O peão

Oxford, 2002

Peri atravessou Radcliffe Square de bicicleta, com um saco cheio de livros e um cacho de uvas que sobrara do almoço. Em frente à Câmara de Radcliffe, avistou Troy sentado num banco com um grupo de amigos, a falar animadamente. Quando ele viu Peri, soltou-se do grupo e dirigiu-se para ela.

— Olá, Peri. Ainda andas a estudar com o Azur?

— E tu… ainda andas a espiá-lo?

A maneira como ele revirou o lábio foi suficientemente expressiva.

— Esse tipo não devia ser autorizado a dar aulas numa instituição digna de respeito. Sabias que ele se está a borrifar para os alunos? A única coisa que lhe interessa é o ego dele.

— Os alunos gostam dele.

— Sim, claro. Sobretudo as alunas… A tua amiga, por exemplo, a Shirin. — Deu uma estranha sacudidela à cabeça, quando pronunciou o nome dela.

Peri fincou o tacão do sapato no cascalho.

— O que é que ela tem?

— Oh, deixa-te de coisas, como se tu não soubesses. — Ficou especado a olhar para ela. — É preciso dizê-lo com todas as letras?

— Dizer o quê?

Os olhos de Troy cintilaram.

— Que o Azur tem um caso com a Shirin.

Um silêncio conturbado abateu-se entre eles os dois, embora por pouco tempo.

— Mas ela foi aluna dele… — disse Peri, deixando as suas palavras esmorecerem.

— Ela andava enrolada com ele quando estava a fazer o seminário. Aposto que corrigiam os testes dela na cama, juntos.

Peri desviou os olhos. Nesse momento, viu o que lhe tinha passado despercebido durante todo esse tempo: o ódio que Troy sentia por Azur tinha muito ciúme à mistura. O rapaz estava apaixonado por Shirin.

— Às vezes, ela vai ao gabinete dele. Trancam a porta e ficam lá dentro vinte minutos a meia hora, dependendo do dia. Já os cronometrei, enquanto esperava lá fora.

— Para. — Peri sentiu o rosto aquecer.

— Eu sei que também vais ao gabinete dele. Já te vi.

— Para falar sobre o meu… — Peri fez uma pausa antes de acrescentar: — … o meu trabalho.

— Mentirosa, não tens seminário com ele este período!

— Eu… eu tinha uma coisa importante para lhe dizer — explicou Peri.

Não lhe podia contar que tinha ido ao gabinete umas quantas vezes para falar sobre o bebé na bruma. Azur fizera-lhe dezenas de perguntas exaustivas sobre a primeira vez que vira o bebé e a maneira tão diferente como os pais dela tinham reagido. O medo do jinn, a ida ao exorcista, as coisas que ela rabiscava no seu diário sobre Deus… Ela contara-lhe tudo, transformando as suas recordações de infância numa ponte que, esperava ela, lhe permitiria, um dia, alcançar o coração dele. Quando Azur se fartara, porém, desmontara a ponte e pusera fim aos convites para ela ir ao seu gabinete.

— Ainda não percebeste? — insistiu Troy. — O homem é um predador egocêntrico. Anda à procura de mentes jovens e corpos jovens para se alimentar.

— Tenho de me ir embora — disse Peri, numa voz sumida.

Assolada por uma terrível enxaqueca, passou por uma farmácia a caminho de casa. Desde que chegara a Oxford, já experimentara todos os analgésicos de venda livre. Percorreu os corredores familiares, abrandando junto das prateleiras cheias de contracetivos em variedades que nunca vira em Istambul. Embalagens reluzentes, cores voluptuosas, designs grotescos, palavras fervilhantes. Passou-lhe pela cabeça que, se os pais tivessem usado um daqueles produtos, ela nunca teria nascido. Nem ele. Teria sido um delicioso nada. Sem sofrimento, nem culpa, nada.

Demorara muitos anos a descobrir a verdade que os pais tinham cuidadosamente escondido de si, enquanto era pequena. Era verdade que Selma tinha tido uma gravidez inesperada numa idade tardia, mas dera à luz duas crianças e não uma. Uma menina e um menino. Peri e Poyraz: para a menina, o nome de uma fada feita de fio dourado e, para o menino, o nome do vento nordeste mais selvagem.

Quando tinham quatro anos, numa tarde quente e mormacenta, Selma deixou as crianças por breves instantes sozinhas no sofá, enquanto ia à cozinha. Estava a fazer doce de ameixa, uma das suas especialidades. Tinham comprado a fruta em abundância no mercado local e havia algumas peças numa taça, em cima da mesinha de apoio, e as restantes estavam na bancada da cozinha à espera de serem cozidas, adoçadas e conservadas. O mundo estava tingido de roxo.

Entediada, Peri conseguiu descer do sofá para o tapete. Levou a mão às ameixas da taça, pegou numa, inspecionou-a com curiosidade e deu uma dentada. Demasiado ácida. Mudou de ideias. Deu-a ao irmão, que aceitou a prenda com júbilo. Aconteceu numa questão de segundos, apenas. Quando Selma voltou para a sala, o filho tinha deixado de lutar para respirar e o seu rosto estava da cor do fruto que lhe bloqueava a passagem do ar. Peri assistira a tudo, sem compreender, sem se mexer.

— Porque é que não me chamaste?! — gritou Selma à filha, em frente de familiares e vizinhos que se tinham reunido lá em casa, depois do funeral. — O que é que te passou pela cabeça? Viste o teu irmão morrer e não deste um ai. És má!

A distância entre elas nunca seria superada. Peri percebeu, no seu âmago, que a mãe a culparia sempre pela morte do seu irmão gémeo. «Qual é a dificuldade para uma criança de quatro anos de gritar por ajuda? Se ela me tivesse chamado, eu tê-lo-ia salvado.»

Entorpecimento. Era isso que Peri procurava acima de tudo. Se conseguisse simplesmente não sentir ou não se lembrar de nada… Mas, por mais que tentasse, o passado teimava em voltar e, com ele, a dor. A recordação dessa tarde acompanhava-a através do fantasma latente do seu irmão gémeo. E o mesmo acontecia com a culpa e a vergonha e o ódio a si mesma, que se lhe instalara no peito, como se fosse, não um sentimento, mas uma substância dura e física.

Nessa mesma noite, Peri encontrou Shirin na cozinha, a cortar tomate às rodelas para uma salada. Shirin estava a ter cuidado para não engordar, porque o seu peso oscilava como o seu estado de espírito. Mona saíra para jantar com uns familiares que tinham vindo de fora e ia chegar tarde a casa.

— Preciso de te perguntar uma coisa — disse Peri.

— Sim, força.

— Isto foi um plano do Azur? Partilharmos casa. A nossa amizade, desde o primeiro instante… foi ideia dele?

Shirin arqueou uma sobrancelha.

— O que é que te leva a pensar uma coisa dessas?

— Por favor não mintas… não me voltes a mentir — disse Peri. — Isto é uma experiência dele, certo? O laboratório social do Azur.

— Uau, que conspiração! — Shirin atirou o tomate para dentro de uma taça com alface e acrescentou umas azeitonas. — O que é que tens contra o professor?

— Tenho a sensação de que ele gosta de interferir na vida dos alunos.

— Hum! — disse Shirin. — Se não o fizer, como é que pode ensinar? Como é que achas que os estudiosos ensinaram os seus discípulos, ao longo da História? Mestres e aprendizes. Filósofos e os seus protegidos. Anos de trabalho árduo e disciplina. Mas nós esquecemo-nos de tudo isso. Atualmente, as universidades dependem de tal maneira do dinheiro que os estudantes que têm capacidade de pagar propinas são tratados como se fossem da realeza.

— Ele não é nosso mestre e nós não somos as aprendizas dele.

— Pois eu sou — retorquiu Shirin, pegando nos talheres e começando a mexer a salada. — Eu sou uma discípula devota.

Peri ficou calada, sem saber o que responder.

— O respeito que sentimos pelo Azur é a única coisa que a Mona e eu temos em comum. O que é que se passa contigo? Pensei que gostasses do professor.

Peri sentiu as faces enrubescerem; detestava o facto de ser tão transparente.

— Preocupa-me que ele espere demasiado de nós e que não consigamos estar à altura das expectativas.

— Ah, estás com medo de o desiludir — concluiu Shirin, com um sorriso cúmplice, pegando na taça e dirigindo-se para o quarto. — Então, não o desiludas.

— Espera — pediu Peri.

Tinha a boca seca. Temia as consequências, se revelasse a pergunta que andava a roê-la por dentro e, no entanto, tinha de a fazer.

— Tens um caso com ele?

Shirin, a meio das escadas, deteve-se. Pondo uma mão na balaustrada, fixou a amiga, com os olhos como bolas de fogo.

— Se me perguntas isso por paranoia, o problema é teu e não meu. Se me perguntas isso por ciúmes, mais uma vez o problema é teu e não meu.

— Não é nem por paranoia nem por ciúmes — respondeu Peri, incapaz de baixar a voz.

— A sério? — Shirin riu-se. — No Irão, a Mamani ensinou-me um provérbio: «Quem se faz de rato será comido por gatos.»

— O que é que estás a querer dizer?

— Para não te meteres na minha vida, Ratito, senão como-te viva.

Dito isso, Shirin subiu intempestivamente o resto dos degraus, deixando Peri na cozinha, a sentir-se pequenina e insignificante.

Detestava Azur! A arrogância dele. A temeridade. A indiferença com que a tratava a si, enquanto namoriscava com Shirin e sabia-se lá com quem mais. Sentiu-se tonta; dentro da sua alma, girava uma roda de ódio, rodopiando desgovernadamente. Criara expectativas tão altas em relação a ele. Com a sua sabedoria e visão, ele indicar-lhe-ia o caminho para sair do dilema que a atormentava desde a infância. Mas não, ele não fizera nada disso.

Acima de tudo, detestava-se a si própria: a sua mente atormentada, que gerava ansiedades e pesadelos em vez de pensamentos felizes; o seu corpo inapropriado, que ela suportava como um fardo diário, incapaz de se deleitar com os seus prazeres; as suas feições insípidas, que tantas vezes desejara trocar com as de outra pessoa qualquer… com o seu irmão gémeo, por exemplo. E porque é que ele morrera e ela sobrevivera? Seria mais um dos terríveis erros de Deus?

Tinha a certeza de que não conseguiria ser nem como Shirin — ousada, confiante — nem como Mona — crente, resiliente. Estava cansada de si própria, magoada com o passado, receosa do futuro. Negra de espírito, confusa por natureza, tímida como um tigre recém-nascido, mas incapaz de fazer jus ao seu lado selvagem… Ninguém podia imaginar como era esgotante ser Peri. Quem lhe dera adormecer e acordar transformada noutra pessoa. Ou melhor, nem sequer acordar.

Nessa noite, o bebé na bruma voltou a aparecer. A mancha roxa na face parecia ter aumentado. Verteu lágrimas roxas nos lençóis da cama dela. Uma cor escura e intensa espalhou-se a toda a volta, reminiscente de ameixas maduras. O bebé não parava de falar na sua linguagem truncada, urgindo-a a fazer algo que há muito já deveria ter feito. Dessa vez, Peri compreendeu o que ele lhe dizia e acedeu. Talvez reencontrasse o malfadado ouriço-cacheiro. O que seria feito do animal, do seu corpo, da sua alma? Descobriria, em primeira mão, o que acontecia às criaturas a quem era recusada a entrada no paraíso divino.