9.
O RECETOR DE ONDAS CURTAS ocupava o seu lugar na mesa, sintonizado na emissora islandesa de números. Apesar de se ouvirem frequentes estalidos e estática vindos do amplificador, a emissão ainda não entrara no ar. Karl estava a ficar impaciente, a imaginar as expressões que os amigos deveriam trocar nas suas costas.
— Não consigo entender.
Ele repetira isto ao longo da última hora, mas, por mais que dissesse a si mesmo para estar calado, não conseguia evitar desabafos de vez em quando.
— Talvez comece às sete.
Ainda faltavam dez minutos.
Halli bocejou atrás dele.
— Ou não.
Karl fez uma careta e respirou fundo. Isto era um desastre total. Porque é que nada lhe corria bem? Quais eram as probabilidades de as coisas correrem sempre mal a uma pessoa? Remotas, seguramente? Ele teria de ser um dos homens mais sortudos nas próximas duas décadas se quisesse chegar à média. Não conseguia lembrar-se de uma única vez em que as coisas lhe tivessem corrido bem; no entanto, ele continuava, uma e outra vez, a cair no erro de assumir que isso iria acontecer. Nunca lhe ocorrera ter um plano de back-up. Se ao menos tivesse tido o bom senso de levar a televisão para a cave, poderiam ter visto um filme ou jogado no computador se a emissão se atrasasse. Era um falhado. Mas ao imaginar a televisão na sala de estar, percebeu que nunca o teria feito. Apesar de não ser um velho aparelho CRT, o ecrã plano era igualmente antiquado e pouco maior que um monitor de computador. A mãe escolhera o modelo mais barato, como sempre. A coisa mais cara em casa era o equipamento de rádio que ele comprara com as suas próprias economias.
Também não havia hipótese de transportar o recetor de rádio lá para cima, porque Karl não sonharia em deixar os amigos à solta naquele ambiente embaraçosamente foleiro. A mobília nem era do tipo que iria voltar a ficar na moda se se esperasse tempo suficiente. Ele conduzira Halli e Börkur logo para a cave depois de os deixar pendurar os casacos no hall. Por cima da cabeça deles, Che Guevara olhava para o espaço com uma expressão algo surpreendida, uma relíquia da tendência política de esquerda mal definida da mãe, que consistia em desprezar qualquer referência americana. Karl ficou aliviado por o póster desbotado não ter caído da parede enquanto os amigos passavam debaixo dele — a moldura barata estava a partir-se em dois cantos. Ele não se ralava com o que poderia acontecer à fotografia, mas preferia que os amigos não reparassem nela.
Por que raio é que não tirara dali aquele póster e outros parecidos? Preguiça — pura preguiça. Se não gostava de alguma coisa na casa, cabia-lhe mudá-la. Para ser sincero, convidara um negociante de antiguidades a fazer-lhe uma proposta pelos objetos, mas depois de andar às voltas com uma caneta e um caderno, o homem recusara fazer uma oferta, dizendo que não havia ali nada que tivesse algum valor. Além do equipamento de rádio de Karl, claro, no qual o sujeito demonstrara um desconfortável grau de interesse, considerando que não estava à venda.
O dinheiro teria dado jeito a Karl. A mãe gastara até ao último króna para pagar a hipoteca antes de morrer, pelo que ele teria de aguentar-se com o conteúdo existente, até conseguir poupar para comprar coisas novas. Pedira um empréstimo para pagar o curso e ficaria em apuros esta primavera se não atinasse e passasse nos exames. Contudo, as hipóteses de isso acontecer eram tão poucas que estava a começar a pensar em vender a casa e comprar outra mais pequena; um apartamento que poderia decorar como quisesse, com algo que animasse a sua triste existência.
Apenas ainda não o fizera.
Sempre que pensava em mudar-se, lembrava-se dos problemas que tivera para montar a gigantesca antena de rádio na casa. Calculava que seria uma complicação ainda maior tentar instalar uma no telhado de um edifício de apartamentos. Para além do mais, metade da casa pertencia a Arnar e a parte de Karl poderia nem cobrir o preço de um pequeno apartamento. Pelo menos, vivia aqui de graça. Pelo menos, por enquanto. Não havia como prever durante quanto tempo o irmão iria suportar a situação. Provavelmente, a única razão pela qual ele ainda não insistira em dividir a herança era por estar demasiado ocupado; dificilmente seria por ter algum sentimento fraternal. Nunca haviam sido próximos e, desde que Arnar se mudara para os Estados Unidos, o relacionamento deles caminhava para uma morte natural. Mesmo quando Arnar ainda vivia em casa, o que eles faziam era acenarem um ao outro à mesa do pequeno-almoço, ou perguntarem por alguma coisa que se perdera. No Natal e nos anos, agradeciam respeitosamente os presentes que a mãe comprara pelo outro, e era só isso. Quando era mais novo, Karl tentara penetrar na concha do irmão, mas acabara por desistir. Era escusado.
Talvez Arnar se esquecesse de Karl, da casa e do que restava da modesta herança deles. Apesar de ter havido uma melhoria no relacionamento deles depois de Arnar crescer, era bem possível que nunca mais contactasse Karl. Estava contente com a sua nova mulher e com a sua carreira, e parecia que iria assentar de vez lá longe. Os telefonemas entre eles tinham sido mais frequentes enquanto a mãe estava doente, mas depois de ela morrer, deixaram de se falar outra vez. Arnar culpara a diferença horária, o que recordava a Karl a forma como a mãe costumava culpar a diferença de idades entre os irmãos para justificar a falta de proximidade, quando ainda eram crianças. Diferença horária, diferença etária. Haveria sempre alguma diferença entre eles.
Karl olhou para o recetor Collins de ondas curtas, como se conseguisse obrigá-lo a emitir um som com a força da sua mente. Nessa altura, até os estalidos cessaram. Ele sentiu-se a corar e queria uivar de raiva impotente, mas fez um esforço para respirar e isto pareceu resultar. A situação estava fora do seu controlo, por isso não valia a pena ceder ao desânimo. Mas ele não conseguia deixar de se sentir lesado e frustrado. Em vez de impressionar os amigos com a bizarra estação de números islandesa, estava a maçá-los até à morte.
Acabou por se virar na cadeira. Halli estava a dormir profundamente no hediondo minissofá, com a cabeça caída para trás, o cabelo preto e brilhante a tocar na parede. Karl alegrou-se ao pensar no torcicolo que ele teria quando acordasse. Era bem feito. O mínimo que podia ter feito era ter a cortesia de permanecer acordado. As duas cervejas que bebera podiam ser parcialmente culpadas, sem dúvida. Ou a ganza que tinham fumado. Halli emitiu um ronco alto e, por momentos, parecia que iria acordar num repente do seu sono descansado, mas em vez disso, cerrou os lábios, fechou a boca e continuou a dormir.
Ocorreu a Karl que o cabelo do amigo pudesse deixar uma marca de sujidade na parede. Desde que Karl o conhecia que Halli usava o seu cabelo fino e gorduroso num rabo de cavalo e a gola do casaco de cabedal preto que usava o ano inteiro estava lustrosa na parte de trás. A parede estava reservada a sofrer o mesmo destino, mas uma vez que a mãe de Karl já não estava ali para se aborrecer, ele não iria perder tempo a pensar nisso. No improvável caso de sucumbir a um frenesim de limpeza, tinha um lava-louças cheio à espera lá em cima. Seguido da lavandaria, da casa de banho e de todo o resto da casa. Era incrível a rapidez com que o sítio se transformara numa pocilga. A cave era o espaço mais apresentável porque ele raramente levava para lá comida, com medo de a entornar em cima do seu delicado equipamento.
Börkur mudou a perna que estendera sobre o braço da cadeira usada que condizia com o sofá. Não parecia muito interessado na revista gasta que folheava, mas ao menos não ressonava de boca aberta.
— Se nada acontecer às sete, ponho-me a andar. — Atirou a revista para a mesa de apoio. — A não ser que queiras ir ao cinema? Eu era capaz de assassinar umas pipocas.
Börkur tinha um talento único para conseguir os seus objetivos indo por caminhos tortuosos: era possível comprar pipocas sem ir ao cinema. Halli era igual, com os seus sonhos e expectativas irrealistas. Sempre que os três estavam juntos, Karl sentia-se preso numa das estúpidas radionovelas que a mãe costumava ouvir.
Mas Karl não tinha a possibilidade de trocar Halli e Börkur por alguém melhor; eram os seus únicos amigos. E o mesmo se aplicava a eles: a amizade baseava-se em falta de escolha e não em simpatia mútua. Conheciam-se desde a adolescência e, em mais de uma década, não aparecera ninguém melhor. No início, eram quatro, e por um tempo até tiveram uma rapariga a reboque. Todos se haviam apaixonado por ela, que não era nenhuma deusa, mas que infelizmente também não correspondia aos sentimentos de Karl, Halli ou Börkur. Fora uma história diferente com o quarto membro do grupo; no entanto, e depois de ela e Thórdur terem ficado juntos, os dois haviam-se afastado rapidamente.
Não fora uma surpresa que Thórdur os tivesse largado, uma vez que nunca partilhara do mesmo hobby. Isso era um problema: pouca gente partilhava. Ser radioamador não era «fixe». Recentemente, e para desgosto de Karl, tanto Halli como Börkur tinham mostrado sinais de desistência do único interesse que os unia, uma novidade que ele duvidava que a amizade aguentasse. Talvez parte do problema fosse porque eles só se tinham candidatado a uma licença de aprendizagem, o que os deixava atrás de Karl. De facto, era surpreendente que Börkur tivesse sequer conseguido obtê-la. Halli perdera o interesse, obcecando com a Internet, enquanto Börkur ficava apenas a babar-se em frente à televisão. Tinham quase desistido de ligar os seus transmissores e nunca começavam conversas sobre assuntos de rádio. Karl raramente tomava parte nas discussões sobre teorias da conspiração que Halli descobria na Internet e nas quais acreditava sem as questionar. E apesar de Karl tentar fingir interesse, sentia que isto era o início do fim da amizade deles. Só esperava que durasse o tempo suficiente para conhecer outras pessoas e não acabar sozinho. Mas, e contra a sua experiência, desejara que a emissora de números islandesa pudesse reavivar-lhes o entusiasmo.
— Alguma coisa vai acontecer às sete. — Karl rezou silenciosamente para estar certo. — Vai acontecer.
— Se tu o dizes. — Börkur bocejou. — Meu Deus, preciso de pipocas.
Havia pipocas lá em cima, mas Karl não iria confessá-lo. Não iria dar-se ao trabalho de ir buscá-las, quando Börkur apenas esvaziaria o saco para depois começar a resmungar que queria outra coisa. Karl tinha a certeza de que, se existisse o equivalente a um cardiógrafo para o cérebro humano, rapidamente perderia o rasto dos pensamentos de Börkur. Ele próprio parecia não conseguir orientar-se no seu labirinto mental.
— O que é que achas que significa esta tua estação? Assumindo que não estavas a ouvir coisas…
Börkur fungou e afastou a comprida franja de cima dos olhos. Porque seria que Karl não conseguia ter amigos com o cabelo lavado?
— Eu não estava a ouvir coisas.
Karl rangeu os dentes para evitar exaltar-se. Tentara sempre ouvir com simpatia as ideias estúpidas de Börkur e esta era a sua paga. Surgiu uma dor de cabeça no meio do efeito da ganza a desvanecer-se.
— Não sou um idiota completo. Ouvi-o várias vezes e sei o que ouvi.
Ao princípio, os números de identificação tinham sido continuamente repetidos, mas a segunda emissão incluíra uma sequência mais complicada que Karl não conseguia entender de todo, intercalada com a palavra «invertido». Setenta e cinco, vinte e três, sessenta e três menos noventa e dois, sete, trinta e dois. Catorze invertido. Dezasseis, setenta e quarto, sessenta e três menos noventa e dois, cinquenta e dois invertido — era uma das séries que se ouvia constantemente.
— Só precisamos de paciência. Vai acontecer.
Börkur parecia alheio ao facto de ter aborrecido o amigo.
— Como queiras. De qualquer forma, o que é que achas que quer dizer? E quem poderia estar disposto a uma coisa destas? Para quê? Não entendo porque é que o teu número de identificação está no meio de tudo isto.
— Nem eu.
A voz de Karl soava tão estranha como ele se sentia. Tudo era profundamente inquietante. Quanto mais pensava na emissão, menos conseguia entendê-la e pior se sentia. Impedira-o de dormir na noite anterior; ficara deitado a olhar para o teto, à escuta de barulhos estranhos no exterior, apesar de só ouvir o ruído das folhas mortas no jardim. Tentara olhar atentamente lá para fora, apenas para ver um gato gordo da vizinhança a bambolear-se vindo dos arbustos, para depois desaparecer na escuridão.
— Deve ser alguém a gozar. Não pode ser outra coisa.
Börkur balouçou a perna para cima e para baixo, fazendo com que a cadeira rangesse.
— Sim. Talvez. — Parecia cético. — Mas quem é que ia dar-se ao trabalho? Tu não conheces assim muita gente.
Karl tossiu.
— Conheço montes de pessoas. Há, sei lá, duzentas pessoas em algumas das minhas aulas.
Não era preciso dizer que talvez apenas uma dúzia delas sabia o nome dele. Karl não acreditava que nenhuma delas perdesse sequer dez minutos a pregar-lhe uma partida, quanto mais dar-se ao trabalho de montar um transmissor. Se os outros estudantes queriam infernizar-lhe a vida, tê-lo-iam feito na sala de aulas.
— Pensei que pudesse ser alguém do clube.
— A sério?
Pela expressão de Börkur, era como se Karl tivesse dito que suspeitava de alguém dos escuteiros. No entanto, era a conclusão lógica. Pelo menos, os membros do rádio clube amador sabiam do seu interesse por emissoras de números, podiam construir um transmissor de ondas curtas e tinham o equipamento certo, ao contrário dos estudantes do curso de Química. No entanto, Karl não conseguia imaginar um deles a pregar-lhe uma partida destas.
Nenhum deles era do tipo de lhe pregar partidas, quanto mais juntarem-se para o fazer. Como dissera Börkur, qual era o objetivo?
Börkur coçou a sua cabeça desgrenhada.
— Não são sempre os mesmos velhos?
Ele fora expulso do clube por não pagar as quotas — durante três anos seguidos. A direção estava tão desesperada por manter os membros que se fizeram de desentendidos enquanto puderam. Karl admitiu que ainda eram as mesmas pessoas.
— E o outro número de identificação? Quem é a mulher?
— Não me perguntes. Estava à espera de que a emissão mudasse para me dar mais informação. É só uma mulher. Não a conheço nem tenho qualquer ligação a ela. Chama-se Elísa Bjarnadóttir, se não estou em erro. Não conheço nenhuma Elísa.
— Como é que podes ter a certeza? Talvez ela seja uma tia velha ou alguma parente de que não te lembras. Podes conhecê-la por uma alcunha ou algo do género?
Karl não conseguia imaginar o que este «algo do género» poderia ser. Nem conseguia imaginar uma alcunha que jogasse com o nome «Elísa».
— Não. Não é minha tia. Fui à procura dela no Facebook. A página era pública e havia montes de fotografias dela. Nunca a tinha visto, nem a qualquer outra pessoa das fotografias. É só uma mãe com um marido e miúdos pequenos.
Não continuou. Do amplificador atrás dele, a emissora começou a transmitir. A caixa musical tocou a música de abertura que se tornara tão ameaçadoramente familiar, seguindo-se-lhe a voz da mulher. O tom mecânico e artificial deveria torná-la menos assustadora, mas o efeito era o oposto.
— Boa noite. Boa noite. Boa noite.
Silêncio. Depois, a voz começou a recitar uma sequência de números.
Karl estava feliz, apesar da sensação de dúvida que a emissão despertava nele. Afinal de contas, não estragara tudo. Halli acordou sobressaltado e olhou, estupefacto, para o transmissor, como se este estivesse a dar as respostas para os grandes mistérios da vida — apesar de sem a chave para o código, estas respostas não serem mais que monótonas sequências de números.