XI
Não demorou para que eu começasse a me enroscar com a Simone. Um beijo no pescoço, no jardim, atrás da bananeira, um amasso no corredor, no quarto de costura, tudo rápido, nada propício, sempre correndo. Todos já estavam desconfiados, por isso nunca nos deixavam sós. O Tobias, a Zélia, sua irmã Dulce, a Janete, sempre tinha alguém por perto. Sem contar que eu tinha um medo danado do Lizandro. O homem era bravo. Era o capataz e era de briga. Tinha um olho rasgado por um talho, e a cicatriz impressionava: ia do lábio até a têmpora. Briga de facão. O outro saiu morto, diziam. Pois era com a filha desse homem que eu andava de bolinagem. E estava todo mundo de olho.
Pois num dia em que minha vó arrastou toda a criadagem com ela para fazer queijo, e eu estava no quarto de bobeira, a Simone entrou. Encostou a porta, chaveou por dentro e jogou-se sobre mim, sem dizer palavra.
— Aqui? Agora?
— Não, só uns beijos.
Mas o caso é que além dos beijos, a safada prendeu-me com as pernas e levantou a blusa e depois se esfregou em mim... E naquele dia, cismei que era hora de ir adiante.
— Hoje vou no teu quarto de madrugada.
— Bem capaz. E as outras meninas?
— Venha você no meu então.
Já refeito, eu insistia, como que ordenando.
— Venha hoje.
Ela ria. Pondo-se de pé, alinhou-se, arrumou o cabelo e disse.
— Vou pensar no teu caso. Tá apressadinho, hein. Se acalme.
Eu continuava na cama. Ela veio e me deu um beijo.
— Tchau.
Abriu a porta com cuidado. Espiou de um lado, de outro, e saiu como se nada fosse.
Durante a janta, ria-me, desviando o olhar, olhando para o teto. Eu jantava sempre com os peões, pela companhia de Carlinhos e Major, mas de uns dias para cá, por causa dela, passei a fazer minhas refeições na cozinha.
Naquela noite, antes de deitar, arrumei um jeito de passar ao seu lado e sussurrar:
— Te espero.
À noite esperei tenso debaixo das cobertas. O trilar dos grilos invadia o breu do meu quarto, e a escuridão me oprimia, com imagens da minha mãe, das suas exortações, e até de Janaína, da nossa última conversa, de quando ela disse que tinha “nojo” de mim. Mas tudo isso vinha confuso, e a lembrança de Simone de hoje à tarde era próxima e quase podia ser tocada
, mole ou rija, lisa e úmida, ofegante e barulhenta, tinha cheiro, era palpável. Ademais, minha mãe e Janaína não ficariam sabendo de nada, eu poderia, enfim, bem conciliar tudo. Simone estava aqui e aqui ficaria. Não era este afinal um costume antigo, como minha própria mãe inúmeras vezes fazia questão de me contar? Os livros da escola não relatavam dos portugueses que aqui chegaram e tão bem se deram com as negras, da nossa cultura, da casa-grande e da senzala, da harmonia das raças? Não era essa uma nossa virtude? Se tantos, há séculos, vinham desfrutando dessas benesses, porque logo
eu
deveria me abster? Por que
eu
não podia fazer o que fizeram tantas gerações, o que fizeram meus avós, meu pai, meus tios e meus primos? Por que tão longa cadeia deveria ser interrompida agora? E afinal, ela estava interessada em mim, era um namoro, como era com a Janaína. A diferença é que a Janaína tinha lá os seus pudores, coisa que a Simone não tinha mais, e tanto pior pra Janaína. E mais — argumentava eu de mim para comigo mesmo — eu já estava passando da idade. Era já uma obrigação. Não. Em hipótese alguma eu iria desperdiçar tamanha oportunidade que se me oferecia ali, tão...
A porta abriu...
No dia seguinte, não acordei cedo, não fui para a ordenha. Não fui caçar. Não apareci para o café. Sentia-me estranho. Evitava encontrá-la. Na verdade, evitava encontrar com qualquer um. Diversamente do que imaginei, não estava orgulhoso do que fizera. Para fugir aos olhos de todos, fui para o jardim e sentei-me num banco, ao lado do tronco dos escravos, relíquia mórbida dos tempos antigos — um cepo, uma tábua vazada por onde os negros enfiavam as mãos, grilhões enferrujados. Ali fiquei e perdi-me no tempo, numa tristeza vaga. Olhei minhas mãos, as unhas estavam encardidas, fechei o punho, medi-o, enfiei nas velhas argolas, couberam.... Arre! Teriam as exortações constantes de minha mãe me inculcado aquela culpa? Seria por ter eu em Camboriú uma namorada, a quem traíra? Podia ser, sim, isso tudo. O que eu achava estranho é que agora de manhã nenhum daqueles tantos argumentos que ontem à noite eu enumerei me serviam mais. Minha mãe, Janaína, Simone, portugueses, mestiças, ao inferno! Vou pescar que ganho mais, pensei. Mas pescar me pareceu tão estúpido. Também não queria caçar. A fazenda era tão grande e tão vasta de divertimentos, e eu não sabia para onde ir. Fiquei ali, ao pé do tronco dos escravos.