O copo de xerez

Oxford, 2002

O alojamento do reitor ocupava um lado inteiro de um edifício do século XV. Azur dirigiu-se para a porta preta e polida e tocou à campainha. Uns segundos depois, um empregado mais velho apareceu e mandou-o entrar para o átrio amplo.

— Faça o favor, senhor professor, siga-me — disse o homem, conduzindo Azur ao longo de umas escadas de carvalho isabelinas, através de um comprido corredor apainelado até ao gabinete do reitor.

Lá dentro, o reitor estava ocupado a organizar a sua papelada — a prioritária no tabuleiro marfim; a importante, mas menos urgente, no tabuleiro castanho, e tudo o resto no amarelo — como fazia sempre que tinha uma reunião que preferia não ter. Ia ser uma conversa difícil e precisava de ordenar as ideias. Entretanto, concentrou-se em arrumar a secretária. Os post-its, o agrafador, o abre-cartas de madrepérola com o cabo de prata… Guardou os lápis — todos afiados na perfeição — numa caixa cilíndrica de couro, uma prenda da sua filha.

Uma pancada seca na porta arrancou-o aos seus pensamentos.

— Entre.

Azur entrou, envergando um casaco de veludo, de um roxo profundo e intenso, perfeito. Por baixo, levava uma camisola de gola alta de um tom mais claro. O cabelo estava, como sempre, estudadamente desgrenhado.

— Bom dia, Leo. Há quanto tempo.

— Azur, que bom ver-te — respondeu o reitor, numa voz educada e afetuosa, mas tensa. — Há quanto tempo, sim. Estava a pensar em tomar um chá. Fazes-me companhia ou… que horas são?… preferes um copo de xerez?

Azur nunca adotara o hábito dos professores de tomar xerez ao fim da manhã, mas nesse dia pensou que ele, ou o reitor, talvez precisasse de uma bebida mais forte.

— Sim, pode ser.

Daí a uns segundos, apareceu um empregado ainda mais velho, com um semblante reservado como que esculpido em pedra e as costas curvadas pelos anos de serviço. Tal como os retratos nas paredes e as cadeiras de carvalho góticas junto da janela, era difícil imaginar uma época em que ele não tivesse feito parte da universidade.

Durante uns momentos, os dois homens observaram o empregado, com um braço atrás das costas e a mão a tremer, a servir o xerez com uma angustiante lentidão. Garrafa de prata, copos de cristal, amêndoas com sal.

— Li a entrevista que deste recentemente ao Times, muito boa — comentou o reitor, quando ficaram novamente a sós.

— Obrigado, Leo.

Seguiu-se um silêncio constrangido.

— Sabes que te admiro imenso — disse o reitor. — Temos sorte por podermos contar contigo como professor. E eu gostava muito da Anissa.

— Obrigado, mas não me chamaste para me falares sobre a minha falecida mulher — atalhou Azur. — Conheço-te há tempo suficiente para saber quando estás aborrecido. O que é que se passa, diz lá?

O reitor pegou nos seus blocos de post-its. Tinha-os ordenado por cores: os laranjas, os verdes, os rosas. Sem levantar os olhos para Azur, murmurou:

— Surgiram queixas acerca de ti.

Azur perscrutou o reitor: o cabelo grisalho nas têmporas, a testa enrugada, a contração nervosa da boca; os traços, sem tirar nem pôr, do funcionário da Tesouraria que em tempos foi.

— Não precisas de pôr paninhos quentes — disse.

— Não, claro que não. Nem me passaria pela cabeça fazê-lo. Sempre que foste atacado, e sabe Deus que isso já aconteceu umas quantas vezes… quer por causa das tuas opiniões quer devido ao teu estilo de ensino… Isto é, és popular, mas nem toda a gente gosta de ti, sabes disso certamente… Enfim, sempre te apoiei, este tempo todo.

— Eu sei — respondeu Azur calmamente.

O reitor construiu uma pequena torre com os blocos de post-its.

— Fiquei do teu lado, porque acreditava na tua integridade intelectual. Respeitava o teu empenho no conhecimento e na objetividade. — Um suspiro. — Porquê, pergunto-te eu, porque é que incomodaste tanta gente?

Estudantes em lágrimas, protestos orais e escritos contra Azur e os seus métodos de ensino, acusando-o de pressionar demasiado os alunos, de expor as fraquezas deles, de os humilhar em frente dos colegas, de ser ostensivamente controverso e ofensivo.

— Ofensivo — disse o reitor em voz alta.

— Eles têm de aprender a não ficar ofendidos — explicou Azur. — Não estamos no jardim de infância. Estamos numa universidade. Está na hora de crescerem. Não podem ser mimados e tratados nas palminhas das mãos para sempre. Os nossos alunos têm de aprender a lidar com as coisas, com as merdas que acontecem.

— Sim, mas não é propriamente essa a tua função.

— Eu acho que é.

— A tua função é ensinar-lhes Filosofia.

— Precisamente!

— A Filosofia dos manuais.

— A Filosofia da vida.

Mais um suspiro.

— Eles não podem andar por aí a sentir-se ofendidos e pressionados até ao limite. Tenho demasiadas queixas de alunos. — O reitor derrubou a torre de blocos de post-its. — Mas há mais uma coisa… importante.

— O que foi?

— Uma aluna.

As palavras ficaram a pairar no ar, recusando-se a dissolver-se.

— Dizem que andas metido com algumas das alunas — informou o reitor.

— Isso não é da conta de ninguém, pois não? Desde que não me esteja a aproveitar de ninguém… nem a permitir que se aproveitem de mim.

O reitor abanou a cabeça.

— Do ponto de vista moral, essa questão é discutível.

— Isto tem que ver com a Shirin? Ela não é minha aluna, como deves saber. Foi, mas já não é.

— Hum… Não, não é esse o nome da rapariga.

Azur franziu o sobrolho, desconcertado.

— De quem é que estás a falar?

— De uma aluna turca. Está na tua turma. — O reitor levantou os olhos cansados. — Tentou suicidar-se ontem à noite.

Azur empalideceu.

— A Peri? Oh, meu Deus! Ela está bem?

— Sim, está tudo bem… a juventude! — exclamou o reitor. — Uma overdose de paracetamol. Tem um fígado resistente.

— Eu nem acredito… — Azur afundou-se na cadeira, com o rosto completamente destituído do seu habitual vigor.

— A história que contam por aí é que tiveste um caso com ela… e depois a largaste.

Azur inspirou fundo como se tivesse levado um soco.

— Ela disse isso?

— Bom, não propriamente. A rapariga não está em condições de falar, neste momento — explicou o reitor. — Foi aquele rapaz que te pôs um processo, o Troy… Ele ameaçou falar com a imprensa. Parecia muito agitado. Tenho um depoimento dele, por escrito.

— Posso lê-lo?

— Infelizmente, não. Tem de passar pela Comissão de Ética.

— Eu garanto-te que não aconteceu nada entre mim e a Peri. Basta perguntares-lhe. Tenho a certeza de que ela te dirá a verdade.

— Ouve, és um ótimo professor, mas, acima de tudo, és docente nesta universidade. Não podemos deixar que o bom nome da instituição seja posto em causa. Certamente tens noção de que fizeste muitos inimigos ao longo dos anos. — O reitor bebeu um gole de xerez. — Estás a imaginar os média… vão regalar-se com esta história, são uns canibais.

— O que é que estás a sugerir?

— Bom… podias considerar a hipótese de fazer um breve interregno. Suspender as aulas durante uns tempos. Deixar que o assunto esmoreça e que a comissão termine o inquérito. Assim que a aluna fizer o depoimento, tudo ficará bem. Até lá, temos de pôr a tampa nesta… coisa.

Azur fixou-o intensamente, esquadrinhando-o. Depois, levantou-se.

— Leo, conheces-me há muito tempo, nunca me comportei de uma maneira que não fosse ética.

O reitor também se pôs de pé.

— Ouve…

— O depoimento do Troy está errado, garanto-te que está. O que é que a Anaïs Nin disse? «Não vemos as coisas como elas são. Vemo-las como somos.»

— Pelo amor de Deus, a Anaïs Nin é a última pessoa que deverias citar nestas circunstâncias.

— Eu vou esperar que a Peri diga a verdade — retorquiu Azur. Depois, abanou a cabeça. — Coitada da miúda, que diabo de ideia…

Dito isto, retirou-se. Como fazia parte dos quadros da universidade, com certeza não o poderiam mandar embora, se não quisesse ir. Contudo, embora não se importasse com o que as pessoas pensavam dele, nem sequer naquele momento, no seu âmago sabia que se tornara um motivo de embaraço para a universidade. Sentia a cabeça a latejar como se tivesse alguma coisa há muito tempo presa dentro dela a tentar parti-lhe o crânio para fugir. Com passadas rápidas e ritmadas, saiu do edifício e enfrentou a chuva, que caía sem parar desde manhã cedo.