O som da ausência de Deus

Oxford, 2002

Quando Peri recuperou os sentidos num quarto do Hospital John Radcliffe, não percebeu imediatamente onde estava. As cores eram demasiado fortes, agressivas: o branco dos lençóis demasiado imaculado, os azuis das cobertas demasiado alegre. O cinza do céu, do lado de fora da janela, lembrou-lhe os pedaços de chumbo que a mãe derretia contra o mau-olhado. Ouvia murmúrios dentro da sua cabeça, preces fúteis. Apreensiva, tentou fechar os olhos outra vez, desejando que o som desaparecesse, mas a doente ao seu lado — uma mulher de aproximadamente sessenta anos — parecia desejosa de falar.

— Aleluia, rapariga, finalmente acordaste! Pensei que ias dormir para sempre.

Falando com um entusiasmo vivaz, a senhora disse que tinha sido casada durante quarenta anos e fora internada tantas vezes que já conhecia o nome de todos os funcionários. A voz dela preenchia o quarto como um balão a inchar, aumentando a pressão nos ouvidos de Peri.

— Então, e tu, rapariga? Foi a primeira vez ou és recidivista?

Peri pigarreou ao sentir um sabor horrível a químicos chegar-lhe à boca. Tentou a voz e abanou a cabeça, incapaz de falar. Encolhendo-se nos lençóis, virou o rosto para a janela. Fragmentos da véspera começaram a vir-lhe à mente. O que é que fizera?

Uma lágrima escorreu-lhe pela face, quando se lembrou do pai e recordou as suas palavras: «És a minha filha inteligente. Só tu de entre os meus filhos podes fazer isto. Os estudos salvar-te-ão e tu salvarás a nossa família destroçada. Jovens como tu resgatarão este país do seu atraso.» A criança de sonho, mandada para Oxford para dar orgulho aos Nalbantoğlus, brindara-os, ao invés, com humilhação e fracasso. Sem se aperceber, Peri começou a soluçar tanto e tão ruidosamente que a outra doente, temendo pela sua sanidade mental, carregou no botão de emergência e chamou a enfermeira. Minutos depois, deram a Peri um líquido cor de pêssego, que tinha um cheiro horroroso, mas, estranhamente, era desprovido de sabor. Enterrou a cabeça na almofada, com as pálpebras pesadas de exaustão.

No seu estado de semidelírio, o único rosto que via recorrentemente era o do bebé na bruma. Onde estava, agora que ela precisava dele? Teria uma existência e uma vontade independente dela, ou seria simplesmente uma ilusão criada por uma mente atormentada pela culpa?

No dia seguinte de manhã, Peri teve a sua primeira consulta com o psiquiatra. Era um médico jovem, com um sorriso amável e generoso. Não está sozinha, disse ele. Trabalhariam em equipa. Ele dar-lhe-ia as ferramentas com as quais ela poderia construir uma nova Peri; ela seria uma arquiteta da sua alma. A autora de si própria. Ele tinha a mania de fazer demasiadas pausas e terminar todas as frases com a pergunta: «Parece-lhe bem?» Explicou que o tratamento não faria com que os pensamentos autodestrutivos desaparecessem, mas ensiná-la-ia a lidar com eles, caso voltassem. Pela maneira como falou, parecia que as tendências suicidas eram como o tempo, como um aguaceiro forte. Não podíamos evitá-lo, mas, se soubéssemos abrigar-nos da chuva, seríamos menos afetados.

— Mais uma coisa — disse ele. — Quando estiver pronta, sem qualquer pressão, possivelmente vão-lhe fazer umas perguntinhas sobre um certo professor. Parece que ele é acusado de intimidar alunos, incluindo a Peri, em frente de toda a gente. A universidade está a investigar estas alegações… para o seu bem e para o bem de outros alunos. Quando estiver pronta, sem pressa. Parece-lhe bem?

Peri sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Então, pensavam que tinha sido Azur quem desencadeara a sua tentativa de suicídio. Apesar de ter ficado estupefacta com a ideia, não disse nada.