O guarda-roupa
Istambul, 2016
Um terceiro homem, com o rosto tapado por um lenço, juntara-se aos dois intrusos. Pela maneira como falava, parecia ser o chefe. Provavelmente tinha estado à espera no jardim que os outros dois invadissem a mansão e desimpedissem o caminho para ele entrar.
— Se nos obedecerem, ninguém se magoa — rugiu. Mas não parecia nem irritado nem alvoroçado; apenas frio, indiferente. — A escolha é vossa.
Peri percebeu que estava a tremer. Tinha o coração aos saltos na caixa torácica. Deveria ela fugir ou esconder-se? Quem eram aqueles homens: máfia organizada, vulgares ladrões ou terroristas, como os que povoavam Istambul em grandes quantidades? Ou seria aquilo uma questão de dinheiro? Quantas pessoas teria o homem de negócios enervado, enquanto acumulava dinheiro e inveja em iguais medidas? Lembrou-se da expressão inquieta dele, no terraço. Mas não havia tempo para pensar. Observando a porta da cozinha do corredor onde deu por si agachada, fez uma pausa. Não podia correr para lá sem que a vissem da sala. Deu um passo atrás. As suas mãos palparam a superfície do espelho atrás de si. Moveu-se ligeiramente… era a porta de um guarda-roupa embutido na parede.
Abriu-a. No armário havia casacos, caixas, sapatos, chapéus de chuva. Sem pensar, saltou lá para dentro e fechou a porta que prendia com íman. Encostando as costas ao fundo de madeira, enroscou-se toda no escuro. Uma vez mais na vida, tornou-se um ouriço-cacheiro apavorado.
Um minuto depois, talvez menos, alguém atravessou o corredor num sentido e depois no outro, batendo com os pés e gritando:
— Fora da cozinha! Toda a gente! Já!
Estavam a reunir o pessoal doméstico. O chefe, o assistente, as empregadas contratadas para servir à mesa naquela noite. Passos apressados. O batuque de botifarras. Sussurros assustados.
Dentro do guarda-roupa, Peri clicou no botão para tirar o som ao telemóvel e escreveu uma mensagem à mãe: «Chame a polícia, urgente. Sabe onde estou.»
— Porra! — disse, percebendo que provavelmente Selma já se fora deitar e poderia só ver a mensagem no dia seguinte de manhã. Sentiu um alívio profundo por Deniz se ter ido embora mais cedo e estar a salvo. Mas Adnan estava ali… lá. O seu marido, o seu confidente, o seu melhor amigo. O ar saiu-lhe dos pulmões com um gemido agudo.
Ouviu uma pancada seca. Uma mulher gritou. Peri discerniu um grito, que se transformou num riso histérico. Parecia a namorada do famoso jornalista.
— Não adivinhou que eles cá vinham? E ainda diz que é médium? Médium o tanas!
Abraçando os joelhos, Peri ficou petrificada. O que seria aquilo tudo? O homem de negócios a receber o castigo merecido? Ou simplesmente uma coincidência, mais um acontecimento fortuito ao qual uma pessoa tentava, em vão, dar sentido? Lembrou-se das câmaras de vigilância e do arame farpado que vira à entrada… tudo inútil. O mundo estava cheio de perigos. O caos e a desordem encontravam-se à coca a cada esquina. Seria o mal uma espécie de paga divina pelos nossos atos, ou a obra instável de um destino arbitrário? Se a aleatoriedade dominava tudo, de que servia uma pessoa tentar ser melhor? Como é que se expiavam os pecados passados, se não modificando o comportamento pessoal? Ela fora uma boa pessoa… exceto para com o homem que amara havia anos e que, num qualquer canto intacto do seu coração, continuava a amar. O Professor Azur ensinara-lhe que a incerteza era preciosa. Mas e se a única coisa que existisse fosse simplesmente a confusão?
Enjoadíssima, ligou para a polícia. Um agente atendeu e começou imediatamente a bombardeá-la com perguntas, tratando-a mais como criminosa do que como testemunha. Peri interrompeu-o no tom mais baixo que conseguiu:
— Estão homens armados…
— Não consigo ouvi-la. Fale mais alto — repreendeu-a o agente.
Peri deu-lhe a morada.
— Porque é que está nessa casa? — inquiriu o agente.
— Fui convidada — sibilou ela, frustrada. — Eles estão armados.
— Em que sítio da casa está? — perguntou o agente, mas não esperou pela resposta. Quis saber como se chamava, o que fazia, onde vivia. Perguntas inúteis. Fora uma cidadã exemplar durante aquele tempo todo, mas na base de dados do Estado era uma criação digital, um número sem uma história.
Por fim, o indivíduo disse:
— Está bem, vamos mandar uma equipa.
A seguir, ela verificou o nível da bateria. Duraria mais uns quinze minutos ou provavelmente menos. Perguntou-se o que aconteceria nesse interregno: seria apanhada e feita refém como os outros, ou chegaria a polícia e lançaria uma operação, durante a qual poderiam ser, todos eles, resgatados ou mortos? Quando a bateria morresse, talvez aquela Última Ceia da Burguesia Turca já tivesse terminado, para o bem ou para o mal. A vida afigurava-se amiúde injusta, mas a maior injustiça era a morte. O que era mais difícil de aceitar: que havia um objetivo oculto naquela loucura, se soubéssemos onde o procurar; ou que não havia lógica nenhuma e, por conseguinte, nenhuma justiça?
Tinha a mão a latejar novamente, como se tivesse vida própria, como se fosse o braço de um polvo. À luz fosforescente do ecrã do telemóvel, entalada entre os casacos e os sapatos, enquanto lá fora o marido e os amigos eram reféns de homens armados, observou o número que Shirin lhe dera.
E telefonou a Azur.