XIII
Durante uns dias choveu e minha distração foi brincar de tiro ao alvo no galpão, assar cebola na casinha de fogo, contar mentiras no quarto dos meninos debaixo das cobertas. Até ginete fizemos, com um bode brabo e um bezerro zebu desmamado, lá no estábulo dos fundos, que era para minha vó não ficar sabendo: ela proibia que montássemos os bezerros e as ovelhas, dizendo que judiava os bichos. Eu desobedecia, porque estava convencido que é da natureza do animal ser montado e corcorvear, e que, afinal, muito mais judiaria se fezera com a Mirna.... Quando eu montava, Carlinhos narrava. “Abre a porteira, segura peão Luciano!”. Major não montou. Ficou deitado num monte de pelegos, pitando e dando risada dos tombos.
Um dia o sol voltou a aparecer. E eu, Carlinhos e Major, voltamos a puxar a terra para o jardim. Como o freio da carroça continuasse quebrado, fazíamos serviço com os carrinhos de mão. Lá pelo meio da tarde, paramos um pouco para descansar. Deitados na grama do jardim, perguntei:
— Quem era um tal de Sávio, de que ouvi falar por aí?
Carlinhos se abespinhou.
— Ah, nem me fale nesse infeliz. Andou por aí uns tempos. Um piá que a madrinha trouxe pra cá. Já foi embora.
— Madrinha levou embora — disse o Major ao abrir os olhos — Ficou pouco... Carlinhos que gostava dele, né, Carlinhos?
Carlinhos tinha subido na cerejeira. Lá de cima, enchia a boca e tacava os caroços no Major.
— Ah, tá bom. Mais um pouco e eu tinha enfiado uma faca no bucho daquele lazarento. Ô Luciano, vou te falar, aquele tinha parte com o Coisa-Ruim.
— Luciano, aquele conseguia ser pior que o Carlinhos.
— E que idade tinha?
— Um pouco mais velho que a gente... ô Carlinhos, vá pro inferno, me deixe descansar seu filho de uma égua!
Carlinhos tinha acertado um caroço no olho do Major e no alto da cerejeira ria como um mico...
Quis poupar o Major, deixá-lo descansar, e já que o Carlinhos nutria pelo tal Sávio uma tal antipatia, achei que ele faria um melhor relato. Perguntei-lhe.
— Então, Carlinhos, conte aí, por que ele foi embora?
Carlinhos desceu até o primeiro entroncamento, achou uma posição confortável, recostou-se, encheu a mão de cerejas, e começou, de boca cheia:
— Ainda bem que foi embora, mais um pouco e eu matava o desgraçado... sabe que meu pai matou um homem, né? — Carlinhos sempre contava essa história do homem que seu pai matara — ah, o piá roubava, roubava ovo no galinheiro, uma vez arrombou o cadeado da despensa; veja que burro, achou que ninguém ia desconfiar, se nunca ninguém fez isso aqui e foi acontecer pela primeira vez logo depois que ele chegou; entrou no quarto do seu Chiquinho também, revirou tudo, o véinho ficou louco, quer dizer, louco o seu Chiquinho já é — e deu uma gargalhada que cuspiu cereja —... Ah, o piá era ladrão, Luciano, foi por isso...
Major, fumando deitado, olhos fechados, como quem saboreia a um só tempo o sol, o sono e o cigarro, pediu:
— Agora conte aquela do galpão, Carlinhos.
O polaquinho soltou uma risada.
— Escute essa, Luciano. Então... um dia, as meninas, acho que era a Zélia e a Janete, nem lembro mais, foram no galinheiro de noitinha, fim da tarde, tava escurecendo, foram acender a luz dos pintinhos. Na saída, escutaram um treme-treme nas tábuas da parede, um barulho no estábulo, foram ver, espiaram, tava lá o bonitão com as calças arreadas em cima de uma bezerra!
— Ah, não me diga?
— Piá do diabo, tô falando, tinha parte com o capeta, não falei? — completou o Major
— As meninas voltaram bem quietas, contaram pra madrinha Lina. Ela chamou o Lizandro, pegou a lanterna, um relho, uma corda, e foram lá, bem devagarinho, todo mundo, até eu e o Major, né, Major? Todo mundo pegou o safado com a bunda de fora. Madrinha Lina mandou amarrarem ali na frente da casa, no pé de pitanga, e deu uma sova, mas uma surra, rapaz, que deu até pena do caboclo. Seu Lizandro bateu sem dó. Quase descadeirou o piá. Passou a noite amarrado,
no dia seguinte jogaram ele na charrete e seu Higino levou embora. Eu dava risada.
Fez-se um silêncio. A surra lembrou-me uma outra, que minha mãe me contara certa vez: ela era recém-casada com meu pai, eu ainda não havia nascido. Ela vinha de uma família, digamos, “normal”. Num domingo, após o almoço, meu tio Carlos deu falta de um relógio. Procura daqui, dali e nada de aparecer o relógio. Alguém acusa um moleque, um piazote, uma criança. O negrinho nega, jura que não sabe de nada. Meu tio não acredita e, segundo minha mãe, o espanca, mas com uma tal ferocidade que ela, mesmo sendo nova na família, mesmo sem intimidade alguma, não suporta, e intervém. Meu tio se ofende, meu pai entra no meio, e está feita a confusão. Segundo minha mãe, ela nunca vira tamanha brutalidade. Nunca vira um adulto chutar com a ponta de uma bota de couro a cabeça de uma criança, dar murros num pretinho indefeso que está no chão sangrando. Ela ficou em choque. Eis que dali a pouco o meu tio aparece na mesa do café com relógio no pulso, dizendo, na maior tranquilidade. “Estava no quarto, debaixo de uma almofada”.
— Caramba, Carlinhos — voltando eu à conversa e ao Sávio.
— Mereceu — comentou o Carlinhos, cuspindo um caroço.
— Puxar terra, seus vagabundos?
— Ah, bem capaz mesmo, negro burro. Que horas são já, Luciano?
Ainda deitado, tive que tapar o sol com uma das mãos para ver o relógio. O sol varava as folhas do plátano imponente que se erguia atrás da cerejeira, a copa lá no alto balouçando. Quando batia um vendo mais forte o arvoredo farfalhava, produzindo um barulho que me lembrava o mar.
— Duas e quarenta.
— Olha aí, nem vale a pena. Vamos esperar o café.
Major acendeu mais um cigarro. Por causa das chuvas a terra ainda estava úmida e cada carrinho estava pesando o dobro. Carlinhos, coitado, patinava em suas galochas, ia adernando, e mais derrubava terra do que transportava. Compreensível que preferisse as cerejas.
— Só mais vinte minutos, vamos ficar por aqui mesmo — eu disse.
— Depois, se a madrinha reclamar do serviço, você fala com ela, disse o Major.
— Falo sim, fique tranqüilo. Viu, me diga, Major, e você, como é o teu nome? Quem te deu esse apelido?
— Meu nome é Alexandre. O apelido foi o Lizandro, acho que foi por que eu era grandão, bem maior que o Carlinhos...
— E como você veio parar aqui na fazenda?
Carlinhos riu:
— Conte aí pro Luciano, Major.
Major sentou e deu um trago, aspirando pelo nariz.
— Eu conto mesmo. Eu tava morando na rua. Eu fazia jardim em Vera-Cruz, um dia tava fazendo o jardim da casa da tua tia Regina, tua vó passou lá, gostou do serviço, conversou comigo e me trouxe...
Carlinhos gritou lá de cima e atirou um caroço:
— Não, conte de antes!
Major levantou, pegou um bolo de terra e fez voar para cima da cerejeira, o torrão despedaçou-se e virou uma chuva de lama na direção do Carlinhos.
— Ô negão filho duma égua, conte de antes de você ir fazer jardim, quero ver — dizia rindo e se escondendo entre os galhos, com medo de um novo arremesso de lama.
— Eu tava num acampamento de sem-terra. Foi lá que arrumei as ferramentas pra fazer jardim.
— Não, negro burro, tô falando antes dos sem-terra.
— Antes tava morando com a minha vó, eu sei o que ele quer que eu diga, Luciano, ele quer que eu te conte que a minha mãe é da zona. Pronto, Carlinhos?
Não era minha intenção constranger o bom Major. Mudei o rumo da conversa:
— E você, Carlinhos?
— Meu pai matou um homem. Deu um tiro na cara do sujeito. Minha mãe é merendeira lá na escola em que a tua tia Regina dá aula. Meu pai consertava máquina de lavar roupa. Carregava uma máquina sozinho nas costas.
— Tá, e por que ele matou?
— Ah, deu um rolo, o cara falou da minha mãe, meu pai foi lá e deu uma surra nele, moeu na porrada. Meu pai é foda. Pois não é que o covarde foi de noite lá em casa, a Kombi que meu pai usava pra trabalhar ficava estacionada na frente de casa, o filho da mãe foi com um martelo e destruiu a Kombi inteira, arregaçou tudo, lataria, vidro, tudo. Meu pai pegou o revólver foi na casa dele e deu um tiro na cara, pra acabar com a palhaçada.
— E foi preso?
— Foi preso. Às vezes madrinha Lina me leva visitar ele.
— E você dormia onde quando tava na rua em Vera-Cruz, Major?
Sem abrir os olhos, sem se mover:
— Na frente da Prefeitura.
Uma, duas, três pancadas no sino. Hora do café.