A passagem

Istambul, 2016

Quando Peri saiu para o terraço, para ligar a Shirin, reparou que estavam duas pessoas encolhidas a um canto e, embora se encontrassem meio na sombra, era impossível não as reconhecer: o homem de negócios e o administrador do banco. De ombros curvados, cabeças baixas, olhos fixos no chão, pareciam estar a discutir um assunto de uma certa gravidade.

— E, então, que vais fazer? — perguntou o administrador.

— Ainda não decidi — respondeu o homem de negócios, cuspindo uma pluma de fumo de charuto. — Mas juro por Deus que vou fazer aqueles cabrões pagar pelo que fizeram. Vão perceber com quem se meteram.

— Certifica-te de que não há nada por escrito — aconselhou o administrador.

Os dois homens não tinham visto Peri parada junto da porta. Discretamente, ela afastou-se, com a cabeça tonta devido ao que acabara de ouvir. As fotografias emolduradas que vira no escritório e que exibiam os laços dele com líderes corruptos e ditadores do Terceiro Mundo; os rumores em como ele desviava fundos públicos; a sua ligação a chefes da máfia… tudo encaixava. Os negócios do seu anfitrião eram duvidosos e ela desconfiava que vários convidados do jantar — incluindo, porventura, o seu marido — sabiam disso. Não iam, contudo, deixar que uma reputação dúbia interferisse com um bom serão passado na companhia de um homem rico e poderoso. Em que momento é que uma pessoa se torna cúmplice de um crime: quando participa de maneira ativa no seu processo ou quando finge, passivamente, não saber de nada?

Havia uma pequena passagem entre a cozinha e a sala de estar, com um espelho ao longo de uma parede. Peri postou-se aí, nesse espaço estreito, agarrada ao telemóvel como se tivesse receio de que alguém lho tirasse. Sempre que uma empregada entrava ou saía pela porta de vaivém, ela espreitava para dentro da cozinha; o chefe estava a picar alho, batendo com a faca na tábua de madeira ao ritmo de um fandango. O fulano parecia cansado, irritado. Depois da comida toda que tinha preparado, acabavam de lhe pedir para cozinhar uma sopa de tripas, como cura para os efeitos do consumo de álcool, segundo a tradição de Istambul.

Peri viu o chefe murmurar qualquer coisa ao seu assistente, que lançou a cabeça para trás, rindo-se. Tinha a certeza quase absoluta de que eles haviam escutado tudo o que fora dito à mesa e feito troça de toda a gente. A porta fechou-se, separando-a do mundo animado da cozinha. A sós no corredor, foi invadida por uma sensação familiar de pânico. Ousar fazer uma coisa que foi adiada durante demasiado tempo era como mergulhar num mar gelado. Se hesitássemos um mero segundo, perderíamos a coragem. Rapidamente, marcou o número de Shirin. Ela atendeu ao primeiro toque.

— Olá, Shirin… É a Peri.

Uma inspiração profunda.

— Sim, eu sei.

A voz dela não tinha mudado absolutamente nada: o mesmo tom ríspido, ressonante, confiante.

— Já lá vai algum tempo — disse Peri.

— Nem quis acreditar quando ouvi a tua mensagem — respondeu Shirin. Depois, mais branda: — Tem piada, eu tinha ensaiado este momento. Planeado o que diria, se alguma vez voltasses a ligar, mas agora…

— O que é que dirias? — perguntou Peri, passando o telemóvel para o outro ouvido.

— Acredita que é melhor nem saberes — respondeu Shirin. — Porque é que não telefonaste antes?

— Tive medo de que ainda estivesses irritada.

— E estava — confirmou Shirin. — Continuo sem perceber, sem te perceber a ti. Foi uma loucura o que fizeste a ti própria… e a ele. Nem sequer lhe pediste desculpa.

— Nós tínhamos feito um acordo — disse Peri. As palavras, à semelhança de cada centímetro do seu corpo, pareceram-lhe frágeis, quebradiças. — Ele obrigou-me a prometer que nunca lhe pedia desculpa, acontecesse o que acontecesse.

— Tretas.

Peri engoliu um suspiro.

— Eu era muito nova.

— Eras uma ciumenta, isso sim.

Peri fez um sinal de assentimento para si.

— Era… era, sim.

A porta da cozinha abriu-se; saiu uma empregada, apressada, com uma bandeja grande cheia de tigelas fumegantes. Um cheiro intenso a alho e vinagre bafejou as narinas de Peri.

— Onde é que estás? — perguntou Shirin.

— Numa festa, numa mansão à beira-mar. Aquários, carteiras de marca, charutos bem grossos, trufas… Ias detestar.

Shirin riu-se.

— Tive um dia tão bizarro — contou Peri. Agora que já começara a falar, as palavras fluíam-lhe sem esforço. — Fui assaltada. Podia ter matado o sacana. — Não disse que ele tinha tentado violá-la. Se Shirin tivesse passado por uma experiência semelhante, tê-la-ia partilhado, sem qualquer vergonha. Eram tão diferentes, em novas; e continuavam a sê-lo. — Ele encontrou uma fotografia nossa que eu guardo na carteira.

— Andas com uma fotografia nossa na carteira? — perguntou Shirin. — Qual?

— Lembras-te daquela que tirámos à frente da Biblioteca Bodleiana, no inverno? — Peri não esperou pelo comentário de Shirin. — Tu, a Mona e eu… e o Professor Azur. Durante estes anos todos, convenci-me de que tinha deixado Oxford para trás, mas tenho andado a enganar-me a mim própria.

— Nunca percebi como é que pudeste perder o interesse pelos estudos. Eras uma aluna brilhante.

— As pessoas mudam… — respondeu Peri. — Tenho filhos, marido… — Fez uma pausa. — Sou dona de casa, membro de uma obra de beneficência. Organizo festas para receber o patrão do meu marido… exatamente o tipo de mulher em que sempre tive pavor de me transformar. Uma versão moderna da minha mãe. E sabes que mais? Eu gosto… pelo menos, a maior parte do tempo.

— Andaste a beber? — perguntou Shirin.

— Mais do que devia.

Um riso baixinho como um leve restolhar de folhas. Se Shirin disse mais alguma coisa, Peri não ouviu, porque, nesse instante, o médium passou por si, de braço dado com a anfitriã, tendo inspecionado a casa toda à caça do mau-olhado. Virou-se de lado e olhou para Peri com um ligeiro revirar de lábios, como soubesse com quem ela estava a falar.

— Os teus gémeos estão bons? — perguntou Shirin.

— Como é que sabes que tenho gémeos?

— Ouvi dizer. — Peri não teve dificuldade em adivinhar quem era a fonte; ao longo dos anos, tinham ambas mantido o contacto, em separado, com Mona.

— Estão cada vez mais crescidos. A minha filha lançou-se numa guerra fria contra mim. Até ver, está a ganhar.

Shirin soltou um suspiro de empatia. Estava a ser simpática… muito mais simpática do que Peri esperava.

— Como é que vai tudo aí em casa? — perguntou Peri. Também ela tinha ouvido histórias. Sabia que Shirin e o seu parceiro de longa data — um advogado de defesa dos direitos humanos — tinham perdido a conta à quantidade de vezes que se haviam separado e voltado a juntar.

— Bem… na verdade, estou grávida. O bebé nasce em maio.

Então, era isso. As hormonas. Shirin estava prestes a ser mãe. Encontrava-se numa fase em que o perdão surgia mais naturalmente do que o rancor. Era difícil uma pessoa guardar velhos ressentimentos quando se preparava para acolher uma nova vida.

— Parabéns, que notícia maravilhosa — disse Peri. — Fico muito feliz por ti. Menino ou menina?

— Menino.

— Já escolheste o nome? — perguntou Peri, e adivinhou imediatamente a resposta.

— Acho que já sabes que nome lhe vou dar — respondeu Shirin. Seguiu-se um brevíssimo silêncio. Um vestígio de inimizade infiltrou-se no silêncio, como fumo de um velho samovar. — Odiei-te durante tanto tempo que já se me esgotou o ódio.

— E o Azur? O que é que ele sente em relação a mim?

Tinham passado quase catorze anos desde a última vez que falara com ele. Por vezes, Peri ficava na dúvida se a presença do professor na sua vida teria sido tão forte como se lembrava, de tal maneira ele se esbatera por completo no passado.

— Descobre por ti. Ele deve estar em casa neste momento. Tens uma caneta?

Apanhada de surpresa, Peri olhou em redor.

— Espera um segundo.

Abriu a porta da cozinha, de telemóvel colado à orelha, e com a mão enfaixada, fez um gesto de quem escreve. O chefe deu-lhe uma caneta de tinta permanente que tinha no bolso do casaco e uma página de uma bloco de notas que estava colado no frigorífico.

— Obrigada — agradeceu Peri, baixinho.

Shirin repetiu o número, mais para ter qualquer coisa para dizer do que por ser necessário. Acrescentou:

— Liga-lhe.

Nesse instante, o toque da campainha no andar de baixo ecoou pela mansão inteira. Uma empregada saiu a correr da cozinha para ir ver quem era. Parecia levar comida escondida na mão. Peri perguntou-se se os empregados teriam podido provar algum dos pratos fabulosos que tinham servido; se teriam sequer jantado.

Ouviu-se um estrondo súbito: uma porta aberta a bater contra uma parede, seguida de uma sucessão de ruídos: um guincho, abafado; passos, precipitados e pesados.

— Tenho saudades tuas — disse Peri, involuntariamente.

— Também tenho saudades tuas, Ratito.

Do corredor, Peri viu, no lado oposto da sala de estar, dois homens entrarem de rompante, com as caras tapadas por lenços pretos e de metralhadora nas mãos. Um deles gritou, em altos berros:

— Toda a gente de pé!

— O que é que se passa? — gritou a mulher de negócios.

— Cala-te! Obedeçam-nos, imediatamente!

— Não podem falar comigo assim…! — A mulher de negócios emitiu um som abafado e asfixiante. O marido ainda devia estar no terraço.

— Mais uma parvoíce e eu juro por Deus que se vão arrepender!

O clique metálico de um gatilho. Era a segunda vez na vida que Peri via uma arma de tão perto. Ao contrário daquela com que o seu irmão Umut fora apanhado, as armas dos saqueadores eram grandes e verde-escuras.

— Estás aí, Ratito? — perguntou Shirin.

Peri não podia responder. Nem uma palavra. Muito devagar, silenciosa como o nevoeiro que avançava sorrateiramente vindo do Bósforo, desligou.