As três paixões
Istambul, 2016
Inspira. Expira. Por um instante, o tempo pareceu dissolver-se e ela voltou a ser a rapariga de antigamente, catapultada de um pesadelo ou atirada para o interior de mais um… o guarda-roupa dentro do qual se escondera era como a cela de detido do seu irmão. Entretanto, lá fora, os convidados e os empregados tinham sido levados para o andar de cima, para o escritório dourado. Peri ouvira-lhes os passos quando foram reunidos em rebanho e, agora, sobre a casa, abatera-se um silêncio agoirento. Apertou o telemóvel do marido com mais força, enquanto esperava pelo toque. Formou-se-lhe um súbito nó na garganta, quando ouviu a voz de Azur do outro lado da linha.
— Estou?
O timbre familiar trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Era como se tivesse a boca cheia de pequeninas partículas, grãozinhos de remorso. Era assustadora a velocidade a que o passado partilhado, como dor em estado líquido, se infiltrava nos silêncios do presente.
— Estou? Quem fala?
Ela quase desligou, tal foi a intensidade com que as palavras a abandonaram. Contudo, estava cansada de fugir de si própria e o impulso de confrontar os seus medos impeliu-a.
— Azur… sou eu, a Peri.
— Pe-ri… — repetiu ele, e fez uma pausa, como se o mero invocar do nome dela abarcasse a totalidade das coisas, o bem e o mal e tudo o que existia entre um e outro.
Ela tinha a cabeça às voltas, desenfreada. O coração aos pulos. Porém, quando falou outra vez, a sua voz parecia calma.
— Eu devia ter ligado antes. Fui uma cobarde.
Azur ficou calado. Sempre soubera que aquele momento chegaria um dia, mas nunca se preparara para ele.
— Que surpresa — disse, por fim. Pareceu prestes a acrescentar algo, mas mudou de ideias. — Estás bem?
— Nem por isso — respondeu ela, sem dar mais explicações. Não lhe disse que estavam homens armados dentro de casa. Nem que a conversa poderia ser interrompida a qualquer instante, porque estava a ficar sem bateria. Ouviu um cão a ladrar ao fundo.
— É o Espinosa?
— O Espinosa morreu, minha querida. Espero que esteja num mundo melhor.
Ela começou a chorar, baixinho.
— Devo-te um pedido de desculpas, Azur. Devia ter falado perante a comissão.
— Não te recrimines — respondeu ele, suavemente. — Não estavas em condições de tomar uma decisão racional. Eras demasiado jovem.
— Já tinha idade suficiente.
— Bom… eu deveria ter sido mais cuidadoso.
O comentário apanhou-a de surpresa. Então, ele não a odiara durante todo aquele tempo, como ela temera. Ao invés, assumira ele a culpa.
Teve vontade de lhe dizer: «Li o teu último livro. Li absolutamente tudo o que publicaste desde… Mudaste. Pareces mais cínico… desapaixonado. E pergunto-me se isso significa que perdeste a tua irrequietude, o espírito brincalhão que conseguia cativar os teus alunos e hipnotizar plateias inteiras. Espero que não.»
Do andar de cima, chegou-lhe o troar distante de passos. Um breve alvoroço. Um grito. Um tiro rasgou o ar. Uma pancada seca.
Todo o corpo de Peri ficou hirto e a sua respiração entrecortada e rouca.
— Que barulho foi esse? — perguntou Azur.
— Não foi nada.
— Onde é que estás?
«Dentro de um armário, numa vivenda chique em Istambul, que acaba de ser invadida por rufias e, na boca, sinto o sabor do medo e de uma trufa chamada Oxford.» Não, não lhe podia dizer isso.
— Tem importância? — perguntou ela, mantendo a voz incrivelmente baixa.
— Quando te conheci, Peri — disse ele —, pensei: esta rapariga não o sabe, mas carrega em si as três paixões de Bertrand Russell: o desejo de amor, a busca de conhecimento e a insuportável compaixão pelo sofrimento da humanidade.
O rosto dela turvou-se.
— Tinha-las todas — disse ele. — Era tão profunda a tua necessidade de amor. A tua sede de conhecimento. A tua sensibilidade em relação aos outros… ao ponto de te apagares a ti mesma. Tive pena de ti. Mas também tive raiva. Fazias-me lembrar uma mulher do meu passado.
— A tua mulher? — perguntou ela, cautelosa.
— Não, minha querida. Uma pessoa chamada Nour. Fiquei ansioso, com medo de te magoar como a magoei a ela. A verdade é que eu sei que acabei por fazer mal a todas as mulheres que se aproximaram de mim.
— Exceto a Shirin.
— É verdade, ela era invencível. Parecia invencível. Era mais nova, mas forte, obstinada. Uma guerreira nata. Com ela, não havia motivo para preocupações. Nunca lhe aconteceria nada de mal.
— Querias um amor desprovido de culpa.
— Talvez — respondeu Azur. — Não és só tu quem pede desculpa a Deus.
No ecrã, a bateria passou de preto a vermelho.
— Fazes-me uma coisa?
— Diz lá.
— Gostava de ter mais um seminário. Agora.
Ele riu-se.
— Como, agora? Sobre o quê?
— Sobre perdão e amor — disse ela. — E conhecimento. Desta vez, serei eu o professor, combinado?
Uma pausa circunspecta.
— Sou todo ouvidos, querida.
— Então — disse ela. — A palestra de hoje é sobre Ibn Arabi e Ibn Rushd, ou seja, Averróis. Ibn Rushd era um eminente filósofo e Ibn Arabi um jovem e esperançoso estudante, quando os dois se conheceram. Sentiram imediatamente uma ligação entre eles, uma vez que eram ambos devotos aos livros e à aprendizagem e nenhum abraçava a ortodoxia. Mas eram também muito diferentes.
— Em que sentido?
— Olha, é a mesma questão acerca do Oriente e do Ocidente, ou não é? Como é que alargamos o nosso conhecimento de nós próprios e do mundo? Ibn Rushd tinha uma resposta clara: através do pensamento refletivo. Da razão. Do estudo.
— E Ibn Arabi?
— Ele queria a razão e a intuição mística. Acreditava que era nosso dever, enquanto seres humanos, expandir a nossa sabedoria. Mas também reconhecia que havia coisas para lá dos limites da mente. Antes de seguirem caminhos distintos, Ibn Rushd perguntou a Ibn Arabi, uma última vez: «É através da reflexão racional que desvelamos a Verdade?»
— E o que é que Ibn Arabi respondeu?
— Disse que sim e disse que não. «Entre o sim e o não», explicou, «os espíritos saem a voar da sua matéria e as mentes dos seus corpos». Achava que não havia ninguém tão ignorante como aqueles que procuram Deus e, no entanto, só quem procura uma verdade maior do que si próprio é que tem a possibilidade de a alcançar.
— Diz-me uma coisa, Peri, porque é que essa história te interessou?
— Porque sempre estive nesse limbo entre o sim e o não. Não sou alheia à fé e não sou alheia à dúvida. Indecisa. Vacilante. Nunca segura de mim mesma. Talvez toda essa incerteza tenha feito de mim quem sou. Ao mesmo tempo, tornou-se o meu pior inimigo. Não conseguia sair desse impasse. — Fez uma pausa. — Falei-te do bebé na bruma. Se não era uma alucinação, era um tipo de experiência de que nunca tinhas ouvido falar. Outro professor teria feito troça disso, mas tu não. Sempre te mostraste aberto às coisas novas. Admirei-te por isso.
— Achas que eras a única pessoa confusa, mas muitos de nós sentem essa mesma confusão.
Nós. Uma palavra que era um suspiro. Tão pequenina, tão descomunal. Nós, os confusos.
Peri abanou a cabeça.
— Admirei-te tanto. Agora consigo discernir as coisas com toda a clareza. Quando nos apaixonamos, transformamos a outra pessoa no nosso deus… que perigo que isso é! E quando essa pessoa não nos ama, reagimos com raiva, ressentimento, ódio…
Ela continuou:
— Há qualquer coisa no amor que se assemelha à fé. É uma espécie de confiança cega, não é? A euforia mais doce. A magia de criarmos uma ligação com um ser que está para lá do nosso eu limitado e familiar. Mas, se nos deixarmos arrebatar demasiado pelo amor, ou pela fé, transforma-se num dogma, numa obsessão. A doçura azeda. Sofremos nas mãos dos deuses que nós próprios criámos.
— Eu deveria ser uma das últimas pessoas à face da Terra a ser considerada um deus — comentou Azur.
— Não eras tu — disse Peri. — Era o Azur que eu criara para mim própria. O Azur de que precisava para dar sentido ao meu próprio passado fragmentado. Foi por esse professor que me apaixonei. O Azur que existia na minha mente.
Ela prosseguiu o seu discurso. Com a voz a ganhar força, os olhos já perfeitamente adaptados à escuridão, o telemóvel a tremeluzir na sua mão ferida, ela deu uma aula a um homem numa casa nos arredores de Oxford, enquanto o cão deste esperava pacientemente ao lado do dono. Podia facilmente ter acontecido a situação inversa: ele em perigo e ela em segurança. Nesse dia, ela foi o professor, e ele, o aluno. Os papéis inverteram-se, as palavras nunca pararam de se mover. A forma da vida era um círculo e cada ponto nesse círculo estava a igual distância do centro, quer lhe chamemos Deus ou outra coisa completamente diferente.
Ouviu o som de sirenes a aproximarem-se da mansão à beira-mar. Daí a uns minutos, não mais do que isso, tudo iria mudar: um novo começo ou um fim demasiado precoce. Quando o telemóvel apitou uma última vez antes de a bateria morrer, ela abriu a porta do guarda-roupa e saiu.