8.

DO EXTERIOR, A CASA ERA IGUAL a tantas outras construídas nos anos sessenta e setenta. Betão simples, um só piso, à volta de cento e oitenta metros quadrados, com um telhado inclinado. A disposição interior fora desenhada para corresponder aos requisitos de outra época: um quarto principal, uma sala de jantar, uma cozinha acanhada e vários quartos de criança pequenos com armários a condizer, que refletiam a escolha limitada de vestuário infantil que havia na altura. Era numa casa daquele tipo que, enquanto criança, Freyja sonhava viver quando crescesse, com um marido vagamente imaginado e duas crianças lindas, uma rapariga e um rapaz. E um gato e um aquário de peixes também. O oposto total da sua situação atual.

Vasos com restos murchos das flores do verão anterior ladeavam o portão, mas estas eram as únicas lembranças de mortalidade. A casa estava inocente no seu terreno, como se nada ali se tivesse passado. Se ela não soubesse, teria assumido que a vida decorria normalmente, lá dentro; não havia fita amarela da Polícia — nem mesmo, como ela esperava, diante da porta da frente. Freyja deu por si a pensar se o arquiteto que desenhara a casa tendo em mente uma família nuclear feliz, teria mudado alguma coisa se tivesse sabido da fatalidade que aguardava o futuro morador. Teria desenhado as janelas maiores para facilitar a fuga de Elísa, posto grades, instalado enormes cercas de segurança à volta do jardim? Ou dado à casa uma fachada mais hostil, para dissuadir a família de a comprar? Ela estudou o edifício através da janela suja do carro, mas não chegou a nenhuma conclusão. Estacionara na estrada, com medo de contaminar alguma prova ainda por descobrir no caminho de cimento, mas dado que a área de estacionamento não estava vedada e que já havia ali um carro da Polícia, o seu cuidado seria provavelmente desnecessário. Ainda assim, não queria arriscar uma reprimenda só para se poupar a mais alguns passos.

Desligara a ignição, mas estava ainda com a chave na mão, relutante em enfrentar o frio lá fora, apesar de não estar muito mais calor dentro do chaço velho do irmão. O aquecimento morrera no caminho e as janelas tinham gelo por dentro. O interior fedia a beatas de cigarros antigas no cinzeiro que ela não limpara, e quanto mais frio fazia, pior cheirava. Não ajudava o odor enjoativo que vinha da árvore de Natal de cartão perfumado pendurada no retrovisor. O sabor dos ovos estrelados dessa manhã subiu-lhe à boca, chocando desagradavelmente com o perfume de pinho artificial. Deu um longo gole na coca-cola para afastar a náusea que aí vinha. O refrigerante gelado chocalhava na lata, mas escorregou-lhe suavemente pela garganta. Sentiu-se um pouco melhor, e melhor ainda quando saiu lá para fora e respirou o ar fresco e invernoso.

Bolas, estava frio. Não estava vestida para visitar locais de crime ou andar na rua. Quando recebeu a chamada, estava a caminho de um almoço com amigas na cidade e as roupas tinham sido escolhidas para alcançar o equilíbrio; nem muito desleixada, nem muito arranjada. No entanto, estaria provavelmente mais perto da segunda hipótese.

Atrapalhou-se com o fecho do blusão, por causa das luvas, mas conseguiu corrê-lo até ao pescoço. Depois, olhou melhor para a casa. Poderia jurar que havia ali um ambiente ameaçador, que a luz cinzenta de inverno tinha uma tristeza e uma frieza maior aqui do que nas casas vizinhas. Mas estava apenas a fantasiar. Tentando afastar o desconforto, pôs as chaves do carro no bolso do blusão e concentrou-se em respirar calmamente. Pequenas nuvens acompanharam-lhe a respiração e a neve no solo estalou debaixo dos pés. Fora isso, reinava um silêncio mortal. O silêncio denso pertencia ao inverno; seria impensável no verão. Não havia pássaros a cantar nas árvores nuas e nada se mexia na quietude. Freyja poderia estar sozinha no mundo quando subitamente ouviu o bater de uma porta ali ao pé, seguido de rápidas passadas. Alguém prestes a perder o autocarro, talvez? Olhando em redor, Freyja viu que era uma mulher. Ela estava a meio caminho da casa quando a mulher a apanhou.

— Olá. Desculpe-me.

Freyja estacou e voltou-se. A mulher não tivera tempo de se agasalhar decentemente antes de sair para a rua. Estava ali a bater o dente, dentro de uma gabardina leve, adequada a uma estação mais quente. O cabelo estava penteado para trás num bizarro rabo de cavalo, e apenas um dos olhos estava pintado, dando-lhe uma aparência desigual.

— Desculpe, sou a Védís. Moro aqui ao lado. Fui eu quem encontrou os rapazes.

Freyja olhou para a casa dela, igual à de Elísa e Sigvaldi, e viu uma silhueta na janela. O marido, possivelmente. Ele afastou-se quando viu que Freyja o observava. Ela desviou a atenção para a mulher, que retomara a conversa:

— Nós… Eu… O resto das pessoas que vivem aqui na rua, quero dizer… estamos muito perturbados.

Freyja estava em silêncio, sem saber como responder, o que fez com que a mulher ficasse ainda mais constrangida. Freyja quase sentiu pena; não havia dúvidas de que parecera uma boa ideia sair de casa a correr na esperança de saber novidades, mas, como muitas decisões precipitadas, não pareceu tão inteligente na prática.

— Só gostava que pudesse dizer-me como é que estão o Sigvaldi e as crianças. Não deixámos de notar que vocês andaram por aqui ontem e anteontem, mas ninguém nos disse nada. Fizeram-me um monte de perguntas, mas não responderam a nenhuma das minhas. Depois, ouvi falar de um possível homicídio no noticiário da hora do almoço e quase tive um ataque cardíaco. É o mesmo caso?

— Temo não poder ajudá-la. Não sou da Polícia.

— Oh? — A mulher franziu o sobrolho. — Então, de onde é?

Freyja respondeu firmemente:

— Sou funcionária pública.

Não queria referir a Comissão de Proteção de Menores nem a Children’s House. Só daria à rua mais motivo de fofoca e poderia levar a mal-entendidos. Quando as pessoas ouviam falar de serviços sociais, pensavam logo em pais inaptos e toda a gente sabia que a Children’s House estava envolvida em casos de abuso sexual. A Polícia iria divulgar mais pormenores em breve e a mulher poderia obter a informação que desejava.

— Temo não poder comentar a razão da minha presença aqui.

A mulher fez uma cara como se Freyja estivesse deliberadamente a excluí-la.

— Bom, nós sabemos que alguma coisa aconteceu. — Só faltou um petulante «para sua informação». Mas, em vez disso, a mulher continuou: — Vimos a ambulância a chegar. E a partir.

Abriu a boca, depois fechou-a de novo. Não havia como fazer confusão quando um morto era levado para uma ambulância; os doentes ou os feridos não tinham a cara tapada.

— Está a deixar-nos loucos não saber o que se passou. Eles são mais que meros vizinhos, sabe? A Elísa era uma boa amiga minha.

A mulher parecia estar nos seus trinta e poucos, a mesma idade de Elísa, pelo que isto bem poderia ter sido verdade. Freyja reparou que ela se referira a Elísa no passado. A mulher tremia de frio, ou talvez fosse um arrepio.

— Quem é que ia na maca?

— Lamento, mas não posso comentar. Tenho a certeza de que mais informação será dada em breve. — Freyja manteve uma expressão neutra, para que a mulher não pudesse ler-lhe o rosto.

Distraindo-se por um momento, a mulher olhou para algo atrás de Freyja, depois outra vez para ela.

— Estou capaz de me queixar da forma como temos sido tratados. Especialmente eu. — Falava depressa agora, como que a adivinhar que a conversa iria ser abreviada. Quão presciente.

— Não posso impedi-la.

A fúria que deformara brevemente as feições da mulher dera lugar à resignação.

— Claro que não o farei. Só pensei que seria uma cortesia básica que me fossem informando do que se passa. Não é como se eu fosse uma estranha ou não tivesse nada a ver com o assunto. Vivo na casa ao lado e fui eu quem encontrou os rapazes. Por isso estou envolvida, mais ou menos… pelo menos como testemunha; fui bastante interrogada pela Polícia. Não existe a obrigação de manter as testemunhas informadas sobre os casos em que estão envolvidas?

— Temo que as coisas não funcionem assim. — Freyja desejou que a mulher se fosse embora antes que ela congelasse no chão. — Tenho a certeza de que eles falarão consigo quando as coisas estiverem um pouco mais calmas. Mas eu não faço parte da equipa de investigação, por isso não posso ajudá-la. Desculpe.

Freyja virou costas, pondo fim ao diálogo. Atrás dela, ouviu passos a afastarem-se. Agora podia ver o que chamara a atenção da mulher: Huldar estava na porta da frente, olhando-a de uma forma hostil. Os ovos dessa manhã voltaram novamente a subir-lhe à garganta. Não lhe ocorrera que ele ali estivesse. Muitos outros polícias podiam ter vindo, e ela assumiu que ele a evitaria como a peste depois do encontro constrangedor na Children’s House. Talvez ele fosse ainda mais estranho do que ela pensava. Freyja ergueu o queixo e devolveu o olhar reprovador.

Ao aproximar-se, notou por cima do ombro dele uma placa pintada à mão com os nomes da família. As flores decorativas nos cantos tinham desbotado até restar apenas uma pétala, mas as letras negras estavam intactas e o nome de Elísa estava desconfortavelmente evidente na segunda linha. Tirando isso, havia pouco a ver no alpendre, apenas dois trenós coloridos encostados à parede, um empilhado em cima do outro, e uma pá de neve novinha em folha apoiada num canto, que seria pouco usada nos próximos tempos. Limpar o caminho de acesso à casa não seria uma prioridade num futuro próximo.

— Olá.

Freyja não estendeu a mão. Não queria tocar no homem e, de qualquer forma, seria ridiculamente formal dadas as circunstâncias.

— Olá.

Huldar soava enervado. Devia estar cansado, a avaliar pelas sombras negras debaixo dos olhos, as roupas amarrotadas e maltrapilhas. Parecia que não mudara de roupa desde o fiasco do dia anterior na Children’s House. Mas quando ele se desviou para deixá-la entrar, ela percebeu que o seu mau humor não se devia apenas à falta de sono.

— Quando propus que nos encontrássemos aqui, não esperava que te armasses em porta-voz da Polícia para os vizinhos, senão nunca teria concordado com isto. Somos capazes de tratar nós mesmos das nossas relações públicas.

Indignada, Freyja respondeu:

— A única coisa que disse à mulher foi que não podia comentar.

Huldar enganara-se.

— Oh. — Tossiu. — Desculpa. Aquele casal está à nossa espera desde que aqui chegámos. Estão roídos de curiosidade. — Sorriu timidamente. — Já tive de dar na cabeça de tantos dos meus agentes por alimentarem conversinhas com eles que saltei automaticamente para o mesmo modo.

— Não interessa.

Mas interessava. Freyja não suportava críticas, principalmente vindas dele, quando nem sequer as merecia. Ela viera buscar roupa e outros bens essenciais para as três crianças. Uma vez que nenhum dos familiares, nem mesmo o pai, estavam autorizados a entrar em casa, Freyja concordara em ajudar, apesar de isso ir atrasá-la para o almoço com as amigas. Na ótica dela, estava a fazer um favor à Polícia e por isso esperava uma receção diferente.

— Deixa estar, não te preocupes.

Teve o cuidado de não chocar com um cabide carregado de casacos, chapéus de lã e cachecóis, a maioria de cores vivas e infantis. O chão da entrada estava coberto de sapatos, como se as crianças os tivessem descalçado à balda ao entrarem. Freyja olhou à volta, à procura de um sítio onde deixar os seus próprios sapatos. Tudo isto era novo para ela; nunca antes visitara um local de crime e não fazia ideia do protocolo.

— Devo descalçar os sapatos?

— Não, a não ser que queiras. Mas não aconselho. O chão não está propriamente limpo depois do nosso pessoal ter andado aqui para trás e para a frente.

Ele fitou, fascinado, os sapatos dela. Era provavelmente um estratagema para evitar olhá-la nos olhos. O óbvio desconforto dele fê-la recuperar a autoestima e encheu-a de satisfação. Ele merecia sofrer.

Depois, já cansada de olhar para o alto da cabeça dele, Freyja tossiu:

— Não é melhor despacharmos isto? As pessoas estão à espera. Por onde começo?

Isto não era totalmente verdade; ninguém estava ansiosamente à espera das roupas.

— O quê? Oh, sim.

Huldar levantou a cabeça tão depressa que Freyja ficou com medo de que tivesse partido o pescoço. Ele abriu a porta da área de habitação e ela seguiu-o, tentando não recordar a noite que tinham passado juntos. Ao sentir-se corar, agradeceu a Deus pelo facto de ele não conseguir ver. Raio do homem.

Ela concentrou-se na casa. Não parecia ter sido remodelada como tantas nos dias de hoje. O teto era revestido de painéis amarelo-escuros que, sem dúvida, já deviam ter sido bem mais claros. A iluminação era também antiquada: projetores enormes e abaulados, encastrados no revestimento. Era óbvio pela textura das paredes que o papel de parede tinha sido pintado por cima. Se este fosse da época em que a casa fora construída, era uma pena ter sido pintado: os padrões arrojados estavam de novo na moda.

Huldar voltou-se e abriu a boca, mas Freyja antecipou-se propositadamente antes que ele pudesse falar, perguntando a primeira coisa que lhe veio à cabeça:

— Eles tinham uma boa situação financeira?

A mobília dava a impressão de que Elísa e o marido viviam confortavelmente, apesar de nada parecer caro. Havia uma manta amarrotada no sofá em frente da televisão, um grande livro de fotografias, uma meia de criança e um controlo remoto. A outra meia estava no meio dos Cheerios espalhados sobre a mesa de apoio, ao lado de um jornal dobrado, uma taça com restos de pipocas e um copo de água meio vazio. Havia peças de Lego espalhadas pelo chão. Freyja suspeitou que Elísa teria tirado cinco minutos para dar um jeitinho nisto se tivesse suspeitado do que iria acontecer. Era óbvio que fora apanhada desprevenida. Talvez fosse por isso que Freyja gostava de ter tudo arrumado: não queria que estranhos lhe entrassem em casa se esta estivesse desarrumada. Ocorreu-lhe que seria melhor não morrer enquanto estava a viver no apartamento do irmão. Ainda não tivera força de vontade para dar uma volta àquilo, apesar de ter limpado a sala o suficiente para receber visitas sem se sentir embaraçada.

— Eles viviam bem, penso eu. Os extratos bancários indicam que pagavam as contas todos os meses, mas não tinham grandes poupanças. É pouco provável que o crime tenha sido cometido por dinheiro. — Huldar olhou por cima do ombro ao entrar no hall dos quartos, parecendo aliviado por ter um assunto neutro para falar. — A mulher não tinha seguro de vida, o que descarta a hipótese de assassínio por motivo de herança. Dificilmente o marido iria matá-la por causa da parte dela da casa. Está hipotecada.

Ele parou no primeiro andar. O chão em frente estava coberto de uma fina camada de pó, tal como o puxador da porta.

— Encontraram impressões digitais?

— Não sei ainda, mas provavelmente não. A maioria das coisas aqui estão cheias de impressões da família, e tudo indica que o homem estivesse de luvas. Pelo menos, as impressões mais recentes nos puxadores das portas dos quartos das crianças eram delas ou de Elísa. Se o assassino estivesse de mãos nuas, teríamos encontrado mais um conjunto de impressões. Ele trancou os rapazes no quarto. E ainda bem, porque assim protegeu-os do horror de encontrar o corpo da mãe. — Huldar conteve um bocejo. — A porta para o quarto de Margrét também estava trancada, mas, como sabemos, ela não estava lá dentro. Havia alguns animais de pelúcia debaixo do edredão, o que pode ter enganado o assassino se ele espreitou antes de trancar o quarto. No escuro, poderia parecer que uma criança estava deitada ali. — Os olhos dele encontraram-se com os de Freyja, o branco coberto por uma teia de veias vermelhas.

— Trancarias os teus filhos nos quartos à noite?

— Não tenho filhos.

Ele pareceu satisfeito com a resposta.

— Eu também não. — Sorriu. — Tanto quanto saiba.

Freyja não devolveu o sorriso. Estaria ele a tentar fazer-se passar por garanhão?

— Eu tenho a certeza de que não tenho. Seria impossível não reparar.

— Claro que sim. — Ele parecia não notar o sarcasmo dela. Demasiado cansado, provavelmente. — Mas se tivesses filhos, eras capaz de os trancar nos quartos à noite? E se houvesse um incêndio?

— Sim, não me parece que os trancasse.

— Exato. Por isso, é improvável que Elísa o fizesse, e o marido concorda. Eles não tinham o hábito de o fazer.

As portas eram as originais, assim como o resto do equipamento. Freyja estacou, perplexa, diante do buraco da fechadura.

— Como é que os rapazes saíram, se estava fechada por fora? Tinham uma chave?

— Não, o rapaz mais velho saiu pela janela e convenceu o mais novo a segui-lo.

— Onde é que está a chave agora?

— Na esquadra. Só encontrámos uma. Estava na porta dos rapazes. A mesma chave funciona em todas as portas interiores. As restantes devem ter-se perdido. Sigvaldi diz não se lembrar de quantas eram, porque quase nunca eram usadas. É possível que o assassino tenha levado uma ou duas com ele. Mas não sei por que razão o faria.

— Como é que ele entrou?

— Ou a porta da rua estava destrancada ou ele tinha uma chave, porque não existem sinais de arrombamento. — Ele abriu a porta de um quarto. — Aqui estamos. Podes mexer no que quiseres. Já analisámos tudo mais do que uma vez.

Os objetos do quarto estavam cobertos do mesmo pó. Era como ser a primeira pessoa a entrar num túmulo fechado há séculos; um túmulo que também servia de quarto de brinquedos. O quarto era uma confusão de brinquedos e roupas de criança, mas Freyja reparou que algumas ainda estavam dobradas. Assumiu que o caos fora provocado pela Polícia. O quarto não poderia ter estado assim antes. Ao ver o guarda-fatos vazio com a porta aberta, calculou que as roupas bem dobradas estivessem empilhadas nas prateleiras antes de a Polícia as ter atirado para o chão.

— Devo escolher roupas no meio deste amontoado?

— Diria que sim.

Huldar apoiou-se na ombreira da porta, observando-a enquanto ela dava meia-volta, à procura das roupas com menos pó. Freyja arrependeu-se de ter vestido umas calças tão apertadas; uma saia comprida teria sido mais apropriada. A ideia de que ele pudesse pensar que ela se vestira assim para impressioná-lo era intolerável. Sentindo-se inibida com o olhar dele, desejou poder pedir-lhe que saísse do quarto. Mas antes de conseguir ganhar coragem, perdera a oportunidade.

— Há mais algumas roupas na lavandaria, mas não estão muito melhores. E, ainda por cima, estão sujas. — Ele sorriu, o cansaço a desaparecer do rosto por um momento.

— Certo.

Freyja sacudiu o pó para recolha de impressões digitais de dois pares de calças e camisas, inclinando-se para trás a fim de evitar a consequente nuvem de poeira. Vasculhou novamente no amontoado até encontrar algumas cuecas e meias, e depois parou. Poderia sempre voltar noutra altura.

— Isto serve. Próximo quarto, por favor.

Huldar acompanhou-a pelo corredor até ao quarto de Margrét. O rastro de caos deixado pela Polícia não era menor aqui, mas como o quarto era maior, a confusão não parecia tão impressionante. As roupas também eram diferentes: havia vestidos femininos no meio de calças de ganga, e a maioria das t-shirts tinham gatos e outros animais fofinhos. Nada de dinossauros ou crocodilos. Freyja deitou logo as mãos ao trabalho; o pó começara a irritar-lhe o nariz e os olhos, e ela queria ir-se embora. Depois de encontrar a mala da escola da rapariga e algumas roupas, faltava apenas recolher as escovas de dentes e alguns elásticos de cabelo que tinham sido especificamente pedidos.

Huldar aclarou a garganta.

— A propósito, o meu nome é Jónas. Huldar Jónas. Não foi uma mentira total. E nasci e fui criado em Egilsstadir.

Freyja paralisou diante de uma pilha de roupa. Esperava encontrar por baixo as coisas da escola da rapariga. Endireitando-se, sorriu, trocista, a Huldar.

— Ainda bem para ti. Não me digas que também és carpinteiro nas horas vagas…

Huldar parecia consternado.

— Não. Mas o resto era verdade. Mais ou menos.

Freyja voltou à pilha.

— Também não me interessa nada. E agradecia que não voltasses a referir o incidente.

Estava contente que ele não conseguisse ver-lhe as bochechas afogueadas. Se ao menos conseguíssemos apagar memórias indesejáveis, como velhos ficheiros de computador.

— Prefiro esquecer. Não foi assim tão memorável, o que torna tudo mais fácil. Espero que sintas o mesmo.

— Só quero desculpar-me e explicar.

— Obrigada, mas não obrigada. Não há necessidade de desculpas.

Com esforço, impediu a voz de a denunciar. A verdade é que ainda sofria por causa daquela estúpida aventura; parecera uma cena de um filme mau. Acordar e estender o braço para encontrar uma cama vazia e fria, onde deveria estar o seu amante. Nenhum cheiro a café da cozinha ou crepitar de bacon. Nenhum bilhete. Nada. O acordar mais humilhante que já tivera. Regra geral, os homens que convidava a partilhar a cama não tinham pressa de amarrar os lençóis uns aos outros e fugir pela janela. Bom, pelo menos ele usara as escadas.

— A questão é que quando digo às mulheres qual é o meu trabalho…

— Sim, ok. Tenho muita pena de ti.

Freyja agarrou num pedaço de papel que estava escondido debaixo de uma camisola às riscas. Era um desenho assinado «Margrét» num canto. Examinou-o, voltando-o ao contrário.

— O que é isto?

— Parece um desenho da rapariga. — Huldar pareceu aliviado com a mudança de assunto. — Não te preocupes com isso. Tirámos tudo o que era significativo. O quarto está cheio de desenhos da miúda. A cozinha também.

Olhando à volta, Freyja descobriu mais pedaços de papel. Alguns mostravam cenas convencionais do sol a pôr-se atrás de duas montanhas altas, mas não tardou a encontrar outro parecido com o que tinha na mão.

— Isto não é um desenho normal de criança. Nem este.

— Normal? O que é um desenho normal? — Huldar tirou-lhe o papel. — É uma casa e um homem. Não vejo nada de estranho nisto.

— Parte do meu trabalho é analisar desenhos de crianças. Isto não é um desenho normal. Deverias levar os dois. — Freyja agachou-se. — Aconselho-te a recolhê-los a todos e mandá-los analisar. Podemos ajudar, se quiseres.

Huldar examinou o desenho com ceticismo. Freyja levantou-se e aproximou-se.

— Isto é a casa dela. Esta casa em que estamos. Consegues ver, claro.

— Claro.

— E esta pessoa aqui… — Freyja apontou para a figura negra que estava desenhada muito longe em relação à casa. — Vês a maneira como está, aparentemente a observar a casa? Os braços estão estendidos, como se ele estivesse prestes a começar uma luta. A cor preta significa que é um homem mau. É bem possível que ela tenha desenhado alguma coisa que, de facto, testemunhou. Talvez o assassino tenha andado a perseguir a família, a examinar o terreno ou lá o que é que os assassinos fazem. Ela pode ter sentido que alguma coisa estava errada, mas não disse aos pais. As crianças têm tendência a reprimir as coisas, mas estas podem transparecer nos desenhos. Não sempre, mas muitas vezes. Se ela viu um homem a rondar a casa, talvez possa dar uma descrição mais detalhada dele.

Huldar levantou os olhos da folha de papel.

— Estás a dizer-me… — A expressão dele endureceu. — Quero que ela seja entrevistada hoje. Tens uma hora para organizar as coisas. — Ele tirou-lhe o outro desenho da mão. — A partir de agora.

Claramente, Freyja não teria tempo para procurar elásticos, quanto mais para almoçar com as amigas.