II
Janaína morava na quadra de trás, uma casa de esquina, casa de alvenaria, com lajotas na garagem do carro, grades do pátio pintadas de branco e árvores no quintal, de cujos galhos pendiam bebedouros de beija-flor. Era a minha melhor amiga e a menina mais bonita do colégio. Tinha uns olhos meigos, sonolentos, a testa pequena e retilínea, lábios vincados e de contornos definidos. Parada, Janaína parecia um anjo; andando, uma dessas modelos de passarela, não obstante, e até pela idade, não fosse alta. Não era mais menina, mas ainda não era mulher, e eu quedava-me morto, só de tocá-la, só de vê-la.
Estudávamos na mesma sala, a sétima série de uma escola pública de bairro, o Colégio Tiradentes. Agora, no intervalo, eu não jogava mais futebol, eu não formava mais a rodinha da baderna, eu era todo Janaína, o intervalo era todo dela, eu respirava, eu lanchava Janaína. Eu, que nunca gostara de ir à aula, agora não via a hora de ir para a escola. Eu, que nunca pedia nada para minha mãe — a coitada estava sempre sem dinheiro, já tinha tanto problema — pedi e ganhei um boné, só para impressionar a Janaína. Santo Deus, como era bom beijar a Janaína!
Por causa da crise de asma, faltei aula, e no dia seguinte fui à casa da Janaína recuperar a matéria. Dona Lucia sentiu-me abatido. Sinto que ela gosta de mim, acha-me uma boa companhia para Janaína, porque sou educado, tiro boas notas, faço sempre as lições, e até vou com eles às vezes à Missa aos domingos. Eu faço questão de corresponder, e como Janaína é meio avoadinha, não perco a oportunidade de repreendê-la em frente da mãe, de modo que dona Lucia e eu estamos sempre a nos dar piscadelas cúmplices, quando Janaína franze a testa se depois de um lanche ela deixa de tirar o prato da mesa e dizer “Obrigado, Deus que ajude”. Fui eu quem ensinei a Janaína a tirar o prato da mesa e dizer “Obrigado, Deus que ajude”.
O pai de Janaína é gerente do Banco do Brasil e chega do trabalho todos os dias trazendo café da tarde, no mesmo horário. Depois veste uma bermuda e vai regar o gramado, podar as roseiras, ou pintar as grades do quintal. As grades já foram cinza, verde, vinho e agora estão brancas. Acredito que regar o gramado, podar as roseiras e pintar as grandes seja uma espécie de terapia para o seu Sérgio. Há também uma serra na qual ele corta madeira. Não sei porque ele corta madeira. Seu Sérgio tem um cabelo encaracolado, que mantém sempre rente, formando ondulações; tem as maçãs poucos salientes; o bigode, grisalho, é curto e bem aparado; é magro, de pernas branquelas; nunca o vi ter arrebatamentos, em geral está calado. De vez em quando ele e dona Lucia tomam chimarrão na área em frente à sala de estar, ouvindo música; ela serve petiscos, conversam, ou lêem cada qual alguma coisa.       
Quando anoitece, eles chamam Janaína para dentro. É preciso que chamem umas quatro ou cinco vezes, para que ela, então, depois dizer “já vou, já vou”, obedeça.
— Janaína, agora vem, filha, chega de “já vou”, a Paula já deve estar preocupada.
Dona Lucia foi nos encontrar na calçada em frente. Riscávamos no chão os nossos nomes com uns cacos de tijolo — “Luciano”, “Janaína”, “Luciano e Janaína”...
— Não está, não, dona Lucia, ela sabe que estou aqui.
— Mas já é hora Luciano. Dá tchau pro Luciano e entra, filha.
Eu volto para casa com a matéria copiada. Fica a apenas uma quadra. Fui-me. No caminho até em casa fiquei a imaginar o que Janaína estaria a fazer. Estaria em seu quarto a escrever bilhetes para mim, ou dependurada no telefone com a Mariana. Depois tomaria banho e jantaria com os pais, pois que sempre jantam juntos, sempre na hora do jornal. Depois os três assistiriam a novela. Janaína vestiria um pijama rosa-claro, passaria algum creme no corpo, teria o cabelo ainda molhado, reclamaria por ter de tirar os pratos da mesa...
Passando pelo esgoto persigo uns ratos, atiro-lhes umas pedras. Erro. Está anoitecendo. Não tenho vontade de voltar para casa. Estaco em frente ao portão do condomínio e fico a pensar em minha mãe, que àquela hora já deve ter fechado o mercado e está voltando. Sigo adiante e vou até à beira-mar. O brilho fervilhante de um cardume de sardinhas próximo à costa atrai as gaivotas, e um pescador com a água pela cintura joga sua tarrafa. Sento-me para assistir uma partida de futebol, vejo os casais que passam, casais de todas as idades. E tenho a impressão de que entre todos os casais da cidade apenas os meus pais nunca foram fazer caminhada na praia de mãos dadas ao pôr-do-sol.