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Moscou: criam-se relações

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Acordei tarde na manhã seguinte, em meus aposentos suntuosos. Era quinta-feira, 13 de agosto — para mim, sempre o “Dia de Blenheim”. Eu havia combinado visitar Molotov no Kremlin ao meio-dia, para lhe explicar de maneira mais clara e completa o caráter das várias operações que tínha­mos em mente. Ressaltei o quanto seria prejudicial à causa comum que, ante recriminações pelo abandono de Sledgehammer, fôssemos forçados a discutir publicamente contra essas iniciativas. Também expliquei de forma mais pormenorizada o quadro político de Torch. Ele ouviu de modo afável, mas em nada contribuiu. Propus um encontro com Stalin às 22 horas. Mais tarde, no correr do dia, recebi a informação de que 23 horas seria um horário mais conveniente. Já que seriam abordados os mesmos temas da noite ante­rior, talvez eu desejasse levar Harriman, pois não? Respondi que sim, e que também levaria Cadogan, Brooke, Wavell e Tedder, que, nesse meio-tempo, haviam chegado de Teerã num avião russo. Eles poderiam ter sofrido um incêndio perigosíssimo em seu Liberator.

Antes de deixar o gabinete desse diplomata polido e rígido, voltei-me para ele e disse: “Stalin cometerá um grande erro se nos tratar com rispidez, depois de termos vindo tão longe.” Pela primeira vez, Molotov cedeu. “Sta­lin,” disse, “é um homem muito perspicaz. Esteja certo de que, por mais que discuta, compreende tudo. Direi a ele o que o senhor disse.”

Voltei a tempo de almoçar na Villa Estatal nº 7. Do lado de fora, o tempo estava esplêndido. Exatamente como mais gostamos na Inglaterra — quando conseguimos tê-lo. Pensei em conhecer a propriedade. O solar era uma bela e ampla casa de campo, novinha em folha, no centro de extensos gramados e jardins, num bosque de pinheiros de uns vinte acres. Trilhas aprazíveis e, no belo clima de agosto, era delicioso deitar na relva ou nos cones de pinheiro. Havia diversas fontes e um grande tanque de vidro, cheio de muitos tipos de peixes ornamentais, todos tão mansinhos que vinham comer na mão. Fiz questão de alimentá-los todos os dias. Ao redor de todo o terreno havia uma paliçada de uns 15 pés de altura, talvez, guardada de ambos os lados por um número considerável de policiais e soldados. A umas cem jardas da casa ficava um abrigo antiaéreo. Percorremo-lo, era do tipo mais moderno e de luxo. Elevadores em ambas as extremidades desciam a oitenta ou noventa pés abaixo do nível do solo. Lá embaixo, oito ou dez aposentos espaçosos se distribuíam no interior de uma caixa de concreto de espessura maciça. Os cômodos eram separados entre si por pesadas portas corrediças. As lâmpadas eram brilhantes. O mobiliário elegante, suntuoso e de cores vivas. Senti-me mais atraído pelos peixinhos.

Retornando ao Kremlin às 23 horas, fomos recebidos apenas por Stalin e Molotov, com seu intérprete. Teve início uma discussão muito tensa. Eu disse que ele precisava compreender que havíamos decidido a linha de ação a seguir e que censuras eram inúteis. Discutimos por cerca de duas horas, durante as quais ele disse muitas coisas desagradáveis: estávamos com um medo exagerado de lutar com os alemães, e se experimentássemos, como os russos, descobriríamos que não era tão difícil; havíamos quebrado nossa promessa sobre a operação Sledgehammer não entregáramos os suprimentos prometidos à Rússia e só lhes enviávamos sobras, depois de retirarmos tudo de que nós mesmos precisávamos. Aparentemente, essas queixas dirigiam-se tanto à Inglaterra quanto aos Estados Unidos.

Repeli todas as suas afirmações firmemente, mas sem nenhum tipo de provocação. Creio que ele não estava habituado a que o contradissessem repetidamente, mas não se aborreceu, nem tampouco se agitou. Reiterou sua opinião de que deveria ser possível aos ingleses e americanos desembarcar seis ou oito divisões na península de Cherbourg, já que tinham o domínio aéreo. Achava que, se o exército inglês estivesse lutando com os alemães tanto quanto o exército russo, não teria tanto medo deles. Os russos e, aliás, a própria RAF, haviam demonstrado que era possível derrotar os alemães. A infantaria inglesa poderia fazer o mesmo, desde que agisse ao mesmo tempo que os russos.

Interrompi-o dizendo que perdoava suas observações em virtude da bravura do exército russo. A proposta de um desembarque em Cherbourg desconhecia a existência do canal da Mancha. Por fim, Stalin disse que não podia continuar. Tinha que aceitar nossa decisão. E então, de repente, convidou-nos para jantar na noite seguinte, às vinte horas.

Aceitando o convite, expliquei que partiria de avião na madrugada do outro dia, 15 de agosto. Joe pareceu meio apreensivo com isso e perguntou se eu não poderia ficar um pouco mais. Respondi que certamente sim, se houvesse alguma conveniência nisso, e que esperaria pelo menos mais um dia. Exclamei então que não havia nenhum toque de camaradagem na atitude dele. Eu fizera uma longa viagem para criar uma boa relação de trabalho. Havíamos feito o máximo para ajudar a Rússia, e continuaríamos a fazer. Fôramos deixados inteiramente sozinhos, durante um ano, contra a Alemanha e a Itália. E agora que as três grandes nações haviam-se aliado, a vitória era certa, desde que não nos afastássemos, e assim por diante. Fiquei meio entusiasmado nesse trecho e, antes que ele pudesse ser traduzido, Stalin comentou que gostava do tom de minha fala. Depois disso, a conversa recomeçou num clima um pouco menos tenso.

Ele mergulhou numa longa discussão sobre dois morteiros russos que disparavam foguetes, os quais declarou surtirem efeitos devastadores. Ofere­ceu-se para demonstrá-los a nossos especialistas militares, se eles pudessem esperar. Disse que nos daria todas as informações sobre eles. Mas não deveria haver alguma coisa em troca? Não deveria haver um acordo para trocarmos informações sobre as invenções? Afirmei que lhes daríamos tudo, sem ne­nhuma barganha, excetuando apenas os dispositivos que, se transportados de avião sobre as linhas inimigas e derrubados, tornariam mais difícil nosso bombardeio da Alemanha. Ele aceitou isso. Também concordou em que suas autoridades militares se reunissem com nossos generais, o que foi marcado para as 15 horas. Afirmei que eles precisariam de pelo menos quatro horas para examinar em detalhe as várias questões técnicas implicadas nas operações Sledgehammer, Round-up e Torch. Em certo momento, Stalin observou que Torch era “militarmente correta”, porém o aspecto político exigia mais de­licadeza — isto é, um manejo mais cuidadoso. Volta e meia ele retornava à operação Sledgehammer, resmungando queixas sobre ela. Quando disse que nossa promessa não fora cumprida, retruquei: “Eu repudio essa afirmação. Todas as promessas foram cumpridas”, e apontei para o aide-mémoire que dera a Molotov [vide página 664]. Ele meio que pediu desculpas, dizendo-me que expressava opiniões sinceras e honestas. Não havia desconfiança entre nós, apenas uma diferença de visão.

Finalmente, perguntei sobre o Cáucaso. Defenderia ele a cadeia de monta­nhas, e com quantas divisões? Diante disso, ele mandou trazer uma maquete em relevo e, com aparente franqueza e visível conhecimento, explicou a força dessa barreira, para a qual disse haver 25 divisões disponíveis. Apontou para os vários desfiladeiros e disse que eles seriam defendidos. Perguntei se eram fortificados e ele respondeu: “Sim, claro.” A linha de frente russa, que o inimigo ainda não havia atingido, ficava ao norte da cadeia principal. Stalin disse que a tropa teria de aguentar por dois meses, quando a neve tornaria as montanhas intransponíveis. Declarou-se muito confiante na capacidade deles para tanto e também discorreu em detalhes sobre a força da Esquadra do Mar Negro, que estava concentrada em Batum.

Toda essa parte da conversa foi mais fácil. Porém, quando Harriman indagou sobre os planos para trazer aviões americanos pela Sibéria, coisa que só recentemente os russos haviam consentido, depois de uma longa pressão americana, ele respondeu secamente: “Não se ganham guerras com planos.” Harriman apoiou-me o tempo todo e nenhum de nós cedeu um centímetro ou disse uma palavra rude.

Stalin fez sua continência e me estendeu a mão na saída. Eu a apertei.

Relatei ao Gabinete de Guerra em 14 de agosto:

Estivemo-nos perguntando qual seria a explicação dessa cena e da trans­formação havida com respeito aos bons termos a que tínhamos chegado na noite anterior. Penso que o mais provável é que o Soviete de Comissários [de Stalin] não tenha recebido tão bem quanto ele a notícia trazida por mim. É possível que eles tenham mais poder do que supomos, e menos conhecimento. Talvez ele estivesse fazendo uma exibição pública para fins futuros e para conhecimento deles, e também desabafando um pouco. Cadogan diz que houve um endurecimento similar depois do início da entrevista com Eden no Natal, e Harriman diz que essa técnica também foi usada no início da missão de Beaverbrook.

É minha impressão ponderada que, no fundo do coração, tanto quanto ele o tenha, Stalin sabe que estamos certos e que seis divisões na operação Sledgehammer de nada lhe adiantariam este ano. Além disso, estou certo de que seu julgamento militar, seguro e rápido, faz dele um firme defensor de Torch. Creio não ser impossível que ele volte às boas. Nessa esperança, vou perseverando. Seja como for, tenho certeza de que foi melhor brigarmos dessa maneira do que de qualquer outra. Não houve em momento algum a menor insinuação de eles não continuarem lutando e, pessoalmente, acho que Stalin tem bastante confiança em vencer. (...)

À noite, tivemos um jantar oficial no Kremlin, presentes cerca de quarenta convivas, inclusive vários comandantes militares, membros do Politburo e outros altos funcionários. Stalin e Molotov fizeram as honras com cordia­lidade. Esses jantares eram demorados e, desde o começo, propunham-se muitos brindes, que eram respondidos em discursos curtíssimos. Contam-se histórias tolas sobre esses jantares soviéticos transformarem-se em bebedei­ras. Não há a menor veracidade nisso. O marechal e seus colegas faziam seus brindes, invariavelmente, com taças minúsculas, e bebiam apenas um pequeno gole em cada ocasião. Quanto a mim, fui bem-educado.

No jantar, Stalin conversou animadamente comigo através do intérprete, Pavlov. “Alguns anos atrás”, disse ele, “recebemos a visita de Mr. George Bernard Shaw e de Lady Astor.” Na ocasião, Lady Astor sugeriu que Mr. Lloyd George fosse convidado a visitar Moscou, ao que Stalin havia retrucado: “Por que iríamos convidá-lo? Ele foi o chefe da intervenção.” Mas Lady Astor contrapôs: “Não é verdade. Foi Churchill que o desencaminhou.” “De qualquer modo”, respondeu Stalin, “Lloyd George era o chefe do governo e fazia parte da esquerda. Ele foi o responsável, e nós preferimos um inimigo franco do que um amigo falso.” “Bem, Churchill acabou de vez”, comentou Lady Astor. “Não tenho tanta certeza”, respondeu Stalin. “Se houver uma grande crise, o povo inglês poderá se voltar para o velho veterano de guerra.” Nesse ponto, interrompi-o dizendo: “Há muita verdade no que ela disse. Fui muito atuante na intervenção, e não quero que o senhor pense de outra maneira.” Ele me deu um sorriso amistoso, de modo que perguntei: “O senhor me perdoou?” “Diz o premier Stalin”, traduziu o intérprete Pavlov, “que tudo isso é passado, e o passado a Deus pertence.”

No decorrer de uma de minhas conversas posteriores com Stalin, co­mentei: “Lord Beaverbrook me disse que, quando esteve em sua missão em Moscou em outubro de 1941, o senhor lhe perguntou: ‘Que quis dizer Churchill ao declarar no Parlamento que me avisara sobre o ataque alemão iminente?’ Eu estava me referindo, é claro”, prossegui, “ao telegrama que lhe mandei em abril de 1941”, e mostrei o telegrama que Sir Stafford Cripps entregara tardiamente. Quando este foi lido e traduzido para ele, Stalin deu de ombros. “Lembro-me dele. Eu não precisava de aviso nenhum. Sabia que a guerra ia chegar, mas achei que poderia ganhar mais uns seis meses.” Em nome da causa comum, abstive-me de lhe perguntar o que teria acontecido a todos nós se houvéssemos desaparecido para sempre, enquanto ele dava a Hitler tanto material, tempo e ajuda valiosos.

Tão logo me foi possível, fiz um relato mais formal do banquete a Mr. Attlee e ao presidente:

O jantar transcorreu num clima muito amistoso e com as cerimônias russas habituais. Wavell fez um excelente discurso em russo. Brindei à saúde de Stalin, e Alexander Cadogan brindou à morte e à danação dos nazis. Embora eu estivesse sentado à direita de Stalin, não tive nenhuma opor­tunidade de falar sobre coisas sérias. Ele e eu fomos fotografados juntos e também com Harriman. Stalin fez um discurso bastante longo para elogiar o “Serviço de Inteligência”, no decorrer do qual fez uma referência curiosa aos Dardanelos em 1915, dizendo que os ingleses haviam vencido e que os alemães e turcos já estavam recuando, mas não tomáramos conhecimento disso porque o serviço de inteligência havia falhado. Essa imagem, apesar de inexata, obviamente pretendeu ser um elogio a mim.

2. Retirei-me por volta de uma e meia, por medo de sermos arrastados para um filme longo e estava fatigado. Quando me despedi de Stalin, ele disse que as diferenças que porventura existissem eram apenas de método. Disse-lhe que tentaríamos eliminar inclusive essas diferenças através de atos. Depois de um aperto de mão cordial, comecei a me afastar e caminhei um pouco pelo salão repleto, mas ele se apressou a me alcançar e me acompanhou por uma distância enorme, através de corredores e escadarias, até a porta da frente, onde novamente trocamos um aperto de mão.

3. Talvez, no relatório que lhe enviei sobre a reunião de quinta-feira à noite, eu tenha tido uma visão muito pessimista. Sinto que devo dar um grande desconto pela decepção realmente lamentável que eles tiveram aqui por não podermos fazer mais nada para ajudá-los em sua imensa luta. No fim, eles engoliram essa pílula amarga. Para nós, tudo gira agora em torno de apressarmos Torch e derrotarmos Rommel.

Eu fora ofendido por muitas coisas ditas em nossas conferências. Dera todos os descontos pela tensão em que estavam os líderes soviéticos, com sua vasta frente flamejando e sangrando ao longo de quase duas mil milhas, e com os alemães a apenas cinquenta milhas de Moscou e avançando para o mar Cáspio. As discussões técnicas militares não haviam corrido bem. Nossos generais tinham feito todo tipo de perguntas e seus colegas soviéticos não estavam autorizados a fornecer respostas. A única solicitação soviética era “uma Segunda Frente JÁ”. No fim, Brooke fora bastante ríspido e a confe­rência militar chegara a uma conclusão um tanto ab-rupta.

Deveríamos partir no alvorecer do dia 16. Na noite da véspera, fui me despedir de Stalin às 19 horas. Tivemos uma conversa útil e importante. Perguntei, em especial, se ele conseguiria defender os desfiladeiros das montanhas do Cáucaso e também impedir que os alemães chegassem ao Cáspio, tomassem os campos petrolíferos das proximidades de Baku, com tudo o que isso significava, e depois rumassem para o sul pela Turquia ou pela Pérsia. Ele abriu o mapa e disse, com serena confiança: “Vamos detê-los. Eles não cruzarão as montanhas.” E acrescentou: “Há rumores de que os turcos nos atacarão no Turquestão. Se o fizerem, poderei lidar com eles também.” Eu disse que esse perigo não existia. Os turcos pretendiam ficar de fora e certamente não brigariam com a Inglaterra.

Nossa conversa de uma hora chegou ao fim e eu me levantei para dizer adeus. De repente, Stalin pareceu envergonhado e disse, no tom mais cordial que até então usara comigo: “O senhor parte ao raiar do dia. Por que não vamos até minha casa tomar uns drinques?” Respondi que, em princípio, eu era sempre favorável a essa política. Assim, ele abriu caminho por muitas passagens e cômodos até sairmos numa rua calma dentro do Kremlin e, umas duzentas jardas adiante, chegarmos ao apartamento onde ele morava. Stalin mostrou-me seus aposentos, que eram de tamanho moderado, simples, dig­nos e em número de quatro — uma sala de jantar, um escritório, um quarto de dormir e um banheiro amplo. Pouco depois, surgiram, primeiro, uma empregada muito idosa e, em seguida, uma bonita moça ruiva, que beijou respeitosamente o pai. Ele me olhou dando uma piscadela, como que para expressar, pensei eu: “Está vendo, até os bolcheviques têm vida familiar.” A filha de Stalin começou a pôr a mesa e, pouco depois, a criada apareceu com alguns pratos. Enquanto isso, Stalin havia aberto várias garrafas, que começavam a compor um sortimento imponente. Então, disse: “Por que não chamamos Molotov? Ele está preocupado com o comunicado. Poderíamos resolver isso aqui. Há uma coisa a favor de Molotov — ele sabe beber.” Percebi então que haveria um jantar. Eu tinha planejado jantar na “Villa Estatal nº 7,” onde o general Anders, o comandante polonês, estava a minha espera, mas pedi a meu novo e excelente intérprete, o major Birse, que telefonasse dizendo que eu não voltaria antes da meia-noite. Pouco depois, Molotov chegou. Sentamo-nos e, com os dois intérpretes, somamos cinco pessoas. O major Birse havia morado em Moscou por vinte anos e se deu muito bem com o marechal, com quem manteve por algum tempo uma conversa fluente, da qual não pude participar.

Na verdade, estivemos sentados a essa mesa das 20h30 até as duas e meia da madrugada seguinte, o que, com minha entrevista anterior, somou um total de mais de sete horas. O jantar foi visivelmente improvisado de uma hora para outra, mas, pouco a pouco, foram chegando mais e mais pratos. Provamos e beliscamos, como parecia ser o estilo russo, uma longa sucessão de iguarias, e bebericamos uma quantidade de vinhos excelentes. Molotov mostrou seus modos mais afáveis e Stalin, para animar a situação, caçoou dele implacavelmente.

Mais tarde, falamos sobre os comboios destinados à Rússia. Isso o levou a tecer um comentário ríspido e grosseiro sobre a destruição quase total de um comboio do Ártico em junho.

“O senhor Stalin está perguntando”, disse Pavlov, com certa hesitação, “se a marinha inglesa não tem nenhum senso de glória.” “O senhor pode ter certeza”, respondi, “que o que fizemos foi certo. Realmente entendo um bocado sobre marinha e guerra naval.” “O que significa que eu não entendo nada”, disse Stalin. “A Rússia é um animal terrestre”, retruquei, “enquan­to os ingleses são bichos marinhos.” Ele ficou em silêncio e recuperou o bom humor. Voltei a conversa para Molotov. “O marechal sabia que seu ministro do Exterior, em sua recente visita a Washington, tinha dito que estava decidido a visitar Nova York inteiramente a sós, e que o atraso em sua volta não fora por causa de nenhum defeito no avião, mas porque ele estava passeando sozinho?”

Embora se possa dizer quase tudo num jantar russo, à guisa de pilhéria, Molotov pareceu ficar muito sério diante disso. Mas o rosto de Stalin se iluminou, divertido, e disse: “Não é a Nova York que ele foi. Ele foi a Chi­cago, onde moram os outros gângsteres.

Estando assim inteiramente restabelecidas as relações, a conversa conti­nuou rolando. Puxei o assunto de um desembarque inglês na Noruega, com apoio russo, e expliquei de que modo, se pudéssemos tomar o cabo Norte no inverno e destruir os alemães que estavam lá, o caminho dos comboios ficaria livre a partir de então. Essa ideia, como já se viu, era um de meus planos favoritos. Stalin pareceu muito atraído por ela e, depois de falarmos sobre meios e modos, concordamos que deveríamos executá-la, se possível.

Já passava da meia-noite e Cadogan não havia aparecido com o rascunho do communiqué.

“Diga-me”, perguntei, “as tensões desta guerra têm sido para o senhor, pessoalmente, tão ruins quanto a execução da política das fazendas coleti­vas?”

Esse assunto despertou imediatamente o marechal. “Oh, não!”, disse ele. “A política das fazendas coletivas foi uma luta terrível.”

“Achei que o senhor a teria achado ruim, porque não lidava com uns poucos milhares de aristocratas ou grandes latifundiários, mas com milhões de homens do povo.”

“Dez milhões”, disse ele, erguendo as mãos. “Foi assustador. Durou quatro anos. Era absolutamente necessário para a Rússia, para evitarmos os ciclos periódicos de fome, que a terra fosse arada com tratores. Precisáva­mos mecanizar nossa agricultura. Quando demos tratores aos camponeses, todos se estragaram em poucos meses. Só as fazendas coletivas, que tinham oficinas, conseguiam lidar com tratores. Tivemos o maior cuidado de ex­plicar isso aos camponeses. Mas não adianta discutir com eles. Depois que você diz tudo o que pode a um camponês, ele diz que tem de ir em casa e conversar com a mulher, e que precisa consultar seu cão pastor.” (Essa expressão era nova para mim nesse contexto.) “Depois de conversar com eles, ele vem e sempre responde que não quer a fazenda coletiva e prefere ficar sem os tratores.”

“Isso era o que vocês chamam de kulaks?”

“É”, disse ele, sem repetir a palavra. E, depois de uma pausa: “Foi tudo muito ruim e difícil; mas necessário.”

“Que aconteceu?”, perguntei.

“Ah, bem, muitos deles concordaram em se associar conosco. Alguns receberam sua própria terra para cultivar, na província de Tomsk, ou na província de Irkutsk, ou mais ao norte, mas a grande maioria era muito impopular e foi liquidada por seus trabalhadores.”

Houve uma pausa considerável. E então: “Não só aumentamos larga­mente o abastecimento de alimentos, como também melhoramos incom­paravelmente a qualidade dos grãos. Costumava-se plantar toda sorte de grãos. Agora, ninguém tem permissão de semear nada senão o grão soviético padrão, de uma ponta a outra deste país. Se não plantarem, serão tratados com severidade. Isso significa outro grande aumento no abastecimento de alimentos.”

Vou registrando estas lembranças tal como me vêm à mente, bem como a vívida impressão que tive, naquele momento, de milhões de homens e mulheres sendo eliminados ou deslocados para sempre. Por certo viria uma geração para a qual seus sofrimentos seriam desconhecidos, mas ela com certeza teria mais o que comer e bendiria o nome de Stalin. Não repeti o dito de Burke — “Se eu não puder fazer uma reforma sem injustiça, não farei reforma alguma”. Com a Guerra Mundial grassando a nossa volta, pareceu-me inútil recitar moralismos.

Cadogan trouxe o rascunho do communiqué por volta da uma hora da manhã. Pusemo-nos a trabalhar para pô-lo em forma final. Um leitão de porte considerável foi trazido para a mesa. Até ali, Stalin havia apenas provado os pratos, mas já passava de uma e meia e essa era mais ou menos sua hora costu­meira de jantar. Stalin convidou Cadogan a se juntar a ele na empreitada e, quando meu amigo recusou polidamente, nosso anfitrião abateu-se sobre a vítima sozinho. Feito isto, retirou-se ab-ruptamente para o cômodo ao lado, para receber os relatórios de todos os setores do front, que lhe eram envia­dos a partir das duas horas. Passaram-se uns vinte minutos antes que ele voltasse e, a essa altura, chegáramos a um acordo sobre o communiqué. Por fim, às duas e meia, eu disse que precisava ir. Dispunha de meia hora para chegar à villa e mais outra para me dirigir ao aeroporto. Estava com uma dor de cabeça de rachar, coisa incomum em mim, e ainda tinha que ver o general Anders. Insisti com Molotov que não fosse despedir-se de mim ao amanhecer, pois ele estava visivelmente esgotado. Ele me olhou com ar reprovador, como quem dissesse: “Você realmente acha que eu deixaria de estar lá?”

Decolamos às cinco e meia. Fiquei muito contente por dormir no avião e não tenho nenhuma lembrança da paisagem ou da viagem, até chegarmos à orla do mar Cáspio e começarmos a sobrevoar as montanhas de Elburz. Em Teerã, não fui para a embaixada, mas para a clareira fresca e silenciosa da residência de verão, no alto da cidade. Ali, um grande maço de telegramas me esperava. Eu havia planejado uma conferência no dia seguinte, em Bagdá, com a maioria de nossas altas autoridades da Pérsia e do Iraque, mas não achei que pudesse enfrentar o calor de Bagdá em meados de agosto e foi muito fácil trocar a jurisdição por Cairo. Nessa noite, jantei com o grupo da missão diplomática no bosque aprazível e fiquei feliz em esquecer todas as preocupações até o amanhecer.