XVIII
Eu estava carneando um porco com o Lizandro quando me gritaram:
— Luciano! Telefone, tua mãe!
Minha mãe me ligava só de vez em quando. Nos primeiros dias, ligava dia sim, dia não; mas aí viu que era cada vez mais difícil me achar dentro de casa, e à medida que o tempo foi passando, resolveu ligar uma vez por semana, ou a cada quinze dias. Geralmente ligava durante o dia, porque telefone só tínhamos no mercado, e para ligar à noite precisava recorrer ao telefone público, e a chamada interurbana era cara.
Passei água quente nas mãos e corri.
— O que tá fazendo, filho?
— Tudo bem mãe? Tô na carneança, estamos matando porco.
— Aqui tudo bem. Meu Deus, matando porco!
— Eu mesmo que sangrei!
— Você o quê!?
— Eu que sangrei. Enfiei a faca. O porco você enfia a faca no coração...
— Ah, tá bom, me poupe dos detalhes, Luciano... Cada vez que ligo você tá inventando uma diferente! Tá aproveitando, hein! Aproveitou pra pescar bastante?
— Sim, nem fale, pesquei lambari no saicanga, traíra no açude, carpa na lagoa... só a isca artificial que eu trouxe, parece que os peixes daqui são mais espertos que os da praia e não caem nessa.
— Sei. E teus avós, como estão?
— Tão bem. Quer falar com eles?
— Quero.
Chamei a vó Lina e voltei para casa carnear.
Após falar com a minha mãe, vó Lina me chamou para conversarmos debaixo do eucalipto e me contou:
— Filhinho, eu fico tão sentida de te dizer isso, barbaridade, nem me fale...
— O que vó?
— Tua mãe quer que você volte.
E ela chorou. Com as mãos cruzadas e girando os dedos uns sobre os outros, percebi que tinha vontade de pedir para que eu ficasse, mas decerto minha mãe fora tão resoluta ao telefone que ela nem teve coragem. Abraçou-me.
— E quando ela quer que eu volte, vó?
— Ela não disse. Falou que vai te ligar de noite. Mas que é pra eu já arrumar tuas coisas pra você voltar.
Quando eu parti de mudança com a família, três anos antes, talvez por ser mais novo, talvez por estar com meus pais, eu não percebi que a fazenda estava esboroando. Sempre havia a esperança de voltar, de rever. Eu tinha a impressão que a São João era eterna. Agora, seja por ter ouvido diversas vezes da minha mãe nos últimos tempos que aquilo estava se acabando, seja pelas conversas que tive com o Zé Maria e com o Libino, ou ainda pelo que eu próprio pude ver naqueles meses que ali passei, eu sabia que não voltaria mais àquela casa.
Por isso aquela tarde passei percorrendo cada canto do pátio: fui ao jardim, sentei-me debaixo da cerejeira e contemplei longamente os campos até onde a vista alcançava, fui ao galinheiro, cada tábua velha, cada pedra da calçada eu tentava fixar; a taipa, o pomar, o taquaral, as mangueiras, a balança, o tronco... Desci até a lagoa com a intenção de pescar uma última vez, mas me pareceu desperdício de tempo: o que era preciso era ver, e fixar na retina. Deitei-me na grama e fiquei a olhar o céu. Sentei-me quando uma butuca veio pousar na minha perna; espantei-a antes que me picasse. Os patos desciam em fila e iam calmamente para dentro d’água. No outro lado da lagoa, os cavalos pastavam.
Tocou o sino da janta. Eu aguardava o telefonema, que não demorou. Minha mãe queria que eu partisse no dia seguinte. Passei o telefone para minha vó e ficou acertado: amanhã. Eu deveria ir no ônibus do fim da tarde, para ela me pegar na rodoviária de manhã bem cedo.
No dia seguinte, decidi percorrer os campos a cavalo. Com a minha égua Pimenta, saí sozinho, bem cedo, e fui até as divisas onde ainda era da São João. Lá na Chapada de baixo, cavalguei por entre o rebanho, agitando o chapéu, e pus a boiada para correr, pois queria vê-los uma última vez movendo-se em ondas no meio do pasto. Subi o morro do corvo e vi do alto — pela última vez — toda a São João. Levei a égua beber água no açude onde tantas vezes eu fora pescar com meu pai. Meu pai tinha o seu pesqueiro de costume. Sentava ali e ficava fumando, com a vara largada na margem. Nunca pescava nada. Já eu dava a volta em todo o açude, procurando um cardume, batendo a isca na flor d‘água para atiçar as traíras. Hoje vejo que talvez ele nem gostasse de pescar, gostava mesmo era de ficar sozinho, ou de me ver dando a volta no açude, radiante a cada peixe que puxava para fora da água.
Depois voltei, almocei e terminei de arrumar minhas coisas. Dei a espingarda para o Carlinhos e pedi que minha vó sempre comprasse chumbinhos e o deixasse caçar nos fins de semana. Depois despedi-me de todos.