I
Fecho os olhos e vejo-me deitado em um quarto sem janelas, recostado sobre os travesseiros. Respiro ofegante, puxo o ar, a respiração é curta — o ar não vem. Mais uma crise de asma, a terceira em um mês. Sinto, no entanto, o bafo quente a cada volta do ventilador, e ouço o seu ronco monótono.
Eu estava fazendo a lição de casa quando a crise começou. O caderno está agora ao pé da cama. E agora só penso em respirar: ar... ar que não vem!
Tive febre. Dormi e perdi-me no tempo. Acordei pensando já estar no dia seguinte, ou em outro lugar. Sonhei estar na Fazenda São João. Delírios da febre. Lembro-me da São João, de uns anos atrás, quando nos dias de chuva, como o de hoje, eu montava um cabo de vassoura e com a molecada ia tocar boiada no quintal. Não faz três anos isso. Ainda morava na São João, não tinha crises de asma e acreditava que cabos de vassoura eram cavalos. Apanho o caderno ao pé da cama. Na contracapa uns rabiscos, desenhos cúbicos, caricaturas dos professores, palavras aleatórias, “Janaína”. Imagino-me voltando para Vera-Cruz casado com Janaína, brincando em dias de chuva nas sebes da São João com Janaína. Penso em Janaína, e é então impossível dominar-me...
Um trovão reboou pelo quarto. Desvencilhei-me dos pensamentos lúgubres.
Desligo o ventilador e afio o ouvido. Há no prédio agora um falatório. A água subiu, invadiu os apartamentos do térreo, e os vizinhos que vão chegando do trabalho param à porta dos blocos. Moramos no térreo. Dona Lourdes, do terceiro andar, está aqui em casa — posso ouvir; dona Diná veio ajudar minha mãe. Parece que os outros vizinhos estão felizes, estão mais falantes do que o normal, decerto porque a água não invadiu os seus apartamentos — e propõem soluções para que a água não suba mais ao nosso apartamento. E houve mesmo uma, a Lorena, do segundo andar do bloco 2, que tenho certeza que ficou feliz ao ver a minha mãe ali se esfalfando com o rodo e o balde. Ela não gosta da minha mãe. Já discutiram. E nem foi culpa da minha mãe, e acho que nem da Lorena. Foi o meu pai, que um dia, bêbado, resolveu invocar com o marido da Lorena, por uma besteira, nem sei por quê. Eu era amigo das filhas da Lorena, e desde então elas estão proibidas de falar comigo. Tenho certeza que quando a Lorena passou, deu risada da minha mãe, que puxava água de dentro do apartamento.
Meu pai não está em casa. Quem levantou nossos móveis foram uns estudantes do apartamento em frente, quando a água começou a subir. Eu, se não estivesse com essa crise de asma, teria ajudado. Mas estava aqui, com febre, delirando, sonhando com a São João. Daqui a pouco meu pai fecha o mercado e chega.
Parou de chover, a casa agora está seca.
Moramos num condomínio ordinário, baixo, de três andares, revestido de tijolinhos, a três quadras da praia, e muitas unidades ficam desocupadas fora da temporada, o que dá ao prédio um ar de coisa abandonada na maior parte ano. Fica perto do nosso mercado, e não muito longe da minha escola. Na rua de trás passa o esgoto e nos dias quentes, que são quase todos, há fedor e moscas. As baratas estão por todos os lugares. Eu não ligo para nada disso. As únicas coisas que me importam são a Janaína e a minha mãe. E a lição de amanhã.
Apanho o caderno ao pé da cama e tenciono recomeçar a lição. Mas estou doente, penso, e não preciso fazer lição, talvez nem mesmo precise ir à aula amanhã. Apanho um gibi. “Mas se posso ler gibi, posso fazer a lição”, diz-me a voz da consciência. Largo o gibi e torno a deitar, apoiando o corpo na cabeceira de uma cama tubular branca que range. Tremo. Deve ser a febre, e penso em chamar minha mãe, mas não quero incomodá-la. Ouço lá de fora que o trabalho está terminado. Dona Lourdes despediu-se e subiu. Sinto frio e meto-me debaixo das cobertas. Na São João, havia uma infinidade de lugares para abrigar-se da chuva quando ela chegava, o galpão, a casinha de fogo, a balança, o chiqueiro, até para dentro do taquaral dava para correr, que no meio das taquaras não caía um pingo, mas no taquaral meu pai me proibia de entrar, porque dizia que ali era ninho de cobra...
Minha mãe bateu à porta e veio sentar-se ao meu lado.
— É de fundo emocional filho, se acalme... E o mofo deste apartamento... O ar não faz a volta , né? Eu sei como é, mas se acalme, se acalme — e dava-me pancadinhas na mão. Ajeitou os travesseiros, passou a manga da blusa em minha testa porejada, que depois beijou.
Ela estava nervosa, eu via em seus olhos que parecia segurar o choro.
— Tô melhorando mãe.
— Vamos dar uma volta? Vamos até a beira-mar? Vai te fazer bem respirar ar puro. A chuva parou e parece que não volta.
A chuva havia parado. A casa já estava limpa. Saímos.
O vento desfolhara as árvores, os bueiros estavam entupidos, e a cada carro que passava nas ruas alagadas formavam-se marolas, para alegria dos moleques em algazarra. Eu também achava graça de tudo aquilo, e até queria estar ali com eles. Mas ia de braço dado com minha mãe: já respirava um pouco melhor.
Na praia, ficamos abraçados e imóveis, minha mãe massageando-me as costas, ambos a contemplar o mar, as vagas, os navios lá no horizonte... de repente, um acesso de tosse...
— Se acalme, se acalme, filho...
...E vomitei. Num relance, com os olhos lacrimejando e as pernas bambas, em esgares e contrações, vi as ondas que vinham quebrar aos nossos pés, e um casal que brincava com seu cachorro atirando-lhe um pedaço de pau; vi os navios lá muito longe; e vi, bem perto de mim, os olhos de minha mãe angustiados, como se procurassem na linha infinita o Deus que não responde.
Súbito, anoitecera. Estávamos ainda na praia, e a cidade iluminara-se.
— Vamos na farmácia da tia Sue, você precisa fazer uma inalação.
A farmácia é o médico de quem não tem dinheiro para consultas médicas. Fomos, no mesmo passo lento. Agora, para me proteger do sereno, eu ia debaixo da asa de minha mãe, aconchegado em seu casacão cinza de lã, casaco velho, impregnado do cheiro de mãe, como só os casacos velhos de mãe têm.
Numa saleta dos fundos, muito iluminada e silenciosa, para onde me conduziu a tia Sue, um senhor de rosto encovado, de dedos longos e nodosos abre uma caixinha de remédios, pinga umas gotas em um frasco, encaixa-o numa máscara e ajusta uma fivela; guarda o remédio; abre outra caixa, pinga, uma, duas, três gotas com cuidado; tampa, com cuidado; olha para mim e sorri; volta a guardar o remédio, fecha a caixinha, abre o armário, e guarda tudo, com cuidado; afivela a máscara em mim, e liga o nebulizador, que bafeja, roncando.
Eu, comigo, olhando aquele ritual de abre e fecha e pinga e guarda, fiquei a pensar: “Tudo tão diferente lá de casa, tudo tão limpo e ordenado, tudo feito com tanta calma e precisão... Para ser farmacêutico é preciso ser ordeiro e organizado, ter dedos finos e nodosos... Nem eu, nem minha mãe e nem meu pai jamais poderíamos ser farmacêuticos...”
Terminada a inalação, me pesaram. Emagreci. Maldita asma.
— Anote pra mim, Sue.
Tia Sue balançou a cabeça, benevolente, e aquiesceu com um movimento de olhos, com uma piscadela demorada, como quem diz: “Paula, querida, tens tantos problemas, não te preocupes com esta inalação para o teu Luciano.”
O céu estava carregado, relâmpagos riscavam a noite escura. A claridade débil e amarelada dos postes de luz era inútil, e de tanto pisar em poças d’água nos molhamos até os joelhos. Ao pisar nas primeiras lajotas soltas, amaldiçoamos o prefeito, a administração pública, a Secretaria de Obras, “um raio que partisse a cabeça do prefeito, maldito, que não dava conta sequer de assentar as pedras da calçada!” Encharcados, dávamos risada. Eu me sentia melhor, respirava, e gostava de ver o alívio nos olhos da minha mãe. Bendita tia Sue, que nos fez a inalação fiada! Bendita farmacêutica, médica dos que não têm médico! E o que são, afinal, as canelas molhadas se o filho agora respira?
Quando abrimos o portão do condomínio, nos olhamos, e minha mãe suspirou. Já sabíamos o que nos esperava. Já da porta do bloco ouvimos a televisão, sempre naquele volume insuportavelmente alto. No sofá, meu pai bebia.
À simples pergunta, “Não vai jantar?”, meu pai, com um olhar baço, amassou furiosamente o cigarro contra o cinzeiro, virou um gole e disparou:
— Vá à merda, gringa filha da puta!
A cabeça meneia, os olhos estão em chamas. Há em sua barba uns cuspes, que saltaram junto com o impropério violento. Ele acende mais um cigarro, que traga com força, e expira a fumaça pelas narinas, que se dilatam.
Minha mãe olha-o demoradamente. Cerrando os olhos, suspira em solavancos, fitando-o não apenas com os olhos, sentindo-o com todo o seu ser, como se buscasse dentro de si força para suportar mais uma vez calada a ignomínia — e dando as costas sai. Vai chorar em seu quarto, vai ler um livro, vai rezar, mascar chicletes. São essas as suas pequenas consolações à noite. Às vezes surpreendo-a na janela do quarto com um livro aberto, fumando, mascando chicletes e rezando, tudo ao mesmo tempo. Vai agora, enfim, suportar mais uma vez. Eu vou para o meu quarto. Mas nem bem me retiro e lá vem o lôbrego chamado da sala:
— Lucianinho! Lucianinho!...
— O que, pai?
Obedeço. Sei que devo atender. É meu pai. Minha mãe sempre me diz: “Com todos os defeitos que tem, foi quem te pôs no mundo. Não fosse ele você não existiria. Respeite-o.” Vou. É-me indiferente. Sempre foi assim. Como o mau cheiro e os ratos do ribeirão de trás em dias de calor.
— Vem aqui com teu pai. Senta aqui.
— É que...
Trôpego, balbuciando, como se não tivesse ofendido absurdamente a minha mãe, como se nada fosse, quer que me sente!, naquela fedentina de cigarro, naquela barulheira infernal de televisão... até o amor filial, até a compaixão encontra às vezes o seu limite.
— Pai, chega por hoje, o senhor já bebeu demais...
Ah!, para quê fui dizer isso? A ira do demônio voltou-se agora contra mim:
— Piá de merda! Suma daqui! Você e aquela gringa, sumam daqui... Sumam...
E subitamente, seguiu-se um choro, que não durou muito, é verdade, apenas uns soluços. Cessado o choro, levantou-se, deu dois passos incertos e apoiou-se na parede; mirou a porta da cozinha e foi. Ouvi-o, então, abrir a geladeira, encher o copo (eu já conhecia todos os sons característicos), quebrar a forminha de gelo e mexer o açúcar no copo: mais uma caipirinha. Com o mesmo cambalear com que foi, voltou; apoiou-se na janela e desabou no sofá, acendeu mais um cigarro e continuou a beber. Aumentou mais um pouco o volume da televisão, para espezinhar minha mãe, afrontar a vizinhança.
Eu, do meu quarto, só torcia, como em todas as noites, para que ele fosse logo dormir e não agredisse a minha mãe, para que não houvesse escândalo no condomínio, briga com vizinhos, luzes acendendo na rua, o síndico de pijama, a polícia na porta.. .