Shirin de irem viver juntas, se encontrava um mestre manipulador: Azur.
Lembrou-se de um trecho de um dos primeiros livros dele, em que explorava a ideia peculiar de que as pessoas com discordâncias amargas e recriminações mútuas deveriam ser fechadas juntas num espaço e obrigadas a encararem-se olhos nos olhos. Um recluso supremacista branco deveria ser posto na mesma cela que um recluso negro; um mineiro de jade numa sala com um ambientalista; um caçador de animais selvagens com um conservacionista de espécies em perigo. Quando lera essas linhas, não lhes dera muita importância, mas, de repente, tudo encaixava. Estava dentro de um jogo, desempenhando involuntariamente um papel, controlada por um cérebro à distância.
Consternada, subiu as escadas. A porta do quarto de Mona estava fechada. Da casa de banho, ao fundo do corredor, chegou-lhe o som de água a correr. Lá dentro, Shirin entoava uma canção que lhe pareceu vagamente conhecida, uma melodia insistente.
Peri entrou no quarto de Shirin em bicos dos pés. Havia caixas de cartão em todos os cantos. Era óbvio que Shirin não arrumara quase nada. Numa das caixas maiores, aberta, estava escrito em letras maiúsculas: LIVROS. Peri viu que alguns tinham sido postos na prateleira, mas, pelos vistos, Shirin cansara-se da tarefa, deixando o resto onde estava.
Peri vasculhou o conteúdo. Não demorou a encontrar o que procurava. Título a título, tirou toda a bibliografia do Professor Azur. Pegando no primeiro, abriu-o na folha de rosto. Estava autografada, como adivinhara.
«Para a doce Shirin,
Eterna emigrante, rebelde destemida, proscrita filosófica,
A rapariga que sabe fazer perguntas e não tem medo de perseguir as respostas…
A.Z. Azur»
Peri fechou o livro com uma pontada de ciúmes. Sabia que Shirin ia ao gabinete do professor regularmente, pelo menos duas vezes por semana, e que os dois eram bastante chegados, mas foi uma tortura ver como Shirin era preciosa aos olhos dele. Verificou os outros títulos e descobriu que também eles estavam assinados. O último em que pegou, a publicação mais recente de Azur, tinha uma inscrição mais longa.
«Para a Shirin, que é, ao contrário do seu nome,
doce e intensa, como as romãs da Pérsia,
a terra do leão e do Sol…
Mas tem de aprender a conhecer, se não a amar, o que despreza;
porque só no espelho do Outro
podemos vislumbrar o rosto de Deus.
Ama, minha querida,
Ama a tua meia-irmã…
A.Z. Azur.»
Qual meia-irmã? Peri sabia que Shirin não tinha nenhuma meia-irmã… a menos que fosse uma metáfora para «a outra mulher».
Peri inspirou fundo quando se apercebeu da enormidade do esquema. Shirin desprezava a religião e as pessoas religiosas. Embora atacasse todas as crenças, a que ela mais criticava era a fé em que fora criada. Era particularmente alérgica às raparigas muçulmanas que cobriam a cabeça por vontade própria. «Os mulás e a polícia da moral silenciam-nos por fora. Mas as raparigas que acreditam genuinamente que se devem cobrir para não seduzirem os homens silenciam-nos por dentro», dissera ela, uma vez. Quanto mais Peri pensava no assunto, mais se convencia de que o Professor Azur colocara Shirin num laboratório social, para a obrigar a interagir com a sua «Outra»: Mona.
Embora Peri se sentisse abalada com essa descoberta, havia algo que a perturbava ainda mais. Talvez não fosse só Mona. Engoliu em seco, vendo-se a si própria, pela primeira vez, através dos olhos de Shirin. A sua falta de certeza, a sua hesitação, timidez, passividade… Características que uma pessoa como Shirin abominaria. Três Mulheres Muçulmanas em Oxford: a Pecadora, a Crente e a Confusa. Não era só Mona quem tinha sido escolhida para aquela bizarra experiência social. De repente, Peri percebeu tudo: a segunda meia-irmã era ela própria.
Arrumou o livro, fechou a caixa, saiu do quarto. Estava tão arrependida de ter deixado a paz e sossego do seu quarto na residência universitária e ido para aquela casa, onde todos os seus gestos seriam relatados ao Professor Azur. Sentiu-se uma mosca dentro de um frasco de vidro; quente e segura à primeira vista, mas, ainda assim, encurralada.