XV
Fazia dias que minha mãe não ligava, quando, de repente, numa noite o telefone tocou. Achei-a especialmente bem-humorada. Eu a conhecia. Se entrava a falar de suas leituras era porque estava bem.
— Filho, reli o Graciliano. É o melhor escritor brasileiro. Você tem que ler.
São Bernardo
é o seu melhor livro. Aquela Madalena foi fraca. Eu não sou fraca! não terei o mesmo fim que ela!
— Que Madalena?
— Ah, nada. Dos estrangeiros, li recentemente Steinbeck,
As Vinhas da Ira
. Aqueles colonos, perdendo tudo para os bancos, tendo que se mudar, igual a gente filho — mas eles sofreram muito mais do que nós! O que passamos, em comparação com eles, foi fichinha. Ah, falar em ficha, hoje comprei um saco delas, estava com saudades e queria falar bastante com você!
— Tô te achando alegre, mãe.
— Estou mesmo. Estou animada. Você vai ver. E você, filho, tá feliz?
— Eu tô...
— Não gostei do tom da resposta. O que foi, já enjoou da fazenda? Quer voltar? Espere só mais uns dias...
Estranhei ela pedir que eu esperasse “mais uns dias”, como se houvesse uma data precisa em que eu deveria retornar...
— Não! Não é isso...
— Bom, aproveite...
Falamos de amenidades. Havia na sua voz alívio e esperança. Eu é que, efetivamente, andava meio aborrecido, algo impressionado com as cenas que vira, com a morte da Mirna; talvez, mesmo, um encanto tinha se perdido para mim na figura da minha avó, a quem eu agora ligava à imagem de um aborto e uma morta.
Para me distrair, um dia, Zé Maria convidou a mim e ao Libino pra jantarmos em sua casa. E como o Libino prometera que na volta poderíamos aproveitar para caçar tatu, concordei. Zila faria um leitão assado, mas me animei mais com a caçada que com a janta.
Naquela tarde prendi os cachorros e os deixei o dia inteiro sem comida, preparei os archotes de bambu, estopa e querosene; busquei os cavalos, afiei bem minha faca. No fim do dia tomamos a estrada, cavalgando devagarzinho e papeando, com o vento frio batendo no rosto. Para esconder as mãos eu segurava as rédeas por baixo do poncho.
Anoiteceu. Ventava bastante, mas o céu estava limpo e estrelado, e a noite era de luar. Apenas poucas nuvens vaporosas atravessavam rapidamente o halo luminoso da lua, para desaparecer em seguida na escuridão. Acendi o facho. À luz do fogo, Libino sorriu-me, mostrando toda a sua deformidade.
O Libino fora empregado dos meus pais, antes de irmos embora, e decerto era por isso que me tratava com tanto desvelo, ou então porque foi minha mãe quem o salvou da morte. Certa vez ele caiu debaixo de uma roçadeira, meu pai era quem dirigia o trator, e por pouco não o matou. Libino foi tirado lá debaixo todo retalhado. Minha mãe levou-o às pressas ao hospital, onde o pobre do mulato chegou quase sem vida, de tanto sangue que perdeu. Libino tinha a cara que era uma costura só, não dava nem pra dizer o que ali era cicatriz, porque era todo remendado. Gostava deveras de mim, da minha mãe e do meu pai.
Eu ia segurando o facho, apoiado na sela, alumiando aqui e ali, e Libino segurando o seu cantil de cachaça, dando bicadas. Estava falante. Eu deixara em casa o tédio, e, por que não dizer?, o horror dos últimos dias; e excitava-me com a cavalgada noturna e a conversa. Libino dava seus goles e falava, e o que contou naquela noite me impressionou bastante.
— Eu gosto muito do seu Lauro e da dona Paula. Senti demais quando vocês foram embora. Gostava de trabalhar pra vocês, dona Paula era muito boa pra mim. E você, então? Era agarrado comigo! E como gostava de jogar bola! Se dependesse de você eu não trabalhava, passava o dia inteiro jogando futebol com você, não fazia mais nada. Lembra quando eu construí aquela trave no campinho atrás da casa? Aí sim é que você não queria mais saber de nada — e dava uma bicada no cantil —, só futebol, futebol... que idade você tinha, Luciano? Uns oito, nove... tempo bom,
né?... Ah, vocês não tinham que ter ido embora — e mais um gole — gosto muito do seu Lauro e da dona Paula, tenho muito carinho por você, piá... Dona Paula era muito boa pra mim... Salvou minha vida... Não fosse ela eu não ia tá aqui agora debaixo dessa lua, tomando essa cachaça, em cima dessa petiça — e abraçava o pescoço da sua petiça, fazendo-lhe carinho nas crinas.
— Mas você tá bem aí com a vó e com o vô, com o Lizandro?
— Ah, não dá pra reclamar, né, Luciano?...
E fez-se um silêncio.
— ...Tua vó já foi bem pior. Hoje tá amansada.
Fiquei a pensar no que Libino quis dizer. Assobiei para reunir os cachorros. Iluminei ao redor. Apareceram o Sultão e a Dalila, e logo depois o Jaguara; com a língua de fora, irrequietos, esfomeados — prontos para a caçada. Mais um pouco e chegaram o Tiziu e o Guasca.
— Como assim, “amansada”, Libino?
— Ah, tá mais velha né? sossegou... Ah, piá, você não sabe de nada da velha Lina...
— Conte.
— Fica entre nós e debaixo desse céuzão estrelado, hein? Sabe que a Mirna morreu...
— Ah, mas essa eu já sei, Libino. Não era pneumonia. Conte outra.
Libino deu uma risada e um gole no cantil.
— Ah, e eu achando que contava uma novidade. Então você já sabe, né? Foi um aborto. E do teu tio Serginho.
— Pois é, fiquei sabendo...
— E quem foi que te contou?
— O Carlinhos.
— O Carlinhos? Mas então todo mundo tá sabendo...
— Ó piá, já que você sabe dessa, e já que você falou do Carlinhos, vou te contar outra, uma história antiga. Essa duvido que você saiba. Mas talvez essa você saiba também... Dona Paula deve saber dessa história, aconteceu faz tempo, já deve ter te contado.
— Não sei, depende...
— Fica entre nós, e debaixo desse céuzão estrelado...
— Conte.
— O Carlinhos — você pelo amor de Deus, não vá comentar nada...
— Tá bom, Libino.
Eu estava empolgado. Pedi até para dar um gole no cantil.
— Bem capaz. Você chega bêbado em casa...
— Um golinho só... Pra esquentar.
— Só um golinho?
— Só um golinho.
— Então, o Carlinhos é filho do teu tio Carlos.
— Caramba...
— Você não sabia?
— Mais ou menos, já tinha ouvido qualquer coisa, conte aí...
Estávamos passando pela vila dos Limas. Libino acenou para alguém, lá ao longe, na subida de um barranco, alguém que saíra na porta de um casebre. Latidos de cachorro agora vinham de todos os lados e luzes se acendiam nas casas. Quando passamos o grupo escolar, suspeitei que não estivéssemos longe da Vila do Rio Pequeno e receei que não fosse dar tempo de ele terminar a história.
— Conte aí, Libino.
— Então, o pai dele é o teu tio Carlos. O coitado do Beraldo, que tá preso... Foi assim, o Beraldo era bobão, era empregado da fazenda, bem tongo; teu tio engravidou a merendeira da escola, lá onde tua tia Regina trabalha e... não sei direito, deu um rolo, rolo de mulher, de corno, de chifre, mas sei que o
teu tio mandou matar um sujeito. A tua vó, pra livrar o seu Carlos da cadeia, o que é que fez? Mandou o coitado do Beraldo assumir a bronca. O Beraldo, bobão que era, foi lá e assinou o B
.O., confessou, só porque a madrinha Lina mandou... enrolaram ele, disseram que ele ia sair em seis meses. Ah qual! Tá preso até hoje. Já era bobão, dizem que ficou louco na cadeia. Aí contaram pra ele que o Carlinhos era filho dele, he he! O bobão acreditou. E pro Carlinhos, inventaram que o pai dele era o Beraldo, que tinha matado um sujeito e tava preso, e o coitadinho do piá acreditou, he he! Ê ê! Tua vó Lina é esperta...
— Rapaz...
— Pois é... A tal da merendeira dizem que era bonita que nem o diabo, uma polaca bonita e safada. Teu tio Carlos ficou louco, engravidou e mandou matar um cabra por causa dela...
— E a merendeira ainda foi lá e batizou com o nome do pai...
— Pra você vê, Luciano. Dizem, isso já não sei, escutei na época, que a tua avó queria que ela tirasse e que a polaca virou um bicho... Vai ver ela batizou como Carlinhos só de birra, né?
— Rapaz, quer dizer então que o Carlinhos é meu primo... Neto...
Libino esvaziou o cantil, e, além de ser indiscreto, filosofava:
— É a vida, guri, você é novo, tem muita coisa pra aprender... Nem todo mundo é bom que nem a dona Paula e seu Lauro, por isso que falei que senti muito quando vocês foram. Então, ali na encruzilhada é à esquerda, chame os cachorros.
Zila fazia de tudo para nos agradar. Quando soube que eu tinha asma, encheu-me de perguntas, porque seu filho mais novo, o Ademir, também tinha. Buscou a caixa de remédios, perguntou quais daqueles eu tomava, queria saber das minhas crises. Sentados ao redor do fogão à lenha, comíamos uma sapecada de pinhões. Zé Maria e Libino falavam do trabalho, como quaisquer operários após a jornada, e eu achava estranho vê-los falar da São João com um olhar externo. Zé Maria lembrou dos velhos tempos. Fora criado com meu pai, a quem conhecia desde criança. Fora testemunha de toda a decadência, viu de perto a família e a São João acabarem, e eu tinha a impressão de que ele, mais do que os próprios filhos do casal Pedro e Lina de Almeida Cândido, lamentava profundamente tudo aquilo.
Quando Zé Maria serviu o segundo copinho de aperitivo, Zila olhou torto, e ele logo tratou de esclarecer:
— É o último!
A certa hora Zé Maria comentou algo que eu vinha dizendo há tempos:
— Mas que besteira o seu Carlos foi fazer. Mandar matar o homem lá no Rio de Janeiro, por causa de mulher!
Libino foi de acordo. Zila também. Zé Maria lamentava. Lamentava por mim e por seus filhos:
— A São João ia ser tua. Tua e dos teus primos, mas uma parte ia ser tua. Eu tô velho... Olha aí — e apontava pros filhos — vocês iam trabalhar juntos. Você tem cabeça boa, Luciano. Ia saber tocar. Mas agora já foi. Esse restinho que sobrou aí, daqui a pouco vai também. Teus avôs tão velhos... Na hora que a sede cair nas mãos dos teus tios, seu Serginho, na hora que seu Carlos sair da cadeia, aí esqueça, vendem na hora... E suspirou.
Zé Maria estava mais ligado àquela terra da Fazenda do que os próprios Almeida Cândido. A modernidade chegara e corrompera aquela geração dos Almeida Candido, a do meu pai; o Zé Maria continuaria ali no seu terreno, o mesmo.
Como ele me explicava ali na beira do fogão, tinha três alqueires, algumas vacas, uns porcos no chiqueiro, tudo pouco, só para o sustento da casa. A Zila e os piás é que cuidavam. Jeferson e Ademir estudavam. Queria dar futuro para eles.
— Vão ser veterinários — disse a Zila.
— Eu quero ser advogado — disse o Ademir, o menorzinho, de óculos, boca cheia de pinhão.
Eu a tudo escutava. A cena familiar, a conversa sobre a São João e os velhos tempos... tudo isso e mais aquele golinho que dei no cantil do Libino, tudo isso me pôs numa emoção dos diabos. Como era possível que houvesse mais amor pela fazenda no Zé Maria do que entre os três filhos do meu avô? Como era possível que houvesse mais paz e mais ordem no casebre do Zé Maria do que na Fazenda São João e na minha casa? Como era possível que o Zé Maria tivesse mais moderação do que o meu pai e o tio Serginho?
O leitão foi servido. A conversa agora era sobre os dotes culinários da Zila, que o Libino não cansava de elogiar. Zé Maria estava com os olhinhos quase fechando, e bocejou duas ou três vezes. Perguntou se íamos mesmo caçar e ofereceu-se para completar o cantil do Libino. Jeferson deu dicas sobre os melhores lugares no caminho de volta, onde poderíamos encontrar tatus. Era hora de voltar.
Agora, em vez de cavalgarmos pela estrada, íamos por carreiros, pelas lavouras, costeando as matas. Libino estava visivelmente com preguiça, e só queria saber do seu cantil. Se eu queria tatu, que tratasse de providenciá-lo. A mim caberia, portanto, embrenhar-me nos capões.
Meia hora de cavalgada e um cachorro acoou. Vibrei.
— Tá ouvindo, Libino?
— Tô, mas acho que é o Guasca, esse só sabe acoar pra passarinho. Certeza que é um passarinho.
— Vamos lá ver?
— Mas pelo latido fininho é o Guasca. Escute.
Silêncio. Só ouvíamos a respiração dos cavalos. De quando em quando os latidos ritmados, longe, lá dentro do capão.
— Vamos lá ver, vai que tá latindo na boca da toca e é pra um baita de um tatu?
— Meu piá, se fosse um tatu, os outros cachorros iam tá latindo também. Se é só o Guasca que tá latindo, é porque é um passarinho. Quer ir ver eu espero.
— Eu vou.
Apeei. Facão numa mão, archote na outra e me embrenhei na mata. Meia hora depois voltei.
— Era o Guasca. Tava em pé na árvore, enlouquecido. Devia ser um passarinho, ou algum bicho que correu pra cima da árvore.
Isso aconteceu mais duas vezes, e eu estava desistindo, quando, inesperadamente, já na chegada da fazenda, a cachorrada toda se arremessa num capãozinho pequeno e faz uma algazarra.
— Agora é tatu — disse o Libino.
Já não esperávamos mais. Era madrugada alta e o bicho devia estar atravessando a lavoura quando foi surpreendido, longe da toca, e teve que se refugiar ali. Uma toca pequena. Mas não foi fácil puxá-lo para fora
.
Quando chegamos, estava encrespado, e só com a ponta do rabo para à vista, com os cachorros babando em cima, todos latindo, brigando entre si, os menores se enfiando por baixo dos maiores; o Jaguara cavava e gania, o Tiziu já estava praticamente dentro da toca. E o bicho roncava. Afastamos a cachorrada, a ponta-pés. Fez-se silêncio. Só se ouvia o ronco moribundo do Tatu. Tentamos puxá-lo, mas era grande e nem se moveu. Começamos a cavar ao redor com as mãos, mas havia muitas raízes. Pensei em galopar até a fazenda para buscar uma pá, mas não estávamos tão perto, e tive medo de ir sozinho. O facho estava apoiado a um tronco de árvore. Libino tinha a lanterna na boca e cavávamos com as duas mãos. De repente um dos cachorros esbarrou e o archote caiu, o querosene encharcou a estopa e o fogo apagou-se. Ficamos só com a lanterna. O entorno agora estava em completa escuridão. Libino pediu que eu segurasse a lanterna, focalizando melhor a boca da toca. Ele estava bêbado, mas entrou a cavar com uma tal energia que me espantou. Após uns minutos, no entanto, estava exausto, e vi que ia desistir. Eu não desistiria. Ao cheiro de terra, de folhas, cachorro e bafo de cachaça do Libino misturava-se agora o forte odor do querosene derramado. Eu não ia desistir porque no fundo sabia que aquela era a minha última caçada de tatu na São João. Se ele desistir, pensei comigo, fico aqui com os cachorros até de manhã, peço que venham o Carlinhos e o Major me ajudar; Major não virá, de preguiça, mas o Carlinhos vem com certeza, e vem aos pinotes, e a história ganhará até contornos mais belos, pois que voltaremos eu e o Carlinhos, com o sol raiando, e o tatu como prêmio, e erguido sobre as nossas cabeças...
— Tá saindo, Libino?
— Tá nada, arfou, sem tirar a sua cara retalhada da toca.
— E se enfiar a faca na bunda dele?
— Bem capaz, arrebenta o intestino e perde a carne. Vamos puxar.
Posicionei a lanterna no chão, ajeitamos a posição e travamos as pernas na entrada da toca. A quatro mãos engatamos no rabo e começamos. Contávamos, um, dois três, força! E o bicho vinha um pouquinho. Mas parecia que continuava a cavar e num vacilo nosso, afundava de novo. Trabalhamos por mais de uma hora. Aos pouquinhos, no entanto, o tatu foi saindo. Quando estava com metade do corpo pra fora, como que se rendeu. Um baita de um tatu! “Segura, senta em cima, pisa”, gritava o Libino. E a cachorrada em roda, querendo avançar. Apoiei o joelho sobre sua casca, saquei a faca da bainha e cravei-lhe na nuca, entre as orelhas. Parou de roncar, esticou as patas. Foi o primeiro tatu que matei com minhas mãos. Seria, efetivamente, também o último.