IV
No terceiro dia, tentei manhosamente prorrogar a minha convalescença.
— Ainda não me sinto muito bem...
Astuta como são as mães, a minha logo atalhou:
— Mas hoje o senhorito vai pra aula, já perdeu dois dias de lição, daqui a pouco não consegue recuperar mais.
Fiquei vexado. Imagina se ela soubesse das aulas que cabulava! Sem insistência, fui aprontar-me.
— E anda logo que o almoço tá saindo.
A cozinha cheirava à fritura. Do rádio sobre a geladeira, uma música popular qualquer; das panelas, o chiado do óleo fervente; lá de fora, latidos de cachorro pela porta aberta. Fui vestir o uniforme.
Chegando ao colégio, o Marcelo veio ao meu encontro.
— Você não veio na quarta e na quinta, não é, Luciano?
— Não. Tava doente. Por quê?
— Cara, a casa caiu, e caiu feio!
Gelei. Estaquei no meio da rua e segurei o Marcelo pelo braço. Eu já intuía. Deu-me um frio na barriga
— Como assim? O que aconteceu?
— Então. Terça-feira. O Mateus chegou em casa, todo arrebentado, sem os dentes...
Fiz um movimento de retorno, instintivo, como de fuga, mas Marcelo me deteve, e continuamos.
— ...A mãe dele ficou louca, quis saber, pensou que ele tivesse apanhado, quis saber quem tinha batido nele, de quem ele tinha tomado aquela surra tremenda. Ele acabou contando tudo. A mãe veio na escola e falou pra diretora, que chamou um por um e deu dois dias de suspensão, menos você. Por enquanto.
Levei as mãos ao rosto.
Nessa hora, vi os mesmos alunos que na terça eu chamara de panacas, entrando tranqüilos no colégio, leves, sorridentes, sem culpa — enquanto eu, enrascado, trêmulo, pensava na decepção que causaria em casa, em como explicaria à minha mãe aquela suspensão — meu Deus, mais dois dias de lição perdida (subitamente a lição perdida passou a ter importância), e tudo isso somado aos dias de aula que cabulei! Vou reprovar por falta! Tive vontade de chorar.
No pátio, Janaína me ignorou, e eu tampouco tive forças para falar com ela: com certeza já sabia. Na quadra, Ratão, Lázaro e os outros jogavam futebol, despreocupadamente. Já haviam cumprido a suspensão, estavam tranqüilos como quem não tem mãe. Eu perambulava perdido, nem ia à quadra, nem entrava na sala, nem saía de novo para rua, tampouco, muito menos, apresentava-me voluntariamente à sala da diretora. Parei em frente à cantina, atrás de uma pilastra, envergonhado, e deixei cair a mochila aos meus pés. Tocou o segundo sinal, todos entraram, eu permaneci. A inspetora veio encontrar-me onde estava. Procurei disfarçar.
— Ah, oi. Boa tarde, dona Rita.
— Luciano, vai pra sala, menino! Não, espere, tem uma ordem aqui pra você faz dias — E puxou da agenda. “Encaminhar para a diretoria”.
O coração deu um solavanco como um carro que passasse desgovernado uma lombada. Era a primeira vez que eu recebia uma ordem de ser levado para a diretoria. Lá fui eu.
Com duas batidas na porta a inspetora me introduziu.
— O Luciano.
Dona Laura, a diretora, usava uns óculos de lente amarelada e aros dourados que lhe tomavam quase todo o rosto. Vestia umas roupas que parecia de homem, tinha o cabelo curto, que parecia de homem, falava grosso, como homem, botava medo em todo mundo, e uma vez tinha sido candidata a vereadora, sem sucesso. Sua sala cheirava a álcool (acho que por causa do mimeógrafo), era entulhada de papéis, na parede tinha uns mapas, atrás da sua mesa havia umas bandeiras, armários, fichários, muitos fichários, e na mesa ao lado sua secretária trabalhava sem levantar os olhos. O colégio àquela hora estava em silêncio. O único barulho a quebrar o sossego da sala era o de uma goteira enervante a pingar num balde. Poc poc poc...
Dona Laura percebeu que eu olhei para o balde e como se devesse explicação por aquela falha na sua escola, comentou com a secretária.
— Já mandou consertar essa goteira?
— Já sim senhora, Já pedi ao seu Alarico, foi a calha que entupiu...
Dona Laura remexia uns papéis e eu fiquei com aquele nome na cabeça, Alarico... Alarico... A-la-ri-co. Que tipo de mãe dá ao filho este nome? “Querido, escolhi um belo nome ao nosso bebê! Alarico! Nosso filho se chamará Alarico!” Alar...
— Não quero saber o que é, quero que conserte! Seu Alarico que dê um jeito nisso ainda hoje.
Dona Laura volta-se para mim.
— E você, seu Luciano?
Por incrível que pareça, tive vontade de rir da secretária. Mas respondi apenas com um “Sim senhora.”
— Por que só hoje?
— Tava doente.
Eu ia respondendo só o básico, que era pra não me enrolar.
— E trouxe o atestado? Tinha o quê?
— Sim, senhora. Crise de asma.
E passei-lhe o papelucho.
— Pois bem, o que está acontecendo com você, garoto? Quando entrou aqui era um bom menino, obediente, estudioso, não faltava aula, tinha boas notas. De uns tempos pra cá, vejo que mudou. Não é porque a escola é pública que não nos interessamos por nossos alunos, que não queremos o seu bem, não senhor! Conheço cada um, cada família, Luciano, olhe pra mim, estou falando com você! — estrilou dona Laura, ajeitando os óculos; eu havia, por um segundo, olhado para a secretária, que nitidamente inclinava-se para ouvir nossa conversa — eu conheço sua mãe, é uma boa mulher, uma mulher muito sofrida, saiba disso, e não merece que você dê desgosto a ela. Não merece que o filho dela ande a matar aulas, ande a se esconder em plena tarde em casas abandonadas aí pelos becos atrás do colégio, em aventuras como a desta semana, espiar mulher pelada na praia das Laranjeiras — e repetiu “espiar mulher pelada!” —, isso é coisa que se faça, rapaz?! Andando com tipos como o Sílvio e o Lázaro... Você é um bom menino, falo de coração. Gosto muito da sua mãe e de você.
Eu a tudo aquiescia, olhos fixos em dona Laura...
.... Sei que a Paula se preocupa com a tua educação, conheço a história dela, sei do esforço que ela faz pra te criar. Ponto final nessa história de matar aulas, hein? Tome jeito! — Nessa hora até a secretária levantou os olhos, porque a dona Laura alterou o tom de voz e realmente estava brava. — Ai de você, ai de você se eu te pegar mais uma vez matando aula. Eu ia te dar dois dias de suspensão e ia chamar tua mãe...
— Não dona Laura, por favor, eu prometo...
— Mas não vou, porque você já perdeu dois dias de lição. Na verdade, três, dois do atestado e mais a terça-feira, que cabularam para ir espiar mulher pelada... que vergonha, hein, seu Luciano, que vergonha!
Parece que ela falou “espiar mulher pelada”, assim, com todas as letras, apenas para me envergonhar mais, porque a secretária mais uma vez parou de fazer o que fazia e olhou-me, rindo, e eu morri de vergonha.
— Como punição — finalizou dona Laura — você vai passar a semana que vem copiando a lição que perdeu aqui na minha sala. Empreste o caderno de alguém. Nada de recreio. Quero você aqui na minha sala, copiando lição. Agora pode ir. E tá avisado. Ai de você se te pego matando aula. Estamos conversados?
— Sim, senhora.
*
*      *
Durante duas semanas chovera. Chuvinha fina e constante, daquelas que o vento carrega, que cobre de tristeza as pessoas, a impregnar de umidade as ruas e as casas.
Estávamos um dia, pela manhã, no mercado, quando minha mãe me chamou para uma conversa. Eu agora vinha todos os dias com ela ao mercado, justamente para evitar ao máximo ficar exposto à umidade. O cheiro de mofo no apartamento era tanto que eu já não podia mais ficar lá, de modo que de manhã eu vinha com ela, à tarde ia para escola e só voltava à noite, e mesmo assim era só colocar os pés porta adentro que começava a falta de ar.  Saindo para a calçada em frente, sentamos sob a marquise.
— Filho, eu não sei, a asma tem um fundo emocional, dizem... O teu pai... Agora que você é adolescente você começa e entender as coisas, a perceber melhor nossa situação... Enfim... Aquele apartamento é muito úmido, aquele mofo, tá insuportável, veja como você passa mal só de entrar lá, e melhora um pouco quanto está fora...
Levantando-se, minha mãe acendeu um cigarro, deu uns dois ou três passos, e postou-se na direção do vento.
— É verdade, fora de casa respiro melhor.
— O mercado não vai bem. O movimento piorou muito de uns tempos pra cá. Depois do Plano Real, com o dólar a um por um, os turistas argentinos sumiram, as vendas despencaram — eu não estava entendendo nada. — Hoje de manhã não vendemos nada no mercado, zero, estamos devendo pros fornecedores, a conta de luz está um absurdo, não sei como vamos fazer com o aluguel da sala, mal e mal conseguimos pagar o salário da dona Diná, e sem ela eu não dou conta.
— Sim.
— Tuas crises têm se agravado, a conta da farmácia... cada vez maior... você precisa fazer um tratamento, você já até desmaiou, daqui a pouco... Deus me livre! — e pisou sobre a bituca que lançara fora, girando com força o pé, como para espantar o mau pensamento — Ontem liguei pra tua avó.
— Vó Lina?
Voltando a sentar-se ao meu lado, pousou a mão em meu joelho, e riu, com ternura.
— Sim. O que você acha de passar uns tempos na fazenda? Teu padrinho, o dr. Zé Rimoli é médico, e tem muito carinho por você. Foi ele que fez teu parto, sabia? Ele gosta muito da dona Lina e do seu Pedro, tem muita pena dos velhos — ela referia-se ao crime do meu tio Carlos e do quanto isso abateu os meus avós — vai tratar você, já falei com a dona Lina.
Eu custei acreditar. Nem em meus devaneios febris me passou pela cabeça a possibilidade de voltar tão cedo para a Fazenda São João. Eu estava gostando de morar na praia, não nego, mas nada se comparava ao amor que sentia por aquela fazenda. Não digo amor , que é palavra forte demais na boca de um rapazote de treze anos; eu era mesmo fascinado pela fazenda onde nascera, e Deus sabe o quanto sentia ter sido arrancado de lá três anos atrás para vir com meus pais tentar vida nova em outra cidade.
— Mas e a escola?
— Ah, fazer o quê, depois recupera.
“Venha”, dizia-me a Fazenda São João, “você não vai precisar passar a semana copiando a lição na sala da dona Laura”.
“Fique”, dizia Janaína, “eu te perdôo aquela sem-vergonhice da praia das Laranjeiras”.
“Venha”, dizia a fazenda, “venha nadar na lagoa, caçar passarinho, andar a cavalo, pescar lambari, caçar tatu”.
“Fique, vamos namorar”.
“Venha, se é para namorar, aqui tem as negrinhas”.
“Venha”, “fique”, “venha...” “fique...”
— Quanto tempo, mãe?
— Uns meses, até você melhorar, ou até mudarmos de apartamento. Até eu dar um jeito na nossa situação. Confie em mim. Já estou pensando no que fazer. Do jeito que estamos não dá mais pra continuar. Você sabe que eu demoro a decidir, mas que quando eu decido, eu faço. Chega. Está decidido.
Foi quando lembrei do meu pai. Fiquei com medo de deixar minha mãe sozinha com ele.
— Mas e o pai?
— O que tem? Não se preocupe. Eu sei lidar com ele. Ele tem se comportado. Viu que tá até bebendo menos?
Falava para me acalmar. Eu sabia que estivera bebendo menos apenas por causa da chuvarada das últimas semanas, que o impedira de sair à noite para comprar mais. Ele geralmente começava em casa, e lá pelas dez da noite arrumava uma desculpa — comprar cigarro, comprar “só mais uma cerveja” — e, contra todos os apelos da minha mãe, calçava os sapatos e saía cambaleando pela rua, para voltar sabe-se lá que horas. Chegava furioso, olhos injetados, endemoniado, com mais uma garrafa, mais uma carteira de cigarros, e continuava a beber madrugada adentro.
— ...Está bebendo menos, tem até ido dormir mais cedo, percebeu? Não se preocupe. Com o teu pai eu sei lidar. Está decidido. Você vai passar uns dias na fazenda.
— E quando vou?
— Tua avó tá esperando. Disse que já ia arrumar o quarto dos netos. Tua avó vai cuidar bem de você. Dona Lina não soube criar os filhos — criou três nulidades que pelo amor de Deus — mas pra você passar uma temporada lá vai ser bom. Ela pode ter todos os defeitos do mundo, mas ama os filhos e os netos. O problema foi excesso de amor sem educação. Nunca deu educação para aqueles filhos, nunca deu responsabilidade, sempre passou a mão na cabeça, acobertou todos os erros. Tá aí o resultado.
Dona Diná veio para fora:
— Dona Paula, preciso de troco.
— Tem na gaveta de baixo, do lado direito.
— Obrigado, minha flor — e voltou sorrindo.
— Tá feliz de voltar pra fazenda?
— Tô, claro, só um pouco preocupado de te deixar sozinha.
— Ah, não seja bobo, já disse que com teu pai eu me entendo. Olha, antes de você ir, precisamos ter uma conversa séria. Preciso ter confiança, você precisa me prometer que não vai se meter com aquelas negrinhas, com aqueles moleques do galpão, pelo amor de Deus, filho. Eu sei que você gosta deles, gosta de brincar com eles, mas eles não receberam educação, são depravados em último grau, você sabe do que eu tô falando...
— Sei, pode deixar, prometo, Deus me livre.
E desviei o olhar, vexado só de pensar naquelas coisas na frente da minha mãe.
— A mesma coisa teus primos. Não sei se tem algum deles lá, mas se tiver, mantenha distância, filho, não se misture. Coitados, eles não tiveram culpa, com aquelas mães, e aqueles pais, não podiam ter dado boa coisa mesmo. Se estiverem por lá, não vá atrás das idéias deles. Eu vou te ligar sempre e vou perguntar e vou querer que você me fale a verdade, hein! E obedeça teus avós.
— Tá bom, mãe.
Eu ouvia as admoestações e concordava maquinalmente, mas pensava em Janaína, na fazenda e no meu pai, tudo ao mesmo tempo.
Entrando na mercearia, tive vontade de dar um beijo em dona Diná, tamanha era minha felicidade. Estava exultante. Mas apreensivo.
— Tá feliz, meu príncipe?
E Dona Diná amassou-me contra seu peito fornido.
— Tô, dona Diná! Vou passar uns dias na fazenda, uns meses, não sei.
— Tua mãe me contou. Que bacana, hein! Pode ir tranqüilo que eu cuido da minha flor.
Dona Diná parecia adivinhar qual era a minha preocupação. O problema é que ela não estaria lá em casa à noite, e era à noite que meu pai ficava bêbado e endemoniado. E ele tinha um revólver. Quando nos mudamos minha mãe fez de tudo para que ele vendesse, mas não teve jeito. Era agarrado àquela arma. Saímos novamente para a calçada e retomamos a conversa. Era perto do meio-dia, e as pessoas desciam para o almoço. Na avenida em frente, o trânsito dos automóveis era lento. Homens de terno e gravata, em grupos de três ou quatro, saíam de uma agência bancária; mulheres com suas bolsas a passo apressado riam, falando alto; um ônibus engatou marcha, deixando para trás rolos de fumaça negra. Tudo isso era novo para mim, que até uns anos antes nunca vira um homem de terno, semáforo, engarrafamento. Ocorreu-me então que estando eu longe, nenhuma daquelas pessoas poderia proteger minha mãe, à noite. Cada um ali tinha a sua vida, o seu mundo; estavam todos ocupados em resolver os seus problemas, e se numa madrugada qualquer meu pai matasse minha mãe, no dia seguinte estariam todos ali, do mesmo jeito. A única diferença é que aquele mercado, ali naquela esquina, por um motivo que ninguém saberia o qual, não abriria mais.
— Mãe, porque você não leva a dona Diná pra dormir lá em casa, agora que meu quarto vai ficar vazio?
— Deixe de ser bobo, não se preocupe. Imagine, ela tem a família dela. Já disse, com teu pai eu me viro. Quantos anos faz que amanso a fera, já aprendi, já passei por fases piores. Você não sabe como era quando ele tinha dinheiro, porque você era pequeno. Era muito pior! Agora até que tá mais tranqüilo. Ah, nem te conto. Naquela época, sim, eu passei medo. Chegava do clube transtornado... quantas madrugadas, lá nos fundos da fazenda, você dormindo e eu sozinha esperando... Já te contei: eu esperava toda noite na janela rezando pra que chegasse bem, porque precisava do carro pra te levar pra escola no dia seguinte. Eu sabia que ele estava vindo quando apontava uma luzinha lá no morro da antena. Eu vinha acompanhando aquela luzinha com o coração na boca, com o estômago em revoada. Quanto Pai-nosso rezei naquela janela... E depois que entrava em casa? Alucinado, sabe-se lá de quê, puxava o revólver, apontava pra mim, enfiava na própria boca... ficava armando e desarmando o gatilho... eu tinha que acalmar... não gosto nem de lembrar. Naquela época sim, passei perigo...
— E como você aguentou?
— Ah filho... eu tinha você pequeno, ele me ameaçava... e, bem, isso não é assunto pra agora, quem sabe um dia te explico melhor. Hoje ele não faz mais nada. Conheço bem. Bebe e vai dormir. No máximo rosna uns palavrões. Deixe de ser bobo, não tenha medo. Não seja por isso, vá, aproveite. O dr. Zé Rimoli vai tratar de você. Tua vó Lina tá te esperando.
— Então não vou mais pra aula?
— Não, né? Seu ladino.
— Bom, se vou perder o ano mesmo, que diferença fará ir mais hoje. Posso usar o telefone?
— Bem rapidinho, hein.
Queria ligar para Janaína. Desde o episódio da praia das Laranjeiras não nos faláramos mais. Por duas ou três vezes eu tentei aproximação e ela se esquivou. Estava me dando gelo. Mas, agora, a notícia da minha viagem haveria de amolecer seu coração.
— Mãe, preciso saber bem certo quando vou.
— Olha, só preciso comprar a passagem. Acho que pode ser até para amanhã, ou depois de amanhã. Você que sabe.
— Que seja. Amanhã.
— Tá bom. Amanhã. Hoje compramos a passagem e ligo pra tua avó avisando que você está indo. E não se preocupe com teu pai. Confie em mim.