7.
Domingo
A LOCUTORA PARECIA GRAVE, QUASE TRISTE. Ástrós Einarsdóttir costumava gostar da mulher. Quando noticiava alguma coisa alegre, como um festival na cidade ou a inauguração de uma nova estrada, não disfarçava a sua satisfação. Ocasionalmente, exagerava um pouco, soando como se tivesse algum interesse pessoal no assunto, como se estivesse encarregado das festividades ela mesma ou impacientemente à espera de um novo troço de estrada de grande utilidade. Mas adotava um tom mais sombrio quando tinha notícias sérias a dar e falava devagar para assegurar que cada palavra seria entendida.
Como agora.
Neste caso, o discurso lento também podia ter o objetivo de prolongar o anúncio, uma vez que a notícia era breve e muito pouco informativa: uma mulher morrera em Reiquejavique na noite de quinta-feira e a Polícia não descartava a hipótese de assassínio. Recusavam-se a divulgar mais pormenores nesta fase. E dado que parecia não haver mais nada a dizer, ela interrogava-se porque teriam eles sequer noticiado o incidente. Porque é que as pessoas estariam tão desesperadas por saber de um possível homicídio? Não poderiam esperar até os factos estarem estabelecidos? Ástrós sentia que não ganhara nada ao ouvir as notícias.
Levantou-se para baixar o volume antes da informação desportiva, que lhe feria os ouvidos tanto quanto giz a chiar num quadro, um som a que nunca se habituara em todos os seus anos de ensino. Apreciara o aparecimento de marcadores de quadros e nunca se importava quando alguém se esquecia de lhes colocar a tampa e a tinta secava. Tudo era melhor que o barulho áspero, a pele seca e o pó associados ao giz. Desligou o rádio e sentiu-se logo melhor. Esta era a única mudança positiva que resultara da morte do marido, há quase dois anos. Ele costumava sentar-se colado ao rádio enquanto era noticiado o que parecia ser o último resultado desportivo do mundo, sempre com o volume no máximo. A chegada da Internet e a possibilidade de ver os resultados em silêncio não fez nenhuma diferença. Não, ele insistia em ouvir os resultados à moda antiga.
Mas ela sentia falta da companhia acolhedora, do amor e do calor, de tal modo que teria de bom grado uma emissão de rádio desportiva o dia todo a ressoar nos ouvidos, se isso o trouxesse de volta.
O telefone de Ástrós apitou na cozinha, onde estava pousado ao lado dos restos do almoço dela. Preparara a comida de uma forma atabalhoada, com nenhum sentido de antecipação. Desde que deixara de trabalhar que não havia diferença entre um dia de semana e de fim de semana. No passado, teria gastado tempo a pôr a mesa de forma harmoniosa, deixando um lugar para os jornais ao lado do prato. Tê-los-ia folheado enquanto comia, bebendo depois um simpático cafezinho. Mas agora havia uma interminável lista de alimentos pouco saudáveis que o médico a proibira de comer, incluindo manteiga, sal e gordura; ou seja, tudo o que tornava a comida interessante. Como tal, não valia a pena preocupar-se com as refeições: queijo fresco com pepino e pão de espelta nunca seria particularmente apetitoso, independentemente daquilo que ela acrescentasse para disfarçar.
O ecrã do telefone brilhou a azul e ela pegou nele com curiosidade. Atualmente, poucas pessoas lhe ligavam a um domingo. Ou em qualquer outro dia, para dizer a verdade. E era ainda menos comum receber uma mensagem. Nem a irmã, nem os amigos usavam este método de comunicação. Viam tão mal quanto ela e tinham dificuldade em encontrar os botões certos. Sentia uma certa satisfação presunçosa por ser a única que conseguira descobrir como desligar o corretor ortográfico, que estava sempre a tentar antecipar o que ela queria escrever.
Ástrós abriu a mensagem. Devia ser engano. Seria possível que o texto automático também sugerisse números? «39, 8, 92 · 5, 3—53, 8, 8, 66 · 83, 43, 1.» Não se parecia com nenhuma sequência de que se lembrasse; nenhum número de telefone, de cartão de crédito ou de lotaria. O remetente era anónimo. Talvez fosse alguma espécie de vírus de computador, pois o telefone era um smartphone.
Em vez de perder mais tempo a especular, decidiu ligar para a operadora telefónica. Após uma longa espera, foi atendida por um jovem que falava muito depressa. Explicou o que acontecera e respondeu às questões dele, mas ele parecia incapaz de entender que ela estava lúcida. Teve de se repetir várias vezes e responder a perguntas irrelevantes. O telefone apitou outra vez a meio da conversa deles, o que a confundiu, especialmente porque o jovem dizia não ter ouvido nada. No fim, ao concluir que isto era inútil, desligou, ainda sem saber se o telefone tinha um vírus. Por aquilo que entendera, poderia fazer um pedido especial — num dia útil — para que a mensagem fosse localizada, apesar de, pela forma como o jovem falou, ter parecido que o processo não era assim tão simples. De qualquer modo, ela não estava muito interessada em descobrir quem a enviara; só queria saber se o telefone precisava de ser analisado por causa de vírus.
O apito anunciara uma segunda mensagem, que consistia numa nova sequência de números, igualmente incompreensíveis: «39, 8, 92 · 75 · 10, X, 65—5.» Não podia ser um bom sinal. O que quer que o rapaz tivesse dito, a porcaria do telefone devia estar cheio de vírus. Pensou em ligar de novo para a operadora, mas desistiu.
O telefone apitou uma terceira vez. Outra mensagem do mesmo remetente anónimo: «66—39, 8 · 90, 63—92 · 42—8, 85, 108.» Ástrós fechou apressadamente a mensagem não fosse o vírus espalhar-se. Depois, para verificar se o telefone estava a funcionar corretamente, ligou a uma amiga. Mal a conversa começou, arrependeu-se da sua precipitação. O telefone parecia funcionar perfeitamente, mas agora estava condenada a ouvir a descrição da amiga de um cruzeiro que ela e o marido estavam a planear. Ástrós não conseguiu evitar um lampejo de inveja, apesar de a viagem só ser daí a oito meses. No fim, conseguiu atalhar a conversa a meio de um solene relato de quanto mais custaria reservar uma cabine com varanda, mentindo e dizendo que estava alguém a bater à porta. Ástrós pensou que não iria telefonar à amiga nos próximos tempos, pelo menos enquanto não lhe passasse toda aquela excitação.
O ecrã ficou negro depois de Ástrós ter desligado e o telefone parecia perfeitamente normal. Ainda assim, pegou nele e pô-lo no silêncio. No dia seguinte, iria levá-lo à loja e pedir que lhe dessem uma vista de olhos. Conseguiriam descobrir o problema e resolver o assunto, se tivesse um vírus. Afinal de contas, ela também não tinha nada melhor para fazer.
Mais uma vez, arrependeu-se de ter deixado de dar aulas. Aproveitara as benesses da reforma antecipada dos trabalhadores da função pública, mas, um mês depois de se demitir, o marido morrera de ataque de coração. Após recuperar do choque e do desgosto iniciais, voltou à escola à qual dedicara a maior parte da carreira e ofereceu os seus préstimos. Mas, na altura, a escola já contratara um jovem para o lugar dela e ela já não era necessária para ensinar aos alunos os mistérios da biologia.
A memória era ainda dolorosa o suficiente para lhe fazer afluir o sangue ao rosto enquanto olhava o telefone. Na altura, balbuciara que sim, claro que sabia do novo professor, mas que queria simplesmente oferecer-se como substituta; para quando o jovem estivesse doente, por exemplo, ou precisassem de um examinador. Infelizmente, Ástrós falara com a sua característica simplicidade ao pedir o emprego de volta e não houvera hipótese de as suas palavras terem sido mal interpretadas. Desde então, evitava o antigo local de trabalho. Não suportava a ideia de dar de caras com o responsável dos Recursos Humanos ou algum dos seus colegas, consciente de que a história devia ter-se espalhado.
Agora que o rádio estava desligado e que já não estava a falar ao telefone, o apartamento parecia desconfortavelmente silencioso. Até conseguia ouvir as pessoas lá em baixo. As relações com os vizinhos não eram amigáveis desde que enviuvara. Tudo começara mesmo antes da morte do marido, quando não conseguiam chegar a acordo sobre a cor com que pintar o edifício. Ástrós, que não estivera no seu melhor depois do luto, insistira no tom que ela e o marido queriam, apesar de ela não ter uma opinião muito firme sobre o assunto. Quando a dor apertou, considerou a disputa como uma forma de homenagear a memória do marido. Com o passar do tempo, percebeu o quão tonto era isso, mas aí já era demasiado tarde para desfazer o erro. As relações entre os andares eram irrecuperáveis.
A querela sobre a cor da tinta acabou por esmorecer, mas não demorou muito a que todos se desentendessem outra vez. O casal do andar de baixo alegava que ela não fazia a sua parte de manutenção do jardim e das áreas comuns. Mesmo que se esforçasse, eles criticavam sempre. Tentou conversar sobre o assunto para chegarem a um entendimento — ela cuidaria do jardim e manteria limpa a casa do lixo, se eles dessem um jeito na pintura, mudassem as lâmpadas e mantivessem o chão sem neve. O custo com pessoal seria dividido a meias. Mas isso teve o efeito contrário. A mulher exclamara que eles tinham ficado a perder — o verão, em que o jardim precisava de cuidados, só durava três meses por ano, e a casa do lixo também não exigia grande esforço. Mas limpar neve, mudar lâmpadas e a manutenção da pintura envolvia muito mais trabalho. Ástrós tentou dizer que havia apenas uma luz partilhada e que poderia tratar disso. Mas não poderia varrer neve.
Como o casal não queria cooperar, sugerira contratarem alguém para tratar de tudo. E foi aí que as coisas descambaram mesmo. A parte frustrante era que, quando o marido era vivo, haviam investido muito mais na manutenção, na limpeza da neve e na jardinagem do que os vizinhos. Mas eles tinham memória curta. As pessoas podiam portar-se de forma mesmo mesquinha. O diabo do homem tivera o desplante de lhe atirar à cara, no auge da discussão, que ele e a mulher sempre tinham tratado melhor das áreas comuns e que não iriam aguentar mais. Falou com tal convicção que Ástrós vacilou. Mas apenas por um momento. Claro que ela e Geiri tinham feito bastante mais.
A memória deu-lhe vontade de bater com o pé no chão na esperança de aborrecer o casal, mas controlou o impulso. Não porque tivesse pensado que era má ideia, mas porque o telefone na mesa se iluminou de repente. Ástrós não resistiu a dar uma olhadela rápida. Outra mensagem, de um anónimo. Assumiu que todas deviam vir da mesma pessoa, ou seria demasiada coincidência. Para seu alívio, o texto consistia em letras desta vez, com a breve mensagem: «Não falta muito para a minha visita — empolgada?»
Visita de quem? Não estava à espera de ninguém. Ou estava? Não se lembrava de ter feito convites. No corredor, olhou-se ao espelho e viu que precisava de se arranjar um pouco se ia receber convidados. Que pena não saber quando chegaria o visitante misterioso. «Não falta muito para a minha visita.» Isto podia querer dizer tanta coisa, dependendo de onde estava o remetente na altura. No campo? No estrangeiro? Na rua de cima?
Ástrós entrou apressadamente na casa de banho e saltou para dentro do duche, depois de uma breve luta consigo mesma sobre se teria tempo. Não queria abrir a porta de roupão, cabeça enrolada numa toalha e cara sem maquilhagem, mas decidiu ir em frente na mesma e tentar bater o seu próprio recorde de tempo. Enquanto se olhava no espelho embaciado, limpando o vapor, sentiu-se deprimida com o seu destino solitário. Pela forma como estava a comportar-se, parecia que não via vivalma há dias ou mesmo semanas. Bom, este visitante misterioso que omitira o nome podia simplesmente esperar lá fora até que ela estivesse pronta.
Foi confrontada ao espelho com a cara estranha que, nos últimos anos e de forma lenta porém inexorável, substituíra a sua. Era o rosto de uma mulher muito mais velha, com rugas à volta dos olhos e da boca, vincos profundos na testa e pronunciados papos debaixo dos olhos. Mas quem és tu? Quem é que te convidou para a minha festa?
Com a base na mão, Ástrós lançou-se ao trabalho de esconder os piores sinais do envelhecimento. Trabalhou metodicamente, sem pressa. Tinha um mau pressentimento de que a visita não iria trazer-lhe grande alegria. De onde teria vindo esse pensamento? A luz verde do ferro de alisar acendeu-se. Estudou o rosto com alguma satisfação, deixou de lado a maquilhagem e começou a tratar do cabelo, madeixa a madeixa. O cheiro quente de cabelo chamuscado ajudou-a a relaxar. Apesar de a visita poder ser agradável ou não, ao menos ela pareceria bastante decente.