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A Itália e o desembarque na Riviera

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A libertação da Normandia foi um acontecimento supremo na campanha europeia de 1944, mas apenas um de vários golpes concêntricos contra a Alemanha nazi. No leste, os russos entravam aos borbotões na Polônia e nos Bálcãs e, no sul, os exércitos de Alexander na Itália investiam em direção ao rio Pó. Era preciso tomar decisões sobre nosso próximo passo no Mediter­râneo, e lastimo ter de contar que elas ocasionaram a primeira divergência estratégica importante entre nós e nossos amigos americanos.

O projeto da vitória final na Europa fora traçado em novembro de 1943, depois de longas discussões, na Conferência de Teerã. Como as decisões então tomadas ainda regiam nossos planos, convém relembrá-las aqui. Em primeiro lugar, e principalmente, havíamos prometido a operação Overlord. Essa era a missão dominante e, ninguém discutia, nosso dever primordial. Mas, como ainda tínhamos forças poderosas no Mediterrâneo, persistia a questão — que deveriam fazer? Resolvêramos que deviam tomar Roma, cujos aeródromos próximos eram necessários para bombardearmos o sul da Alemanha, avançar península acima até a linha Pisa-Rimini e, nesse ponto, fixar quantas divisões inimigas fosse possível. Mas isso não era tudo. Também chegáramos a um acordo quanto a uma terceira operação, um desembarque anfíbio no sul da França — e foi em torno desse projeto que logo despontaria a controvérsia. Ele fora concebido originalmente como uma finta ou ameaça, visando a reter tropas alemãs na Riviera e impedi-las de entrar no combate pela Normandia, mas os americanos insistiram num ataque real com dez divisões, e Stalin os apoiou. Aceitei a mudança, mais para impedir desvios inconvenientes para a Birmânia, embora imaginasse outros modos de explorarmos o êxito na Itália, e o plano recebeu o nome-código de Anvil [Bigorna].

Havia, no entanto, diversas condições. Muitas das forças teriam que vir da Itália, mas não sem antes cumprir a árdua e importante missão de tomar Roma e os aeródromos. Enquanto não se fizesse isso, Alexander poderia abrir mão de pouca coisa. Roma teria que cair antes que Anvil começasse. E Anvil também teria que ser lançada mais ou menos junto com Overlord. As tropas teriam um longo caminho a percorrer antes de alcançar os exér­citos de Eisenhower na Normandia e, se não desembarcassem a tempo, chegariam tarde demais para ser de qualquer serventia. A batalha das praias estaria encerrada. Tudo girava em torno da conquista de Roma. Em Teerã, havíamos esperado confiantemente alcançá-la no início da primavera, mas isso se revelara impossível. O ataque a Anzio, a fim de acelerar a tomada da capital, havia afastado oito ou dez divisões alemãs do teatro vital, portanto, mais do que esperáramos que a Anvil atraísse para a Riviera. Isso, na verda­de, tornou Anvil ultrapassada, ao cumprir-lhe a finalidade. No entanto, o projeto da Riviera prosseguiu como se nada houvesse acontecido.

À parte o fato de Anvil estar delineada de forma um tanto vaga no futuro, algumas das melhores divisões do exército concentradas na Itália tinham sido acertadamente destinadas à operação maior, a Overlord, e por isso haviam zarpado para a Inglaterra no fim de 1943. Assim, Alexander fora enfraquecido e Kesselring se fortalecera. Os alemães haviam mandado reforços para a Itália, detido o avanço através de Anzio e impedido que entrássemos em Roma até pouco antes do Dia D. Os duros combates, é claro, haviam tragado importantes reservas inimigas, que de outro modo poderiam ter ido para a França, e sem dúvida haviam contribuído para as fases iniciais mais críticas da Overlord. Apesar disso, nosso avanço pelo Me­diterrâneo fora seriamente prejudicado. As barcaças de desembarque eram outro obstáculo. Muitas tinham sido enviadas para a operação Overlord. A operação Anvil só poderia ser montada quando elas voltassem, o que, por sua vez, dependia dos acontecimentos na Normandia. Esses fatos tinham sido previstos com muita antecedência e, já em 21 de março, o general Maitland Wilson, comandante supremo no Mediterrâneo, avisara que a Anvil só poderia ser lançada no fim de julho. Mais tarde, ele a adiara para meados de agosto, declarando que a melhor maneira de ajudar a Overlord seria abandonar qualquer ataque à Riviera e concentrar as forças na Itália. Tanto ele quanto Alexander julgavam que sua melhor contribuição para a meta comum seria insistir num avanço com todos os seus recursos para o vale do Pó. Dali, com a ajuda de uma operação anfíbia contra a península da Istria, no extremo norte do Adriático, dominada por Trieste e situada para o sul dessa cidade, haveria perspectivas atraentes de um avanço pelo Passo de Liubliana rumo à Áustria e à Hungria e de um ataque ao coração da Alemanha por outra direção.

Com a queda de Roma, em 4 de junho, o problema teria de ser reexami­nado. Deveríamos prosseguir com Anvil ou elaborar um novo plano?

Naturalmente, o general Eisenhower queria reforçar seu ataque a noroeste da Europa com todos os meios disponíveis. As possibilidades estratégicas no norte da Itália não o atraíam, mas ele consentiu em devolver as barcaças de desembarque logo que possível, caso isso acelerasse a operação Anvil. Os chefes de estado-maior americanos concordaram com Eisenhower, aferrando-se rigidamente à máxima da concentração no ponto decisivo, que, na opinião deles, era apenas o noroeste da Europa. Tiveram o respaldo do presidente Roosevelt, cioso dos acordos feitos com Stalin muitos meses antes, em Teerã. Mas tudo fora alterado pela demora na Itália.

Mr. Roosevelt admitiu que um avanço pelo Passo de Liubliana poderia conter as tropas alemãs, mas não retiraria nenhuma das divisões inimigas da França. Assim, insistiu na realização de Anvil, à custa, é claro, dos nossos exércitos na Itália, dizendo: “A meu ver, os recursos da Inglaterra e dos Es­tados Unidos não nos permitirão manter dois grandes teatros de operações na guerra europeia, cada qual com missões decisivas.” Os chefes de estado-maior ingleses foram de opinião inversa. Em vez de desembarcar na Riviera, preferiam enviar, por mar, tropas da Itália diretamente para Eisenhower. Com muita presciência, observaram: “Consideramos que a preparação de Anvil numa escala passível de ter êxito incapacitaria a tal ponto as forças restantes do general Alexander, que qualquer nova atividade ficaria limitada a algo muito modesto.”

Esse conflito direto de opiniões sustentadas com franqueza e caloro­samente defendidas pelos dois lados só teria alguma possibilidade de ser solucionado entre nós dois, o presidente e eu próprio, e teve lugar uma troca de telegramas.

“O impasse”, telegrafei em 28 de junho, “entre nossos chefes de estado-maior suscita questões da maior gravidade. Nosso desejo primordial é ajudar o general Eisenhower da maneira mais rápida e eficaz. Mas não cremos que isso implique necessariamente a ruína completa de todos os nossos grandes projetos no Mediterrâneo. É difícil aceitar que isso nos seja exigido. (...) Rogo-lhe com empenho que examine o senhor mesmo e em detalhe essa questão. (...) Lembre-se, por favor, de como o senhor me falou da Istria em Teerã e de como apresentei a ideia na sessão da conferência. Isso me ficou gravado a fundo na memória, embora de modo algum constitua a questão imediata que temos de decidir.”

A resposta de Mr. Roosevelt foi imediata e adversa. Ele estava decidido a levar a cabo o que chamava a “grande estratégia” de Teerã, qual fosse, ex­plorar ao máximo a operação Overlord, “avanços vitoriosos na Itália e um ataque ao sul da França o mais cedo possível”. Objetivos políticos podiam ser importantes, mas as operações militares destinadas a alcançá-los deveriam subordinar-se a um golpe contra o coração da Alemanha por uma campanha na Europa. O próprio Stalin preferira Anvil e classificara todas as demais operações no Mediterrâneo como de menor importância, e Mr. Roosevelt declarou não poder abandoná-la sem consultá-lo. O presidente prosseguiu:

Meu interesse e minhas esperanças centram-se em derrotar os alemães situados em frente a Eisenhower e empurrá-los para a Alemanha, e não em restringir essa ação com o fim de montar uma ofensiva completa na Itália. Estou convencido de que teremos forças suficientes na Itália, retiradas as que se destinam à operação Anvil, para perseguir Kesselring ao norte de Pisa-Rimini e manter uma intensa pressão contra seu exército, no mínimo com a força necessária para conter seu poder atual. Não consigo imaginar os alemães arcando com o preço de mais dez divisões, estimadas como necessárias pelo general Wilson, para nos manter fora do norte da Itália.

Podemos — e Wilson o confirma — retirar imediatamente cinco divisões (três americanas e duas francesas) da Itália para Anvil. As 21 divisões restan­tes, mais inúmeras brigadas não enquadradas, certamente darão a Alexander suficiente superioridade terrestre.1

Mas foram as objeções de Mr. Roosevelt a um movimento sobre a península da Istria e a um avanço contra Viena pelo Passo de Liubliana que revelaram a rigidez dos planos militares americanos e a própria desconfiança dele do que chamava de uma campanha “nos Bálcãs”. Ele alegou que Alexander e Smuts, que também eram favoráveis à minha opinião, inclinavam-se, “por várias razões naturais e perfeitamente humanas”, a desprezar duas considera­ções vitais. Primeiro, a operação contrariava a “grande estratégia”. Segundo, levaria tempo demais, e era provável que não conseguíssemos dispor mais de seis divisões. “Não posso concordar”, escreveu o presidente, “com o emprego de tropas dos Estados Unidos contra a Istria e penetrando nos Bálcãs, nem me parece que os franceses concordassem com tal utilização de suas tropas. (...) Por motivos puramente políticos daqui, eu jamais sobreviveria ao menor e mais ligeiro contratempo com Overlord, caso se soubesse que forças bastante consideráveis tinham sido desviadas para os Bálcãs”.

Nenhuma das pessoas envolvidas nessas discussões jamais sequer pensara em deslocar tropas para os Bálcãs; mas a Istria e Trieste eram posições es­tratégicas e políticas que, como ele percebia com perfeita clareza, poderiam provocar reações profundas e generalizadas, sobretudo depois dos avanços russos. Resignei-me, porém, momentaneamente, e em 2 de julho o general Wilson recebeu ordens de atacar o sul da França no dia 15 de agosto. Os preparativos tiveram início prontamente, mas o leitor deve observar que a Anvil foi então denominada Dragoon, para obviar a eventualidade de que o inimigo houvesse descoberto o significado do código original.

No começo de agosto, porém, houve uma mudança acentuada no campo de batalha da Normandia, com a iminência de grandes acontecimentos. No dia 7, visitei Eisenhower em seu QG próximo de Portsmouth e lhe expus minha última esperança de suspender o ataque ao sul da França. Após um almoço agradável, tivemos uma conversa longa e séria. Eisenhower estava acompanhado por Bedell Smith e pelo almirante Ramsay. Eu levara comigo o primeiro Lord do mar, uma vez que a movimentação da marinha era a chave de tudo. Em síntese, o que propus foi que continuássemos a fazer o embarque para a operação Dragoon, mas que, quando os soldados estivessem nos navios, nós os mandássemos passar pelo estreito de Gibraltar para entrar na França por Bordeaux. Essa questão fora longamente examinada pelos chefes de estado-maior ingleses e a operação considerada viável. Mostrei a Eisenhower um telegrama que enviara ao presidente, cuja resposta eu ainda não havia recebido, e fiz o melhor que pude para convencê-lo. O primeiro lord do mar deu-me seu sólido apoio. O almirante Ramsay argumentou contra qualquer alteração nos planos. Bedell Smith, ao contrário, declarou-se vivamente a favor desse súbito desvio do ataque, que teria toda a surpresa propiciável pelo poder naval. Eisenhower não se ressentiu nem um pouco das opiniões emitidas por seu chefe de estado-maior. Ele sempre estimulou a livre expressão de opiniões nas discussões do alto comando, embora, é claro, qualquer decisão tomada tivesse de contar, na prática, com a lealdade de todos.

Entretanto, não consegui convencê-lo, e no dia seguinte recebi a resposta do presidente:

Feitas todas as ponderações, é minha opinião que Dragoon deve ser lan­çada conforme planejado, na primeira data viável, e tenho toda a confiança em que será um sucesso e de grande ajuda para Eisenhower na expulsão dos hunos da França.

Nada mais havia a fazer. Vale notar que, àquela altura, havíamos ul­trapassado o dia do mês de julho em que, pela primeira vez na guerra, a movimentação dos grandes exércitos americanos na Europa e seu cresci­mento no Extremo Oriente haviam tornado o número de seus soldados em combate maior do que o nosso. Nas operações de aliados, a influência costuma aumentar com os grandes reforços. Convém ainda lembrar que, se as opiniões inglesas sobre essa questão estratégica tivessem sido aceitas, é bem possível que os preparativos táticos causassem um certo atraso, o que também teria influído na discussão geral.

Resolvi então ir pessoalmente à Itália, onde muitas questões poderiam ser resolvidas mais facilmente no campo do que por correspondência. Seria muito proveitoso ver os comandantes e soldados de quem tanto se vinha exi­gindo, depois de tanto se lhes haver tirado. Alexander, embora severamente enfraquecido, estava preparando seus exércitos para uma nova ofensiva. Eu ansiava por conhecer Tito, que poderia deslocar-se facilmente para a Itália saindo da ilha de Vis, onde lhe estávamos dando proteção. O primeiro-ministro grego, M. Papandreou, e alguns de seus colegas poderiam vir do Cairo, e era possível traçarmos planos para ajudá-los a voltar para Atenas quando os alemães partissem. Cheguei a Nápoles na tarde de 11 de agosto e fui instalado na suntuosa mas meio dilapidada Villa Rivalta, que tinha uma vista gloriosa do Vesúvio e da baía. Ali, o general Wilson explicou-me que se haviam tomado todas as providências para uma conferência na manhã seguinte com Tito e Subasic, o novo primeiro-ministro iugoslavo do governo do rei Peter em Londres. Eles já haviam chegado a Nápoles e jantariam conosco na noite seguinte.

Na manhã de 12 de agosto, o marechal Tito foi ter comigo na villa. Tra­java um magnífico uniforme dourado e azul, muito apertado no colarinho e singularmente impróprio para o calor escaldante. O uniforme lhe fora dado pelos russos e, como me informaram depois, os galões dourados tinham vindo dos Estados Unidos. Reuni-me a ele no terraço da villa, acompanha­do pelo general Maclean e por um intérprete. Sugeri que o marechal talvez quisesse primeiramente ver a sala de guerra do general Wilson, de modo que entramos na casa. O marechal estava acompanhado por dois guarda-costas mal-encarados que portavam pistolas automáticas e quis que eles também entrassem para protegê-lo de uma eventual traição de nossa parte. Com certo custo, foi dissuadido, mas propôs, em contrapartida, tê-los ao seu lado no jantar, para que o defendessem.

Conduzi-o a uma sala espaçosa, com as paredes cobertas de mapas das frentes de batalha, e tivemos uma longa conversa. Apontei a península da Istria no mapa. Ele foi totalmente favorável a que a atacássemos e prometeu ajudar. Nessa ocasião e nos dias subsequentes, empenhamo-nos ao máximo em reforçar e intensificar o esforço de guerra iugoslavo e em curar a ferida entre Tito e o rei Peter.

Na tarde de 14 de agosto, voei até a Córsega no Dakota do general Wilson para assistir ao desembarque na Riviera, que eu tanto me empenhara em impedir, mas ao qual augurava todo o sucesso. Do destróier inglês Kimberley, vimos as longas fileiras de navios, repletos de tropas de assalto americanas, rumarem continuamente para a baía de St. Tropez. Tanto quanto pude ver ou ouvir, nem um único tiro foi disparado contra as flotilhas que se apro­ximavam, nem contra as praias. Os encouraçados pararam de atirar, já que não parecia haver ninguém por perto. No dia 16, voltei a Nápoles, onde pernoitei antes de seguir viagem para encontrar Alexander no front. Pelo menos, eu me mostrara respeitoso para com Anvil-Dragoon, e achei bom ter estado perto do teatro de operações para demonstrar o interesse que tinha na operação. Podemos agora resumir brevemente o que aconteceu.

O VII Exército, comandado pelo general Patch, fora organizado para executar o ataque. Sete divisões francesas e três americanas, juntamente com uma divisão mista de paraquedistas dos EUA e da Inglaterra, tiveram o apoio de nada menos de seis couraçados, 21 cruzadores e uma centena de contratorpedeiros. No ar, tínhamos uma superioridade esmagadora, e misturados entre os alemães no sul da França havia mais de 25 mil homens armados da Resistência, prontos para a revolta. O assalto ocorreu no começo do dia 15, entre Cannes e Hyères. As baixas foram relativamente pequenas e os americanos avançaram com rapidez. No dia 28, estavam para lá de Valence e Grenoble. O inimigo não fez nenhuma tentativa real de detê-los, exceto por um combate acirrado com uma divisão Panzer em Montélimar. A Força Aérea Tática dos aliados deu-lhe um duro tratamento e destruiu seus transportes. A perseguição de Eisenhower, saindo da Normandia, cortou-lhe a retaguarda, tendo chegado ao Sena na altura de Fontainebleau em 20 de agosto. Cinco dias depois, estava bem além de Troyes. Os sobreviventes do XIX Exército alemão, numa soma nominal de cinco divisões, bateram em retirada, deixando cinquenta mil prisioneiros em nossas mãos. Lyon foi tomada em 3 de setembro, Besançon, no dia 8, e Dijon foi libertada pelo Movi­mento de Resistência no dia 11. Nessa data, Dragoon e Overlord deram-se as mãos em Sombernon. No triângulo do sudoeste da França, aprisionados por essas ofensivas concêntricas, ficaram os remanescentes isolados do I Exército alemão, num total de mais de vinte mil homens que se entregaram sem resistir.

Resumindo a história, a proposta original de Teerã em novembro de 1943 fora de um desembarque no sul da França, para ajudar a facilitar as coisas para a operação Overlord. O momento escolhido deveria cair na semana anterior ou posterior ao Dia D. Tudo isso foi modificado pelo que ocorreu nesse meio-tempo. Por si só, a ameaça latente do Mediterrâneo bastou para reter dez divisões alemãs na Riviera. Anzio, sozinha, significou a perda do equivalente a quatro divisões inimigas utilizáveis em outras frentes. Quan­do, com a ajuda de Anzio, toda a nossa linha de combate avançou, tomou Roma e ameaçou a Linha Gótica, os alemães despacharam às pressas mais oito divisões para a Itália. A demora na capitulação de Roma e o envio de barcaças de desembarque do Mediterrâneo para ajudar na operação Overlord provocaram o adiamento de Anvil-Dragoon para mea­dos de agosto, dois meses depois da data proposta. Portanto, ela em nada afetou a operação Overlord. Quando lançada, já tardiamente, não afastou nenhum inimigo do teatro de operações da Normandia. Assim, nenhuma das razões presen­tes em nosso pensamento em Teerã teve qualquer relação com o que foi feito, e a operação Dragoon não acarretou nenhum desvio das forças que se opunham ao general Eisenhower.2 Na verdade, em vez de ajudá-lo, foi ele que a ajudou, ao ameaçar a retaguarda dos alemães que recuavam pelo vale do Ródano. Isso não equivale a negar que a operação, tal como realizada, tenha acabado por levar um importante auxílio ao general Eisenhower, com a chegada de outro exército por seu flanco direito e a abertura de outra linha de comunicações até lá. Mas pagou-se um alto preço por isso. O Exército da Itália foi privado de sua oportunidade de desferir um golpe de extremo impacto contra os alemães e, muito possivelmente, de chegar a Viena antes dos russos, com tudo o que poderia ter decorrido disso. Todavia, uma vez tomada a decisão final, é claro que dei todo o meu apoio a Anvil-Dragoon, apesar de ter feito o possível para limitá-la ou desviá-la.

Na manhã de 17 de agosto, fui de automóvel ao encontro do general Alexander. Muito me alegrou vê-lo pela primeira vez desde sua vitória e sua entrada em Roma. Ele me levou a percorrer toda a antiga frente de Cassino, mostrando-me como fora a batalha e onde haviam ocorrido os principais combates. Alexander trouxe seus altos oficiais para o jantar e me explicou todas as suas dificuldades e planos. O XV Grupo de Exércitos estava real­mente depenado e faminto. Os grandes projetos que havíamos acalentado tinham de ser abandonados. Ainda era nosso dever reter o maior número possível de alemães em nosso front. Para que esse objetivo fosse alcança­do, era imperativa uma ofensiva; mas as tropas alemãs, bem homogêneas, eram quase tão fortes quanto as nossas, compostas estas de uma porção de contingentes e raças diferentes. Propôs-se um ataque ao longo de todo o front nas primeiras horas do dia 26. Nossa mão direita estaria pousada no Adriático e nosso objetivo imediato seria Rimini. A oeste, sob o comando de Alexander, achava-se o V Exército dos EUA. Este fora despojado e mutilado para favorecer a operação Anvil, mas, ainda assim, avançaria com vigor.

Em 19 de agosto, visitei o general Mark Clark em Leghorn. Almoçamos ao ar livre, à beira-mar. Em nossas conversas amistosas e confidenciais, percebi quão doloroso fora o desmantelamento desse belo exército para os que o comandavam. O general parecia amargurado com o fato de que fora roubada de seu exército o que ele julgava ser — e eu não podia discordar — uma grande oportunidade. Mesmo assim, ele faria o máximo avanço pos­sível pela esquerda inglesa e manteria todo o front em combate. Era tarde e eu estava exausto quando voltei ao château em Siena, onde novamente Alexander veio para jantar.

Quando se escrevem coisas no papel para decidir ou explicar as grandes questões que afetam os combates, há um desgaste mental. Mas tudo isso fere muito mais fundo quando é visto e sentido no campo. Lá estava aquele esplêndido exército, equivalente a 25 divisões, um quarto das quais americanas, re­duzido a ponto de não ter forças suficientes para produzir resultados decisivos contra o imenso poderio da defensiva. Com um pouquinho mais — metade do que nos fora retirado — poderíamos ter penetrado no vale do Pó, com todas as brilhantes possibilidades e conquistas acessíveis no caminho para Viena. Nas condições vigentes, nossas tropas, com cerca de um milhão de homens, só podiam desempenhar um papel secundário em qualquer plano estratégico de grande impacto. Podiam manter o inimigo ocupado em seu front, ao preço e ao risco de uma ofensiva vigorosa. Podiam, ao menos, cumprir seu dever. Alexander manteve seu ânimo guerreiro, mas foi com abatimento que me deitei. Nessas grandes questões, a impossibilidade de impor a própria vontade não nos livra da responsabilidade por uma solução inferior.

Como a ofensiva de Alexander não poderia começar antes do dia 26, voei para Roma na manhã de 21. Ali me aguardavam outro conjunto de problemas e um portentoso grupo de novos personagens. Primeiramente, eu tinha de lidar com a crise grega iminente, que fora uma das principais razões de minha visita à Itália. Os boatos de uma evacuação alemã da Grécia despertaram intensa agitação e discórdia no ministério de M. Papandreou e revelaram a base frágil e falsa em que se fundamentava a ação comum. Isso tornava ainda mais necessário que eu me encontrasse com Papandreou e seus homens de confiança. Reunimo-nos nessa noite. Nem seu governo nem o próprio estado grego dispunham de armas ou de força policial. Ele nos pediu ajuda para unir a resistência grega contra os alemães. Naquele momento, apenas as pessoas erradas dispunham de armas, e eram minoria. Eu lhe disse que não podíamos fazer nenhuma promessa ou assumir qualquer compro­misso de enviar tropas inglesas para a Grécia, e que nem se deveria falar dessa possibilidade em público, mas aconselhei-o a transferir imediatamente seu governo do Cairo, com o clima de intriga que havia por lá, para algum lugar da Itália próximo ao quartel-general do supremo comandante aliado. Ele concordou em fazê-lo. Quanto ao futuro, garanti que não tínhamos intenção de interferir no solene direito do povo grego de escolher entre a monarquia e a república. Mas deveria caber ao povo grego como um todo, e não a um punhado de ideólogos, decidir tão grave questão. Embora, pessoalmente, eu oferecesse minha lealdade à monarquia constitucional que se formara na Inglaterra, o governo de Sua Majestade era indiferente ao modo como o assunto viesse a ser resolvido, desde que houvesse um plebiscito legítimo. Oportunamente, veremos o que aconteceu.

Em Roma, hospedei-me na embaixada, onde nosso embaixador, Sir Noel Charles, e sua esposa dedicaram-se a meus afazeres e meu conforto. Orientado por ele, encontrei-me com a maioria das principais figuras dos escombros da política italiana produzidos por vinte anos de ditadura, uma guerra desastrosa, revoluções, invasão, ocupação, controle aliado e tantas mazelas. Entre outros, conversei com o Signor Bonomi e o general Badoglio, e também com o camarada Togliatti, que voltara à Itália no início do ano, após uma longa estada na Rússia. Os líderes de todos os partidos italianos foram convidados a se encontrar comigo. Nenhum deles tinha mandato eleitoral e os nomes de seus partidos, revividos do passado, tinham sido escolhidos com vistas ao futuro. “Qual é o vosso partido?”, perguntei a um grupo. “Somos os Cristãos Comunistas”, respondeu seu chefe. Não me sofri de dizer: “Deve ser tão inspirador para vosso partido ter as Catacumbas tão perto.” Eles não pareceram compreender e, pensando bem, temo que seus pensamentos tenham-se voltado para as cruéis execuções em massa perpetra­das tão pouco tempo antes pelos alemães naqueles antigos sepulcros. Mas é perdoável fazer referências históricas em Roma. Erguendo-se por toda parte, majestosa e aparentemente invulnerável, com seus monumentos e palácios e seu esplendor de ruínas não produzidas por bombardeios, a Cidade Eterna parecia contrastar marcantemente com os seres minúsculos e transitórios que se agitavam dentro de seus limites. Também tive meu primeiro contato com o príncipe herdeiro Umberto, que, como lugar-tenente do domínio, comandava as forças italianas em nosso front. Sua personalidade forte e cativante e sua compreensão de toda a situação militar e política foram reconfortantes, proporcionando um sentimento mais vívido de confiança do que eu havia experimentado em minhas conversas com os políticos. Sem dúvida, tive esperança de que ele cumprisse seu papel na construção de uma monarquia constitucional numa Itália livre, vigorosa e unida. Mas isso não era problema meu.

Logo cedo em 24 de agosto, voltei de avião para o QG de Alexander em Siena, hospedando-me no château a algumas milhas dali. Na tarde seguinte, partimos para o QG de combate do general Leese, do VIII Exército, no lado do Adriático. Ali ficamos em tendas que descortinavam ao norte um magnífico panorama. O Adriático, apesar de distar apenas vinte milhas, era encoberto pela massa do monte Maggiore. O general Leese nos disse que o fogo cerrado que daria cobertura ao avanço de suas tropas teria início à meia-noite. Estávamos todos bem-posicionados para observar a longa fileira de clarões do canhoneio distante. O troar rápido e incessante dos canhões fez-me lembrar a Primeira Guerra Mundial. Sem dúvida, a artilharia estava sendo usada em grande escala. Depois de uma hora disso, fiquei contente em ir para a cama, pois Alexander havia planejado levantar cedo para um longo dia no front. Ele também prometera levar-me aonde eu quisesse ir.

Alexander e eu saímos por volta das nove horas. Seu ajudante de ordens e Tommy (o comandante Thompson) seguiram num segundo carro. Éramos, portanto, um grupo convenientemente pequeno. Fazia oito horas que a ofensiva estava em andamento, e fomos informados de que ia bem. Até esse momento, porém, era impossível ter uma impressão definitiva. Subimos de carro ao cume de um alto morro de pedra, onde se empoleiravam uma igreja e uma pequena aldeia. Os moradores, homens e mulheres, saíram dos porões onde se haviam abrigado para nos cumprimentar. Era fácil perceber que o lugar acabara de ser bombardeado. Pedaços de alvenaria e outros escombros cobriam a única rua existente. “Quando foi que isso parou?,” perguntou Alexander à pequena multidão que nos cercara dando sorrisos forçados. “Há uns 15 minutos”, responderam eles. Era magnífica a vista desde as encostas seculares. Toda a frente da ofensiva do VIII Exército era visível. Contudo, afora os rolos de fumaça das bombas que explodiam, dispersas, a sete ou oito milhas de distância, nada havia para ver. Pouco depois, Alexander disse que era melhor não nos demorarmos ali, pois o inimigo, naturalmente, estaria disparando contra postos de observação como aquele e poderia recomeçar. Assim, rumamos umas duas ou três milhas para oeste e nosso almoço foi um piquenique no declive largo de uma das encostas, de onde se descortinava uma vista quase tão boa quanto o cume e não tendia a despertar atenção.

Então recebemos a notícia de que nossas tropas haviam avançado uma ou duas milhas além do rio Metauro. Ali a derrota de Asdrúbal selara o des­tino de Cartago, então sugeri que também atravessássemos o rio. Entramos em nossos carros e, em meia hora, estávamos na margem oposta, onde a estrada enveredava por olivais ondulantes, luminosamente recortados pelo sol. Guiados por um oficial de um dos batalhões em combate, avançamos pelos atalhos até que o barulho dos fuzis e metralhadoras mostrou que nos estávamos aproximando da linha de frente. Logo depois, mãos erguidas em sinal de advertência fizeram-nos parar. Parecia haver um campo minado e só era seguro prosseguir por onde outros veículos já houvessem passado sem incidentes. Alexander e seu ajudante de ordens desceram do carro para fazer o reconhecimento de um prédio cinzento de pedra, ocupado por nossos soldados, de onde se dizia haver uma boa vista de perto. Era patente que só estavam ocorrendo combates muito esparsos. Em poucos minutos, o ajudante de ordens voltou e levou-me ao general, que havia encontrado um ótimo lugar na construção de pedra — na verdade, um antigo château encimando um declive bastante acentuado. Dali, certamente se via tudo o que era possível ver. Os alemães estavam atirando com fuzis e metralhadoras por entre a vegetação espessa do outro lado do vale, a umas quinhentas jardas de distância. Nossa linha de frente ficava abaixo de nós. O fogo era irregular e intermitente. Mas isso foi o mais perto que cheguei do inimigo e a ocasião em que mais ouvi disparos na Segunda Guerra Mundial. Passada cerca de meia hora, voltamos para nossos automóveis e seguimos para o rio, tomando o cuidado de permanecer sobre as trilhas deixadas por nossas próprias rodas ou pelas de outros veículos. No rio, deparamos com as colunas de apoio da infantaria, marchando para reforçar nossa esquálida linha de combate. Às 17 horas estávamos de volta ao QG do general Leese, onde as notícias de toda a frente militar eram pontualmente marcadas nos mapas. Desde o alvorecer, o VIII Exército avançara ao todo umas sete mil jardas, num front de dez ou 12 milhas de largura, e as baixas não tinham sido nada pesadas. Era um começo animador.

Na manhã seguinte houve muito trabalho, chegando tudo por telegrama e por malote. O general Eisenhower parecia preocupado com a aproximação de algumas divisões alemãs retiradas da Itália. Alegrou-me que nossa ofen­siva, preparada em condições deprimentes, houvesse começado. Redigi um telegrama ao presidente para explicar a situação, tal como eu fora informado pelos generais em ação e por meu conhecimento próprio. Eu queria trans­mitir de maneira inequívoca nosso sentimento de frustração e, ao mesmo tempo, indicar minhas esperanças e ideias para o futuro. Se ao menos me fosse possível reavivar o interesse do presidente nesse teatro de operações, ainda poderíamos manter vivo nosso projeto de um avanço final para Viena. Depois de explicar o plano de Alexander, encerrei com estas palavras:

Nunca me esqueci de suas conversas comigo em Teerã sobre a Istria, e tenho certeza de que a chegada de um exército poderoso a Trieste e à Istria em quatro a cinco semanas teria um efeito muito superior aos valo­res puramente militares. O pessoal de Tito estará a nossa espera na Istria. Não imagino qual seja o estado de coisas na Hungria nessa ocasião, mas, de qualquer modo, estaremos em condições de tirar pleno proveito de qualquer nova situação favorável.

Só despachei essa mensagem depois de chegar a Nápoles, para onde voei no dia 28, e só recebi a resposta dias depois de chegar em casa. Mr. Roosevelt então retrucou:

Partilho de sua confiança em que as divisões aliadas que temos na Itália sejam suficientes para cumprir a missão que as aguarda e em que o co­mandante da batalha insista num combate sem trégua, com o objetivo de destroçar as forças inimigas. (...) Quanto ao emprego exato de nossas forças da Itália no futuro, trata-se de uma questão que [logo] poderemos discutir. (...) Dada a atual situação caótica dos alemães no sul da França, espero que se possa obter uma junção das tropas do norte e do sul muito antes do que foi originalmente previsto.

Veremos que essas duas esperanças se frustraram. O exército que desem­barcáramos na Riviera, a um preço tão doloroso para nossas operações na Itália, chegou tarde demais para ajudar na grande luta de Eisenhower ao norte, enquanto a ofensiva de Alexander, por uma margem mínima, deixou de obter o sucesso que merecia e de que tanto precisávamos. A Itália só ficaria inteiramente livre depois de mais oito meses; o avanço pela direita para Viena nos foi negado; e, a não ser na Grécia, desapareceu nosso poder militar de influir na libertação do Sudeste Europeu.

O resto dessa história conta-se em poucas palavras. O ataque do VIII Exército prosperou e correu bem. Surpreendeu os alemães e, em 1º de setembro, havia rompido a Linha Gótica numa frente de vinte milhas. No dia 18, a linha estava contornada na extremidade leste pelo VIII Exército e rompida no centro pelos americanos.

Ainda que a um custo de baixas lamentáveis, obteve-se um grande sucesso, e o futuro parecia promissor. Mas Kesselring recebeu novos reforços e suas divisões alemãs acabaram totalizando 28. Removendo duas divisões de setores tranquilos, ele deu início a ferozes contra-ataques que, acrescidos a nossas dificuldades de suprimento pelos passos das montanhas, detiveram o avanço dos aliados. A defesa era obstinada, o terreno muito difícil, e chovia a cântaros. O clímax ocorreu perto de Bolonha, entre 20 e 24 de outubro, quando o general Mark Clark por pouco não conseguiu cortar a retaguarda do inimigo que enfrentava o VIII Exército. Então, como disse Alexander, “ajudada por chuvas torrenciais e ventos de tempestade, bem como pela exaustão do V Exército, a linha alemã se manteve firme”. O tempo estava pavoroso. As chuvas pesadas fizeram subir o nível dos incontáveis rios e canais de irrigação e transformaram em charco as terras preparadas para a lavoura. Fora das estradas, o movimento era amiúde impossível. Foi com extrema dificuldade que a tropa penosamente avançou. Embora as esperanças de uma vitória decisiva se houvessem desfeito, ainda era a missão principal dos exércitos na Itália manter a pressão e impedir que o inimigo mandasse ajuda aos exércitos alemães acossados no Reno. Assim, esforçávamo-nos por abrir caminho sempre que havia intervalos de tempo razoavelmente bom. Mas, a partir de meados de novembro, qualquer grande ofensiva tornou-se impossível. Conseguiram-se pequenos avanços, conforme as oportunidades surgidas, mas só na primavera os exércitos foram recompensados com a vitória que tanto mereciam e que quase chegou no outono.

1 Os destaques gráficos são todos meus e posteriores.

2 As primeiras operações de maior vulto em que os exércitos de Dragoon tomaram parte, depois de sua junção com as forças de Eisenhower, ocorreram em meados de novembro.