A desgraça

Oxford, 2016

Todos os dias ao anoitecer, Azur ia dar uma volta. Fazia uns bons oito a dez quilómetros, seguindo caminhos históricos, passando por matas antigas e campos agrícolas ondulantes. A mente imbuía-se de clareza quando uma pessoa estava ao ar livre, pensava ele, determinada e ponderada, mas sem um destino específico na cabeça. Se havia uma coisa em que acabara por acreditar firmemente, ao longo dos anos, acerca dos seres humanos era que se tratavam de camaleões mentais, capazes de se adaptarem até à vergonha e à desgraça. Sabia-o não por especulação, mas por experiência própria. Fora reduzido à vergonha. Caíra em desgraça. Se alguém tivesse dito ao seu eu mais jovem, enquanto progredia na Academia e na sociedade, ambicioso e sempre confiante, que um dia se estamparia na terra como se tivesse voado demasiado perto do Sol, teria considerado a ideia demasiado deprimente para ser verdadeira. Na verdade, o jovem Azur, cheio de princípios, provavelmente teria respondido que mais valia morrer do que viver em desonra. Contudo, ali estava ele, mais de uma década depois do escândalo, ainda presente, ainda vivo e ainda profundamente magoado por dentro.

Havia catorze anos, fora obrigado a abandonar o seu cargo de docente. Desde então, mantinha um laço frouxo com a universidade que, em tempos, fora a sua casa académica, como um cordão umbilical que já não o alimentava, mas que não podia ser cortado. Não o tinham convidado para voltar a dar aulas e ele não o pedira, não fosse o seu nome embaraçar os seus colegas ou o departamento. Ao longo dos anos, lera uma série de artigos sobre si próprio, mas havia um que se destacava. Acusava-o de ser um megalomaníaco com mania da autoridade, uma amálgama foucaultiana de poder e conhecimento que matava mentes jovens e inseguras, como uma praga. Traçando uma imagem do mal encarnado, o autor do texto relacionara a tentativa de suicídio de Peri e o desaparecimento de Anissa. «Eis um homem que claramente destruiu cada rapariga que seduziu intelectualmente.» Escrito num tom inflamado e assustadoramente bem pesquisado, o artigo desestabilizara Azur, empurrando-o para uma depressão tão profunda que lhe era impossível lembrar-se de uma época em que o seu mundo não estivera imbuído de melancolia. Apesar disso, continuara a trabalhar, como se soubesse que, se parasse de escrever, não teria motivos para querer viver mais um dia. O trabalho era um instinto de sobrevivência.

Podia ter ido para a América ou para a Austrália e começado do zero, mas preferira ficar. Sem responsabilidades administrativas e docentes, tinha muito tempo para ler, fazer investigação e escrever. Isso, aliado a uma nova paixão que se lhe apoderara da alma, motivara-o a publicar livro atrás de livro. Cada um dos títulos que lançara ao longo de todos esses anos impelira-o para a fama e o reconhecimento, de modo que, atualmente, se encontrava numa situação que nunca teria alcançado, se não tivesse perdido o seu cargo de docente. Talvez Plutarco tivesse razão, no fim de contas. O destino conduzia, de facto, quem estava disposto a deixar-se conduzir e quem lhe resistia, como ele próprio, era arrastado à força.

Continuava a viver na mesma casa, com as janelas de sacada que davam para o bosque. Cultivava ervas aromáticas e legumes no jardim. Dava-se com um punhado de velhos amigos, apenas. Cozinhava. A vida era pacata, organizada, e era assim que ele a queria. Ainda tinha amantes, várias, e já não importava se as mulheres com quem partilhava a cama estavam ligadas à universidade. Havia algo paradoxal na desgraça pública, na medida em que, roubando o papel social e a respeitabilidade a uma pessoa, a tornava mais livre. Sim, ele era livre como um pássaro e quase tão despreocupado. Mas sabia, claro está, que os pássaros são criaturas de hábitos, por conseguinte não eram propriamente livres e tinham muito com que se preocupar.

De vez em quando, recebia um telefonema ou um email de um jornalista decidido a entrevistá-lo, ou de um aluno que estava a escrever uma tese sobre os seus livros. Aceitava alguns, recusava outros, decidindo por mera intuição. A princípio, rejeitara terminantemente todas as tentativas para se imiscuírem no seu espaço privado. Estava ciente de que a primeira pergunta que lhe fariam seria sobre o escândalo, apesar da quantidade de tempo que passara. Mesmo que não o mencionassem na entrevista, haveria sempre uma referência no artigo, o que podia ser pior. Por isso, recusara-as enquanto pudera. A sua inacessibilidade, porém, tornara-o ainda mais atrativo aos olhos dos seus leitores. Tinha um público leal que conhecia, lia e partilhava tudo o que ele escrevia. Como dissera um jornalista, entre os pensadores mais desonrados da atualidade, ele era o mais venerado.

Depois de Espinosa morrer, ele recusara-se a cuidar de outro cão. A decisão não durara muito. Um pastor-romeno-dos-cárpatos, com dois meses de idade, aparecera-lhe à porta com um laço dourado na coleira, uma prenda de anos de Shirin. Pelo denso, branco e fofo às manchas cinza-claras. Calmo e esperto, um animal feito para as montanhas. Pareceu-lhe adequado dar-lhe o nome do filósofo romeno famoso pelas suas opiniões melancólicas sobre Deus e tudo o resto. Além disso, era apropriado ao estado de espírito de Azur. A partir de então, Cioran passou a acompanhá-lo nos seus passeios.

Nessa tarde, Shirin batera-lhe à porta, com uma barriga enorme e as faces a arder. A gravidez dava a algumas mulheres um aspeto mais beatífico e Shirin era um exemplo disso. Se houvesse uma santa pecadora, seria ela.

— Vens, não vens? Por favor, não digas que não. Olha que armo um escarcéu — disse ela, tamborilando as unhas verde-garridas na mesa.

Shirin tornara-se uma ótima académica; depois do escândalo, fora para Princeton, de onde lhe escrevera quase todos os dias, sem falta. No seu regresso, arranjara um cargo de docente na sua antiga faculdade. Desde então, tinham-se mantido bons amigos, apesar da diferença de idades e dos seus estilos de vida discordantes. O facto de nenhum dos dois ter tentado reavivar o seu caso amoroso era louvável e a decisão certa, mas ao mesmo tempo era triste, pensara Azur. Sabia que estava a envelhecer.

— Ouve, este tipo é horrível. Racista. Homofóbico. Islamófobo. A coitada da Mona teria tido um ataque cardíaco. O homem não tem vergonha na cara. Diz que Deus fala através da boca dele.

Azur sorriu.

— Há muitos como ele. Habituem-se.

— Eu recuso-me — retorquiu Shirin. — Vem, por favor.

— O que é que queres de mim, querida? Achas que a minha presença significa alguma coisa para alguém, ainda por cima para ele? Sou uma desgraça ambulante, aos olhos deles. Além disso, deixei-me de debates sobre Deus. Já não me meto nisso.

— Não acredito minimamente nessa desculpa. Vem, por favor.

Quando ela se foi embora, Azur fez um chá e sentou-se à mesa da cozinha. Um raio do Sol que atravessava na diagonal a folhagem do sicómoro, lá fora, formava um retalho malhado no seu rosto, acentuando-lhe as feições buriladas. Tinha um jornal local dobrado ao seu lado. Trazia um artigo sobre o estudioso holandês conhecido pelas suas opiniões polémicas sobre o Islão, os refugiados, o casamento gay e o estado do mundo. Proclamava ter acesso direto a Deus, ser sócio desse clube só para eleitos. Havia quase dois séculos que a Oxford Union convidava oradores externos de renome, que iam desde o convencional ao controverso. Mas ninguém se lembrava de alguma vez uma palestra ter suscitado tanto alvoroço como a desse homem.

Azur pegou na chávena de chá, que deixou uma mancha no jornal à volta da cabeça do orador; assim, o indivíduo parecia, de facto, um santo. Observou a imagem durante um momento, hipnotizado. Depois, impulsivamente, pegou no casaco e nas chaves do carro.

Vinte minutos depois, quando Azur se aproximou do edifício, recortado contra o céu enevoado, reparou num grupo de alunos à espera na rua, com letreiros a protestar contra o orador, exigindo que ele fosse expulso do território da universidade.

Um rapaz deteve-o. Caloiro, pelo aspeto. Não devia conhecer Azur.

— Estamos a fazer uma petição para deter este monstro. Assina? — Falava inglês com um sotaque forte, mas agradável ao ouvido.

— Não é tarde de mais para isso? — perguntou Azur. — O tipo vai falar daqui a dez minutos.

— Não tem mal. Se recolhermos suficientes assinaturas, a Union terá de pensar duas vezes antes de voltar a convidar alguém como ele. Além disso, planeamos entrar na sala e interromper a palestra. — Espetou uma esferográfica e um bloco na direção de Azur.

— Lamento desiludi-lo — respondeu Azur —, mas não vou assinar.

Um olhar de desprezo perpassou o rosto do rapaz.

— Quer dizer que concorda com ele? Com um fascista?

— Eu não disse que concordava com a perspetiva dele.

Mas o estudante, tendo perdido o interesse, virou as costas e afastou-se, a passos rápidos. Azur sentiu-se dividido entre deixá-lo partir e ir atrás dele.

— Espere! — Correu atrás dele.

O aluno virou-se, surpreendido.

— É muçulmano, não é?

Um aceno de cabeça cauteloso.

— Depreendo que já tenha lido Rumi. Lembra-se do verso? Se cada esfregadela te irrita, como é que o teu espelho vai ficar limpo?

— O quê?

— Deixe o tipo falar. As ideias têm de ser desafiadas com ideias. Os livros com livros melhores. Por mais estúpidas que sejam as vozes das pessoas, não as podem calar. Banir oradores não é o caminho certo.

— Guarde a sua filosofia pomposa para si — retorquiu o rapaz. — Ninguém tem o direito de insultar a minha religião e o que é sagrado para mim.

— Mas imagine a liberdade que sentirá, se conseguir ser superior ao ódio deste homem. Temos de responder aos insultos com sabedoria.

— Rumi, outra vez?

— Por acaso é Shams, o companheiro dele e…

— Deixe-me em paz — disse o aluno, dirigindo-se a passos largos para os amigos e sussurrando-lhes qualquer coisa. O grupo todo fixou Azur.

Porque é que não conseguia ficar calado? Aquela sua mania de falar já lhe trouxera problemas de sobra na vida. Passando os dedos pelo cabelo ralo e manchado de grisalho, entrou na Oxford Union. Havia um cartaz na entrada com o título da palestra: «Salvar a Europa para os Europeus».

A multidão reunida na sala zumbia de excitação tensa. Algumas pessoas tinham ali chegado com sentimentos de raiva, desdém e incredulidade em relação ao orador, que fizera uma carreira à base de ofensas e troça; outras com uma arrogante satisfação porque alguém, finalmente, ia dizer em voz alta o que elas andavam a pensar.

Enquanto Azur abria caminho por entre a multidão, uns quantos colegas de antigamente acenaram-lhe, enquanto outros fingiram nem reparar nele. A vergonha era um manto de invisibilidade. Ele usava-o em público. Já não o magoava tanto como antes ver a rapidez com que as pessoas estavam prontas para julgar e se distanciar. Nesses momentos, lembrava-se de Peri, perguntando-se o que faria em Istambul, que tipo de vida teria construído. Se ele tinha sido condenado a uma vida inteira de desgraça, ela fora certamente condenada a uma vida inteira de remorsos. Quem poderia dizer qual das duas era mais penosa para a alma?

Ao vê-lo chegar, Shirin levantou-se, acenando com uma mão e com a outra na barriga. A sua excitação era tão comovente que Azur se sentiu triste. Não foram os seus acusadores cobardes nem os seus rivais oportunistas que o fizeram sentir-se vulnerável. Foram aqueles que, acontecesse o que acontecesse, o amavam, respeitavam e apoiavam, contra tudo e todos. Tinham esperado que ele limpasse o seu nome. Ele recusara-se a fazê-lo. Sempre pensara que quanto mais uma pessoa reivindicasse a sua inocência perante os outros, mais culpada lhes pareceria. Além disso, reabrir antigos processos também teria magoado Peri.

— Obrigada por teres vindo — disse Shirin. — Eu sabia que virias.

— Mas vou sair cedo. Acho que não aguento ouvi-lo até ao fim.

Ela concordou.

Daí a pouco, o orador entrou em palco, de fato de caxemira azul-elétrico e sem gravata. Falou durante trinta minutos sobre os perigos que se apresentavam à civilização ocidental. A sua voz ondulava a um ritmo calculado, descendo aqui e ali para um sussurro rouco, elevando-se em palavras que ele sabia que induziriam o medo. Não era racista, disse. E nada tinha de xenófobo. A sua padaria preferida era gerida por um casal árabe, o seu médico particular era de origem paquistanesa e ele passara as melhores férias da sua vida anos antes em Beirute, onde um taxista recuperara o seu porta-moedas perdido. Mas as portas da Europa tinham de ser firmemente trancadas. Era a única consequência lógica de um caos completo criado por terceiros. A Europa era o lar. Os muçulmanos eram forasteiros. Até uma criança de cinco anos sabia que não se convidam desconhecidos para dentro de casa. Toda a gente no mundo inteiro invejava a riqueza do Ocidente e esta tinha de ser protegida quer dos forasteiros quer dos traidores internos, que não percebiam que diluir uma cultura, adulterar uma raça, profanar o património estava errado. Errado! Errado! Os casamentos entre pessoas de raças e fés diferentes punham em perigo a integridade da sociedade ocidental. Não devíamos ter vergonha de falar de pureza. Pureza racial, cultural, social e religiosa. O indivíduo foi eloquente, bem-educado e, como todos os bons demagogos, sabia quando dizer uma piada.

O problema da Europa era que tinha abandonado Deus. As pessoas estavam finalmente a despertar para esse erro histórico. Estava na hora de trazer Deus, o Salvador, de volta… de volta para a Academia, de volta para a família, de volta para o espaço público. A liberdade nunca devia ser confundida com impiedade. A Europa andara a perder tempo a debater temas disparatados — como o casamento entre pessoas do mesmo sexo —, enquanto as hordas bárbaras se juntavam às nossas portas. Se as pessoas decidiam ser gays, tudo bem, mas tinham de arcar com as consequências. Não podiam reivindicar o direito ao casamento, claramente definido como uma aliança feita com Deus entre um homem e uma mulher. O caos atual — o terrorismo, a crise de refugiados, o extremismo islâmico em solo europeu — era a maneira de Deus ensinar aos europeus uma lição. Testar, corrigir, limar, aperfeiçoar. No passado, o Senhor tinha lançado uma chuva de fogo e enxofre sobre as cidades pecadoras; hoje, lançava-nos uma chuva de refugiados e terroristas. Cada era acarretava o seu tipo específico de castigo.

— Meus amigos, Deus está aqui connosco, hoje. Tentaram bani-Lo das universidades. Ofenderam-No durante tanto tempo. Mas Ele está presente em toda a Sua glória. Eu não passo do Seu veículo, do Seu humilde porta-voz.

Do seu lugar na plateia, Azur resfolegou muito alto, arrojado e trocista, quebrando um momento de silêncio na sala. Todos os olhares se viraram para ele, incluindo o do orador.

— Quem é que eu estou a ver diante de nós? Se não me engano, o Professor Azur honrou-nos com a sua presença — disse o orador —, embora já não seja professor.

A sala foi percorrida por uma onda de sussurros, enquanto colegas e estudantes espetavam a cabeça para ver melhor o espectador desordeiro. Azur levantou-se. Ao seu lado, Shirin manteve-se imóvel, com o rosto pálido como o de um fantasma.

— Tem toda a razão. Já não dou aulas.

Com os cantos da boca descaídos, o orador disse:

— Sim, eu sei. A notícia chegou até ao nosso cantinho sossegado em Amesterdão. — Um sorriso falso de empatia espalhou-se-lhe no rosto. — Mas fico contente por ver com os meus próprios olhos que Deus o trouxe de volta para a luz.

— Quem disse que estive no escuro? — questionou Azur.

— Parece-me óbvio que esteve…

Azur fez um gesto de assentimento.

— Nesse caso, tenho de lhe dar esperança. Já fui tudo o que há de ímpio. Se Deus consegue atuar sobre uma pessoa como eu, então consegue fazer milagres em qualquer pessoa… talvez até consiga abrir uma mente fechada como a sua.

— Que bonito da sua parte citar São Francisco. Da maneira que mais lhe convém, imagino. Como fazem as pessoas. Um dia, teremos de organizar um debate. Será divertido.

E, dito isso, o pregador prosseguiu o seu discurso, deixando Azur de pé, mortinho por se lançar num debate que não lhe seria concedido no futuro próximo.

Quando regressou do seu passeio ao fim da tarde, revivendo ainda aquele instante na Oxford Union, a casa pareceu-lhe gelada. As fotografias nas paredes, os azulejos da lareira. Enquanto aquecia uma lasanha da véspera, o telefone começou a tocar. Um número desconhecido, parecia internacional. Como não estava com vontade de falar com ninguém, decidiu não atender. O toque parou de repente, um momento de silêncio total. Cioran, aos seus pés, soltou um gemidozinho. Depois, o telemóvel recomeçar a tocar.

Dessa vez, algo dentro de si o incitou a atender. E assim fez. Do outro lado da linha, numa mansão à beira-mar em Istambul, estava Peri, tentando encontrar a sua voz.