IX
Fui para o café. Enquanto isso, Carlinhos e Major limpavam o galpão, raspando o chão com enxadas e jogando o esterco para fora com as pás. Seu Chiquinho enchia os galões e os litros de leite, com um funil. Depois, ajudado pelos dois meninos, ele carregou os galões na Rural e os engradados na charrete do seu Higino.
Os peões faziam suas refeições numa área ao lado da cozinha, mas a comida servida era a mesma. Pão caseiro, broas, manteigas, geléias, cucas. Tudo ficava na despensa, e tudo no cadeado. Minha vó andava com as chaves no avental, e a única, além dela, que podia pegá-las era a Rosalina. E moscas, chusmas, nuvens negras de moscas. Na mesa tudo tinha de ficar coberto, e sempre uma menina abanando um pano por perto enquanto fazíamos as refeições.
Se no galpão trabalhavam homens, na casa havia a lida da cozinha, como minha vó chamava, o trabalho das mulheres, e começava logo após o café. O fogão a lenha ficava aceso o dia inteiro e ai de quem deixasse o fogo morrer: era nele que eram preparadas todas as refeições e por meio dele que se tinha água quente para os banheiros, pela cisterna. O chão da cozinha era lustrado três vezes ao dia, uma depois do café, uma depois do almoço e uma no fim da tarde: com uns pedaços de pelego de lã de carneiro em cada pé, vermelhos já de tanta cera, as meninas passavam para lá e para cá, esfregando, em compasso, como numa dança sem música e sem beleza, como cativos numa galé aquelas meninas estarão lá, sempre à mesma hora, sempre no mesmo lugar, todos os dias, quem sabe para o resto das suas vidas, três vezes ao dia. Os demais cômodos da casa não precisavam ser lustrados, porque só a cozinha era movimentada.
O desrespeito pelas negrinhas aprende-se cedo na fazenda, nas menores coisas, como ao entrar calçando as botas enlameadas logo após a cozinha ter sido lustrada. Um filho de dona Lina, um neto, jamais descalça as botas para entrar em casa.
— Tá pronta Lina? — perguntou meu avô, com sua pasta de couro debaixo do braço — Temos horário no dr. Zé Rimoli.
— Você se acalme, se acalme, Pedro. Vá indo, vá indo que eu já vou.
Meu avô obedeceu e foi na frente, mudo. Minha avó dava as últimas instruções para a casa. Para a Rosalina, sobre o almoço; para Janete, que depois de lustrar a cozinha e arrumar os quartos, cuidasse da Mirna, que estava doente.
Lá do fundo a dona Trindade balbuciou, rabugenta:
— Dona Lina, a senhora não vá esquecer o meu fumo.
— Pode deixar, dona Trindade, não vou esquecer, respondeu minha vó, sem olhá-la, voltando-se já para o Tobias.
— E você, Tobias, ajude as meninas, não quero saber de você pra cima e pra baixo sem fazer nada.
— Mas eu não fico, madrinha, eu sempre ajudo, é mentira delas que fico devarde.
O telefone tocou. Eu já estava lá fora quando fui chamado pela Rosalina.
— Apure Luciano, que a dona Paula disse que tá com pressa, que a ligação é cara!
Fui entrar correndo, Rosalina ainda tentou prevenir:
— Tire a bota meu fio, que o chão da cozinha já foi limpo!
Entrei de botas. Minha mãe queria saber como tinha sido a viagem. Eu queria saber como ela estava, sozinha com meu pai.
— Já disse que não é pra se preocupar, vai ficar tudo bem. Aproveite, obedeça teus avós. Não vou te ligar muito se não a conta do telefone da mercearia vem uma fortuna. E no telefone público as fichas voam. Quando eu ligar à noite você já sabe que estou no orelhão e tenho que falar rapidinho.
— Tá. Qualquer coisa, qualquer problema à noite, peça ajuda ao síndico, à dona Lourdes.
— Luciano, pare de se preocupar. Confie em mim, eu sei o que faço. Deixe de ser bobo. Teu avô vai te levar ao médico hoje.
— Sim, estamos saindo.
— Então vá. Tome os remédios direitinho. E se cuide, não vá entrar em rio e lagoa que não conhece. Agora passe o telefone pra tua vó, rapidinho. O que estou fazendo é pro nosso bem. Você ainda vai me agradecer. Eu sei o que faço. Bom. Passe o telefone para a dona Lina, rápido.
Lá fora a Rural já estava ligada esquentando o motor e dentro dela meu avô aguardava, imóvel. Quando viemos para fora minha vó gritou pelo Major, um mestiço gorducho, de sangue índio, adolescente ainda, mas encorpado, grandalhão. Tinha os dentes amarelados e grossos, a pele oleosa, o rosto oval. Era inofensivo, bom companheiro, ria bastante, mas estava sempre com sono e trocava as brincadeiras, as caçadas e pescarias para ficar no quarto fumando e dormindo. Andava devagar, não sabia correr, quando necessário dava uns trotes, não tinha agilidade, era incapaz de realizar movimentos bruscos. Formava um par engraçado com o Carlinhos, que era miudinho, polaco, macilento, e ligeiro como um rato. O negrão apareceu, daquele seu jeito. Vestia uma regata, uma bermuda e uma bota de borracha. Carlinhos veio atrás.
— Sim, senhora, madrinha.
— Você continue puxando a terra pro jardim, Major.
— O freio da carroça estragou mesmo, madrinha. Não teve jeito. Não consegui consertar.
Carlinhos corroborou.
— Aquele ali já era, não tem conserto, acho que não vai dar mais pra puxar terra madrinha, disse o Carlinhos.
— Então puxem no carrinho de mão. Pode puxar aqui por dentro, entrem pelo portão do jardim. Só cuidem pra não derrubar muita terra na calçada.
— E você, seu Carlinhos, trate de ajudar o Major.
— Sim, senhora, madrinha — respondeu o Carlinhos, rindo — mas claro, pode deixar comigo.
Enquanto minha vó continuava a dar ordens ao Major, Carlinhos se achegou pro meu lado e falou baixinho.
— Vai pra cidade? Fique aí, deixe de ser bobo.
— Vou ao médico. Só por isso vou. Mas de amanhã em diante eu fico.
Catei uns butiás do chão. A grama ainda estava orvalhada. Enfiei-os no bolso e entrei no carro. Carlinhos correu abrir os portões das mangueiras e partimos. Eu não estava com fome, apenas sentia saudade daquele gosto azedo — queria relembrar como era. Passando pelo mata-burros, lancei-os fora. Nos palanques das cercas ao lado da estrada os chan-chans voaram assustados quando o carro passou. Meus avós iam quietos. Na vila dos Pedrosa — hoje uma favela, em que mora uma família que muitos anos atrás trabalhou lá na fazenda —, meu avô parou o carro. Uma menininha veio, pediu a benção de mãos postas para o padrinho e para a madrinha e levou um litro de leite. No grupo escolar a mesma coisa. Numa casinha mais à frente, de novo. E a cena se repetiu mais umas tantas vezes no caminho. Deixamos a estrada de chão, entramos na cidade. Por onde a Rural passava, o povo ia tirando o chapéu para cumprimentar. Eu cheguei a ver um ou outro rosto conhecido, dos tempos do colégio. Fomos ao hospital. Não tivemos que esperar. Entramos na hora. Hospital vazio e silencioso, em comparação com aquele no qual fui atendido em Camboriú. Minha vó ficou no carro, desci só com meu avô.
Dr. Rimoli me examinou. Enquanto me pesava, olhava garganta, ouvido, me media e me apalpava, sem pressa, conversava com meu avô.
— O Lauro sempre foi muito destemperado, não é, Pedro?
— Sempre, dr. Rimoli, desde novo.
— E nunca tentou parar? Nunca buscou ajuda?
— Olha, que eu saiba, não — respondeu meu avô — vencido pela fatalidade da vida.
— E tem uma mulher... o pulmão tá limpo, não tem nada... se ele perde aquela mulher... aí se preparem, sobra pra vocês, seu Pedro! O senhor e dona Lina é que vão ter que cuidar dele. Porque o senhor sabe, um homem como ele...   Pode vestir a roupa, Luciano.
Eu fiquei aturdido de ouvir aquela conversa. Falavam como se eu não estivesse ali, como se não estivessem falando do meu pai e da minha mãe, ou como se eu fosse surdo, incapaz de ouvir ou de entender o que diziam. Mas eu ouvia, e entendia.
Saindo do hospital passamos pela rua de trás do clube, que reconheci pelo trampolim da piscina. Clube Recreativo Vera-Cruz: era ali que meu pai passava as noites. Todas as noites. Seus companheiros eram outros fazendeiros, gente como ele, que herdou muito e não se educou, donos de terra que cultivaram, em vez da terra, o vício. Jogavam pôquer e bebiam uísque, mandavam matar, traíam suas mulheres — a aristocracia decadente de Vera-Cruz. Certa vez houve um escândalo na cidade: foi preso um tal Chico Colibri, que freqüentava o clube: descobriu-se que era traficante de drogas. Muitos anos depois eu e minha mãe iríamos concluir que os gastos exorbitantes no talão de cheques todas as noites no clube não eram apenas com o pôquer; que a agressividade com que chegava de madrugada, então, não era só uísque...
Do hospital fomos ao lacticínio entregar os galões de leite, depois à farmácia e ao moinho, comprar ração para os animais. Impaciente, perguntei.
— Vó, e a espingarda que a senhora me prometeu?
Ela me prometera uma espingarda, dessas de pressão, de chumbinho, para caçar passarinho. Ela não sabia dizer “não” a um pedido do neto, como nunca soube dizer não aos filhos.
— A vó vai te dar — e dirigindo-se ao meu avô — Pedro, antes de ir, pare no “Caça e Pesca” comprar uma espingardinha pro Luciano.
Ganhei a espingarda. Foi-me dado também um relógio. Na hora não entendi e até não dei muita bola.
— É pra você não perder a hora dos remédios.
Cheguei na fazenda que só pensava em atirar. Até que vi a Simone, filha do Lizandro e da Rosalina. Estava nos fundos da casa, estendendo roupa no varal, com a sua irmãzinha Dulce e com a Zélia, que brincavam de boneca na grama, em cima de um lençol. Eu ainda não a tinha visto, e confesso que estava curioso. Das meninas da minha avó, a Simone era a minha preferida, desde antes de eu ir embora. No tanque, a preta velha Vó Rosalva batia roupa. Acho que ela era a preta mais antiga da fazenda. Para mim, era como se fosse do tempo dos escravos, porque era preta retinta, usava lenço na cabeça, trabalhava cantando, falava enrolado, fumava em cachimbo. Tinha os pés inchados e estava quase cega. Parei do seu lado para cumprimentá-la.
— Quim é qui é?
— É Luciano, vó.
— Luciano di nhô Lauro?
— Abraci aqui vó Rosalva. Cuidado que vó tá tudu moiada, fio. Minino, cê tá bão? — medindo-me com as mãos, completou: — Tá mais criscido, hein. Num é mais o mulequim qui eu criei. Já é um homi feito.
Teria Simone ouvido Vó Rosalva dizer que eu era já um homem? Provavelmente não. Mal eu, que estava ali do lado, pude ouvir. Pedi que repetisse.
— O que foi que a vó falou?
— Hein?
— O que a vó disse? Não entendi!
— Cuidado que vó moiada. Esse tanque tá muito baxu, já pidi pra cumadre Lina levantá.
— Não, vó. Depois.
— Que o minino tá criscido. Sabe que foi a Vó Rosalva que criou o Luciano, né? Criei teu pai também. Pro teu pai eu dei di mamá.
Simone dava umas olhadas matreiras. Eu também. Vó Rosalva parou de lavar roupa e segurava meu braço. Engatou a contar histórias.
— Bem aqui neste terrero, aqui onde é o varar, ali perto da horta... antes, fio, antes era tudu terra batida, num tinha essa grama... teu pai era nenê... uma veiz salvei eli di uma urutu. A cobra tava vindo pra cima dele. Curri ligero levantei o nho Lauro nos braço. Si eu não corro, a urutu ia pegá.  
Não fosse esta preta velha, se a urutu morde e meu pai morre ainda bebê, eu não nasceria, pensei comigo... Simone terminou de pendurar a roupa. Levantou os braços, prendeu o cabelo. Ela é mestiça. Rosalina é branca e Lisandro é preto. Simone é morena, do cabelo preto ondulado, sobrancelhas grossas. Se a mãe não tem os dentes, ela os tem todos e bem cuidados, rutilantes, e como que devoradores. Depois de fazer o coque, amarrou a blusa, que estava molhada, na altura do umbigo. Abanava-se e ria, mostrando aqueles dentes brancos de fera. Veio até o tanque, lavou o rosto, jogou água na nuca.
— Oi, Luciano. Chegou ontem, né?
— Sim. Ontem à noite.
— E vai ficar quanto tempo?
— Ainda não sei.
— Tomara que fique bastante, né? Venha, Dulce, Venha, Zélia. Vó Rosalva, quando tiver mais roupa pra pendurar, chame.
— Tá bão, fia .
Vó Rosalva continuou.
— Quandu tua mãe pariu, ela teve qui ficá di resguardo, eu qui fui lá, era eu qui ti dava banho, eu que fazia di um tudo. Vocêis morava ali naquela casa ondi hoje mora o cumpadi Lico e comadi Rosalina. Minino, o quanto ocê chorava di cólica, eu fazia massage, e ocê peidava, disse rindo, o quanto eu ti embalei...
Vó Rosalva continuou contando histórias do meu pai quando criança, de o quanto ele chorou certa vez quando uma abelha o picou na mão, de como ele riu quando Vó Rosalva escorregou aqui no tanque e caiu, de como ele era arteiro.... Imaginei-o com a minha idade, crescendo naqueles mesmos lugares, brincando na terra batida... Depois lembrei-me do clube, das brigas em casa, do que o dr. Zé Rimoli falara ao meu avô e fiquei ali olhando a água escorrer, a pensar em que ponto de sua vida foi que a inocência infantil cedeu lugar ao vício e à maldade, em como teria se operado a corrupção na alma daquele menino a quem um dia Vó Rosalva salvara da picada de uma urutu...