XIV
Meu avô quase nunca ia ao galpão. Um dia, após o almoço, chamou o Lizandro e foi, e eu o segui, espiando com curiosidade. Ofegante, pois qualquer pequena caminhada o fazia respirar com dificuldade, parou na entrada do galpão, e remexeu um molho de chaves. Minha curiosidade era enorme. Quando abriu a porta da farmácia logo concluí haveria vacinação do gado. Vô Pedro colocou os óculos e passou a ler os rótulos das caixas. Era isso mesmo: no dia seguinte o gado ia ser vacinado contra aftosa. Ele criava umas poucas cabeças de nelore, lá na invernada da chapada de baixo, um pasto cultivado de aveia que ainda era de propriedade da Fazenda São João. Seria preciso trazer o gado do campo, pesar, colocar no tronco e vacinar.
No outro dia, de manhã bem cedo, ainda durante a ordenha, o Lizandro chamou o Carlinhos:
— Ô Carlinhos, você vá buscar os cavalos pra nós. Luciano dá conta aí dos terneiros, né?
— Não dá pra ir depois? Daí o Luciano vai comigo — respondeu o Carlinhos, na suposição, correta, aliás, de que tudo era diversão para mim, inclusive ir buscar os cavalos. Desde que eu cheguei, Carlinhos não desgrudou mais de mim.
— Claro que não, rapaz, vá já! Que horas vamos sair pro campo? Quero sair assim que terminar de tirar o leite. Vamo! Luciano, cê dá conta, né? Já aprendeu os nomes dos bezerros, né?
Com efeito, após algumas semanas eu já reconhecia todos. A postos em frente ao portão do estábulo, pois, ia soltando um a um, conforme iam me pedindo: “solta o Fábio Junior”, “Manda o Sassá Mutema...”.
Carlinhos já ia saindo, Lizandro ainda falou:
— Viu, Carlinhos, o Luciano vai pro campo com a gente, você vai ficar sem o teu companheiro — e isso já serviu para as piadinhas, assovios e troças de costume — Então, depois do café, cê pegue uma foice e vá roçar as mangueira, aquelas do fundo, aquelas do tronco, que o mato lá tá muito alto.
Carlinhos bateu uma continência, disse:
— Sim senhor, capitão Lizandro, quando voltarem, as mangueiras vão estar um brinco — Dito isso, pegou uma corda e foi andando bem devagarzinho...
Quando Lizandro voltou a ordenhar, Carlinhos virou-se, mostrava o dedo, fazia caretas, sussurrava nomes, segurando nas genitálias, dava pulos e rebolava. Major, lá da outra porteira, só balançava a cabeça. Os outros peões riam, quietos.
Os cavalos ficavam no piquete da frente. Quem chegava de fora, portanto, sempre os via, a compor o mais belo dos cenários: o campo, a taipa, a lagoa, uma fileira de tuias, e à medida que se ia chegando, as mangueiras e o galpão e um enorme eucalipto no qual as curucacas faziam seus ninhos. Em frente, o gramado, as calçadas cercadas de flores e palmeiras, o butizeiro, a cameleira, e então a casa em estilo colonial, branca, paredes de pedra e cal, telha goiva, com janelas e portas azuis. Era assim a Fazenda São João.
Do galpão, víamos Carlinhos lá embaixo, perto da lagoa, bater-se com a sua galocha no capinzal, boleando a corda no ar, assustando os cavalos.
— Devia ter mandado o Major, disse o Lizandro.
Faraó, um bagual baio, fugiu. Ao que o primeiro escapou, os outros dispersaram, e não sobrou um no carreiro. Aquele polaquinho segurando a corda, que víamos de longe, agitava a mão, desesperado. Foi correr e sumiu: caiu numa valeta.
— Jeferson, vá lá ajudar o Carlinhos, senão a gente não sai — disse rindo o Zé Maria.
— Sim senhor, pai.
Naquele dia, o Zé Maria trouxe um filho seu para ajudar. O Zé Maria, peão antigo da fazenda, agora morava com a família na Vila do Rio Pequeno. Era moreno de sol, tinha o rosto liso, apenas uns fios de barba esparsos, sempre um chapéu na cabeça. Baixinho, entroncado, as pernas em arco, andava em passos desiguais. Quando os filhos atingiram idade escolar, a sua mulher, dona Zila, quis morar mais perto do grupo escolar, e meu avô lhes deu um terreno. Dona Zila era severa, com os filhos e com o Zé Maria. Se o Zé tomava um trago no fim do dia antes de ir para casa, lavava bem a boca pra não chegar cheirando, porque a mulher não gostava que bebesse. Os filhos estudavam, eram obedientes, estavam sempre de cabelo cortado, e as roupas, ainda que puídas, estavam sempre bem lavadas; pediam a benção para o meu avô e para a minha avó de mãos postas e cabeça inclinada. Diferente dos moleques da fazenda, não falam palavrão. Jeferson era ligeiro; saiu correndo, cercou por um lado, colocou o Carlinhos para tocar pelo outro e num minuto os cavalos rebentaram na mangueira, relinchando.
Minha égua Pimenta!
Vi-a de longe em meio aos outros. Era ela que eu montaria. Lizandro o seu baio Faraó, um portento, maior do que todos, com umas ancas largas, que tinha fama de conseguir tirar uma vaca do atoleiro sozinho, de tão forte que era; Libino ia numa eguinha petiça pampa, branca e castanha, mais bonita do que boa, lerda, dura de boca — mas Libino gostava dela, era sua e ele não trocava por nada; Zé Maria montava um burro preto, burro velho, bom de lida, experiente, montaria antiga do Zé Maria; Jeferson escolheu um tordilho branco com as patas rajadas de preto — rapazinho esperto o filho do Zé Maria, escolheu bem, pois que era um dos melhores cavalos da fazenda.
A minha Pimenta era uma alazã tostada, de um vermelho escuro na pelagem, com umas manchas brancas nas patas, crina e rabo preto. Achei que estava malcuidada, com a crina comprida, o rabo quase encostando no chão, cheio de carrapicho. Quis tosar, mas o Lizandro tinha pressa.
— Deixe pra depois, quando a gente voltar você tosa, Luciano. Tava com saudade da tua égua? — perguntou, rindo e dando-me uns tapas nas costas.
Eu estava abraçado ao pescoço da Pimenta, agradava-lhe o focinho, alisava o lombo, beijava o pescoço. Olhávamos, eu e a égua, no fundo dos nossos olhos, aqueles olhos tristes, lacrimejantes. Ela parecia querer falar comigo, perguntar por onde eu andei este tempo todo, e eu, se Lizandro não estivesse me apressando, bem que lhe contaria tudo...
Começamos a encilhar. Lizandro abriu o quarto de arreios do meu pai — cada filho de dona Lina tinha o seu —, que estava fechado desde que havíamos ido embora.  O cheiro de couro lembrou-me na hora o meu pai de uns anos atrás, aquele com quem eu ia para o campo, com quem eu havia aprendido a montar, e que em nada mais se parecia com aquele lá da praia. Eu chegava mesmo a discordar da decisão — mais da minha mãe do que dele — de ir embora de Vera-Cruz. Tirá-lo da fazenda foi uma tentativa de salvá-lo do alcoolismo e salvar o resto de patrimônio que nos restava. Agora o mercado estava falindo e ele continuava bebendo tanto quanto antes. Ao fim e ao cabo, a minha impressão é que perderíamos ambos. Por um minuto fiquei ali, a rever as nossas selas, as rédeas penduradas na parede — a rédea que as mãos do meu pai seguravam —, os baxeiros, os pelegos.... Para mim, sempre houve dois pais bem distintos: o da fazenda, o do dia, o que montava a cavalo e ia comigo para a lida do campo, que me levava pescar e caçar capivara; e o da noite, o que saía perfumado no fim da tarde para o clube, e que voltava bêbado de madrugada, o que brigava com a minha mãe. Aqueles arreios, aquelas rédeas, aquele cheiro de couro, lembrava-me o bom pai, o pai do dia.
— Pode deixar que eu encilho a minha, Lizandro.
— Sabe ainda?
— Claro!
— E tem força pra apertar a cincha?
— Tá de brincadeira comigo, né? — pensei em fazer uma piadinha envolvendo a filha dele, mas só pensei.
Exceto pela sela — usei a minha por ser mais adequada ao meu tamanho —, os outros arreios usei os do meu pai, por uma vaga razão, algo como uma forma de suceder-lhe, ainda que por uma única vez, talvez para segurar com as minhas mãos nas mesmas rédeas que as suas mãos seguravam, pisar os mesmos estribos que seus pés pisavam. Encilhei, acertei a altura do estribo, e me arrojei na montaria.
Saindo do galpão, Zé Maria chama os cachorros. A excitação me fazia imitá-lo, dando os mesmos gritos, uivando, assobiando. Com o relho, eu dava estalos no ar. Passando por trás do jardim, as meninas foram até a cerca, Simone foi dar tchau para o pai. Segurei o passo da minha égua, coloquei-me atrás do Lizandro e acenei pra ela com meu chapéu. Ela riu e mandou-me um beijo. Meti a espora e o relho e dei um galope. Enquanto eles iam a passo lento pelo carreiro, como a fazer coisa monótona, eu ia e voltava, trotava, galopava, subia e descia os barrancos, embrenhava-me no capinzal, parava comer amora e camboim no pé; depois corria para alcançá-los; cortava por um capão para sair por outro e achá-los mais à frente.
Passamos o cemitério, onde eram enterrados os da fazenda; atravessamos o antigo campo de futebol, onde meu tio Carlos dava suas festas, e, onde, aliás, ocorreu a sua prisão; vimos a tapera da velha Zulmira, uma bugra que morava sozinha no meio do mato, como bicho; descemos pelo açude das traíras, onde tantas vezes pesquei com meu pai... e de longe ouvi a roda d’água trabalhando...
A manhã avançava, e em cada capão um anu-preto, um jacu, um tucano, um piar diferente ecoava na mata fechada e silenciosa. Fora isso, só a conversa dos peões, que iam sempre papeando, e o tropel dos cavalos amassando o barro ainda molhado. De vez em quando, um deles resfolegava. Jeferson era tímido, ia quieto ao lado do pai. A névoa que cobria o campo nas primeiras horas da manhã agora só pairava nos vales, ou sobre os banhados. O sol já estava alto. Mais um pouco e chegaríamos na chapada de baixo.
De repente surge no horizonte, maior e mais misterioso do que tudo o que havia na Fazenda São João, o morro do corvo. Sempre me fascinou. Não era apenas um lugar, era uma entidade. Cresci ouvindo que lá os jesuítas tinham enterrado um tesouro. Dizia-se que lá no seu cume havia uma calçada e que os índios eram jogados lá de cima, pelos tais jesuítas. O acesso era difícil. Por apenas uma das faces era possível subir, e não sem muita dificuldade; nas outras, era despenhadeiro, só pedra, ribanceira, e lá embaixo um rio e um banhado, lá onde, dizia-se, os índios eram lançados. Por causa dos cadáveres dos índios é que havia sempre abutres sobrevoando aquele morro. Galopei na frente e decidi que era hora de procurar o tesouro. Era agora ou nunca mais. Chegou a dar dó da minha Pimenta, de tanta força que fez, o suor a banhar-lhe o dorso musculoso. Fui margeando, em zigue-zague, contornando obstáculos. Uma vez lá em cima, e quase não acreditei: havia mesmo uma calçada, igual calçada de cidade, pedra ao lado de pedra, como um dólmen inaudito! Não sei o que mais me impressionou, se a existência da calçada ou o tamanho da fazenda. Eu nunca avistara a Fazenda São João inteira, como naquele dia. E lamentei por tudo aquilo não ser mais dos Almeida Cândido. Além da calçada, havia uma cruz de madeira (decerto coisa dos tais dos jesuítas) e uns buracos (decerto coisa de quem andou procurando o tesouro). A conclusão a que cheguei é que se não haviam encontrado o tesouro naqueles buracos, ele ainda estava lá. Planejei voltar com o Carlinhos e o Major para escavar o tesouro. Vi então que os peões iam passando lá embaixo e desci.
Na chapada, o pasto de aveia cobria um boi até a cintura. Passamos pelo primeiro rebanho e enchemos o coxo de sal, para que ficassem ali, lambendo. Fomos até o fundo da invernada, pelo caminho de baixo, reunimos os que lá estavam e voltamos tocando, por cima. Eu e Jeferson íamos na frente, cercando os pontos de fuga, fazendo o trabalho de ponteiro. Um rebanho, se bem encaminhado, se cercado por longe, sem susto, se tangido por cachorro campeiro bem treinado, vem com calma, vai desaguando pelo carreiro como uma enxurrada.
A mangueira encheu naquele dia. Depois do almoço, meu avô veio ao portão para ver. Para a pesagem, íamos passando os bois, em grupos de dez, primeiro para o curral menor e dali para a balança. Dentro da balança só o Lizandro e o Zé Maria. Lizandro pesava e anotava, Zé Maria cuidava de fazer o boi entrar e sair, fustigando-o com um pau comprido com uma roseta na ponta: não é coisa fácil, porque o bicho, vendo-se imprensado, nessa hora se assusta, empina, negaceia e berra. Na mangueira maior, eu e Jeferson, montados, ficamos responsáveis por separar os grupos e tocá-los em direção ao curral menor. Libino operava o portão. Para isso é preciso ter coragem, porque é serviço que se faz no chão, e sempre tem um boi bravo que na hora de passar vê que ali tem uma pessoa, e resolve investir contra o peão. Mais de uma vez Libino teve que dar um pinote para cima da cerca para fugir a um ataque.
Pesados, os bois saíam para uma outra mangueira, lateral, comprida, que margeava toda a mangueira principal e ia até o tronco. Lá no tronco também havia uma menor, na qual separavam-se primeiros grupos menores, os quais então eram enfileirados para a vacina. Ali, a mesma coisa: Lizandro aplicava a vacina, com uma pistola prateada; Zé Maria enchia o tronco e, uma vez todos vacinados, abria na parte da frente uma portinhola giratória, soltando os bois para uma outra mangueira de baixo; eu e Jeferson na mangueira comprida mandando os grupos de dez para a mangueira menor; Libino no portão...
Naquele dia ainda caparíamos uns garrotes. Caía a tarde, fazia frio. Acendemos uma fogueira ao lado do tronco. Quando o serviço chegou ao fim, serenou a barulheira de mugidos de gritos de peão, e tropel de cavalo, e solavancos de boi contra o madeiro do tronco... Assamos os bagos ali mesmo, papeando em torno do fogo.