11.

MOLLY FITAVA FREYJA INTENSAMENTE, como era habitual nela. Freyja suspirou baixinho e viu o olhar da cadela tornar-se mais atento. Estava com dificuldade em habituar-se a ter um cão. Sempre que encontrava os olhos castanhos em alerta, sentia-se culpada por não a levar mais vezes a passear ou por não a alimentar melhor. Se dependesse de si, nunca teria um cão, especialmente um cão tão grande; tinha a certeza de que se estudassem a linhagem de Molly, iriam encontrar um cavalo. Mas, claro, este era exatamente o tipo de raça que agradava ao irmão. Baldur procurara um animal que ficasse bem num vídeo de rap, a rosnar ao fundo, rodeado de carros vistosos e raparigas a abanarem o traseiro; uma raça que parecesse capaz de matar a sede com sangue e roer ossos de dinossauro. Ela não ficaria surpreendida se encontrasse uma tatuagem debaixo do pelo espesso. E só agora, depois de partilhar o apartamento com Molly durante um mês, é que Freyja podia aproximar-se dela sem o constante receio de ficar sem um dedo ou mesmo uma mão inteira.

A cadela bocejou, mostrando filas de dentes brancos e afiados que pareciam chegar até ao fundo da garganta. E apesar de Freyja ainda não estar completamente à vontade perto de Molly, havia alturas em que a sua presença a tranquilizava. Invariavelmente, isso acontecia durante a noite, quando acordava sobressaltada com gritos e agitação no corredor lá fora, graças aos caprichosos moradores do edifício deprimente. O irmão não era o único que vivia na corda bamba. As precárias condições do prédio e dos apartamentos, por inerência, tornavam-nos baratos para comprar ou arrendar — não se conseguia cobrar muito por metro quadrado ali — e aquelas desafortunadas almas tinham acabado ali por falta de alguma coisa melhor.

Molly acabou de bocejar e virou a enorme cabeça a Freyja, parecendo ofendida. Freyja sentiu-se novamente culpada. Naquele dia, negligenciara a cadela, deixando-a sair cedo nessa manhã para encontrar um sítio onde urinar entre as latas vazias e outras porcarias que decoravam o jardim. Não era a primeira vez que as exigências do trabalho lhe tinham estragado os planos para o animal.

— Levo-te à rua mais tarde.

Não deveria ter dito a palavra «rua». A cadela arrebitou as orelhas e voltou a cabeça para Freyja, de língua de fora. Freyja gemeu. Pegou na caixa da piza da noite anterior e escolheu uma fatia com bastante carne em cima.

— Toma.

A cadela engoliu-a inteira, depois lambeu os restos com a língua do tamanho de um filete de pescada, olhando para Freyja na esperança de outro pedaço maior.

— Desculpa, amigona. Não podes engordar enquanto estiveres à minha guarda.

Freyja inclinou a cabeça para avaliar se a cadela aumentara de peso. Talvez — mas isso não importava, porque Molly estava escanzelada quando Freyja fora buscá-la ao amigo do irmão a quem a cadela fora confiada enquanto Baldur estava na prisão.

Infelizmente, este espetacular espécime humano também acabara atrás de grades, depois de quebrar as regras da liberdade condicional. E uma vez que o irmão lhe emprestara o apartamento, ela não poderia recusar tomar conta da cadela — no entanto, nunca teria aceitado tomar conta sequer de um peixinho vermelho em troca do desastre que era o carro dele. Ao desligar a ignição horas antes, o motor emitira um rugido mortal que sugeria que ela deveria ter à mão o número de uma empresa de táxis para quando regressasse da Children’s House.

O relógio que estava pendurado às três pancadas na parede da cozinha dizia-lhe que estava na hora de ir. A exigência de Huldar de uma entrevista no prazo de uma hora fora irrealista: o avô da rapariga recusara-se a ir com tão pouco tempo de aviso. Deu a desculpa de que as crianças se tinham encontrado finalmente com o pai e que seria demasiado stressante para Margrét ser arrastada tão cedo para longe dele outra vez. Diante dele no degrau da porta, Freyja teve quase de chorar para convencê-lo a ceder uma hora nessa tarde. Não fora convidada a entrar nem tivera qualquer vislumbre das crianças, do pai ou da avó. Os sons de choro e vozes altas tinham passado através da porta aberta, mas Freyja não conseguira distinguir as palavras. Nem queria escutar à porta; preferia deixar em paz a família destroçada.

Enquanto se afastava, conseguia sentir os olhos do avô a segui-la. A porta da entrada não se fechou até ela destrancar o carro, como se ele quisesse ter a certeza de que ela se ia mesmo embora. Como se ela tivesse algum interesse em ficar perto da casa deles até à reunião na Children’s House. Pelo contrário. Era domingo e tinha outros planos. As amigas dela estavam provavelmente a sair agora do restaurante, por isso não valia a pena apressar-se a ir para a cidade. Iria na próxima vez. O plano de dar atenção à Molly depois do almoço também teria de esperar. Freyja agarrou nas chaves, sorrindo à cadela, que a seguira esperançosa até à porta de entrada. Quando percebeu que não iria haver passeio, Molly dobrou o beiço em desaprovação e trotou de volta para dentro do apartamento.

Freyja perguntava-se se poderia contar com Molly no caso de um assalto à casa. Pela maneira como estava a relação entre elas, não parecia provável.

— Acho que não preciso de ressalvar o quão vital é que desta vez tudo corra de acordo com o plano.

Estavam sentados à volta da grande mesa de reuniões, a ver através do vidro Silja e Margrét sentarem-se no pequeno sofá. A rapariga estava visivelmente mais aflita do que na reunião anterior; devia estar a interiorizar a morte da mãe.

— A nossa investigação irá basear-se muito naquilo que ela diz e por isso peço, por favor, que façamos um esforço suplementar.

Huldar inclinou-se para a frente ao falar, como se estivesse a tentar encontrar o equilíbrio. Provavelmente só queria garantir que Silja ouvia cada palavra através do microfone no centro da mesa. Os papos debaixo dos olhos estavam mais pronunciados, o cabelo mais despenteado, as roupas mais amarrotadas do que nessa manhã, mas chegara a horas, acompanhado por uma agente que apresentou como Erla. Ela pouco disse e parecia não fazer grande coisa a não ser estar sentada em silêncio ao lado de Huldar, apesar de ser evidente pela expressão dela que tinha opiniões concretas sobre os procedimentos. As opiniões pareciam pouco lisonjeiras, por isso era melhor que não dissesse grande coisa. Agora assentia para indicar concordância com as palavras de Huldar.

— Deixem-me repetir: um esforço suplementar.

— Não precisas de nos dizer.

O tom de Freyja era educado, mas seco. Não estava divertida. Mas quem é que ele pensava que era? A Polícia não tinha autoridade ali, era melhor estabelecer limites claros no início.

— Estamos habituados a que as revelações das crianças sejam da máxima importância. Ninguém aqui vem para tomar chá. Não tens de te preocupar. — Ao cruzar os olhos com os dele, brindou-o com um sorriso gelado. — Deixa-nos fazer o nosso trabalho e concentra-te em perguntar o que queres.

Antes da chegada da rapariga, Huldar sentara-se com Silja para rever as principais perguntas que ele queria que ela fizesse a Margrét. Também lhe dera o desenho do homem fora da casa e ficou desagradado quando Silja se recusou a mostrá-lo à rapariga dentro da capa de plástico. No fim, aceitara o argumento dela de que Margrét se mostraria mais acessível se o desenho estivesse como da última vez que o vira. Acima de tudo, ele sublinhara que a tarefa mais urgente era a de conseguir qualquer coisa que Margrét pudesse saber sobre o outro assassínio que ela dissera estar próximo.

Silja decorou as perguntas de Huldar, mas ressalvou que as respostas de Margrét iriam levantar novas questões, e ele devia garantir que estas lhe seriam fornecidas. Ele também teria de compreender que ela não conseguiria espremer a rapariga da forma de que ele gostaria. Ela teria de controlar o ritmo e colocar as questões como achasse melhor. Como todos os antecessores dele — juízes, investigadores, procuradores — ele assentira, assumindo que isso não seria um problema. Mas, tal como eles, iria inevitavelmente revelar sinais de impaciência e agitação durante o decorrer da entrevista.

— Lembras-te daquilo de que falámos… Se precisares que a Silja se desvie da tua linha de interrogatório, tens de lhe dizer. Mas mantém a calma e por favor não ladres ordens ao microfone enquanto ela estiver a falar. Podes confiar nos nossos métodos e que iremos levar isto a sério. Ok?

Huldar encolheu os ombros, evitando o olhar de Freyja, mas pareceu concordar. Talvez estivesse apenas demasiado cansado para protestar.

— Tudo bem. Podemos começar então?

Ele recostou-se para trás, desaparecendo atrás de Erla.

— Tudo a seu tempo.

Freyja voltou-se para o espelho e ouviu Silja a conversar delicadamente com a rapariga sobre a neve na rua. Margrét estava silenciosa. Prendeu o seu longo cabelo ruivo atrás das orelhas num gesto infantil, depois fixou o olhar nas suas meias cor-de-rosa. Apesar de desgostosa, estava serena. O mesmo não se podia dizer do avô.

— Deixem-me relembrar-vos de que vou levá-la daqui mal a hora acabar. É todo o tempo que irão ter. Ela precisa de estar com a família. Com o pai e os irmãos.

Fora uma surpresa para Freyja ver que era o avô a trazer a rapariga outra vez, mas não comentara. Talvez o pai estivesse demasiado perturbado, ou não estivesse autorizado a ouvir o depoimento da filha por também ele estar a ser investigado.

— O relógio está a contar — acrescentou o avô.

Silja fez sinal de que estava pronta. Voltando-se para Margrét, agarrou na mãozinha da rapariga, que repousava na almofada entre elas. Margrét retirou-a e colocou as duas mãos debaixo das coxas magrinhas. Silja manteve-se imperturbável.

— Certo, Margrét. Sei que não queres estar aqui e que queres ir para casa o mais depressa possível. Por isso, vamos despachar isto.

O olhar da rapariga manteve-se fixado nas meias. Apesar de os pés não chegarem ao chão, tal como os das inúmeras crianças que tinham ocupado o sofá antes dela, ela resistiu à vontade de os balouçar.

— Sabes que és muito importante, Margrét. Claro, sempre foste, mas agora és mais importante do que nunca. Podes ajudar a Polícia a descobrir o que aconteceu à tua mamã. — A criança estava sentada como uma efígie de cera. — És uma heroína, tu sabes. Mas, infelizmente, ninguém pode ser uma heroína sem passar uns maus bocados. — Margrét não concordou, nem discordou. — Sei que não é fácil lembrares-te daquela noite… É aí que entra a parte de seres uma heroína. Se tentares lembrar-te de tudo o que viste ou ouviste e me contares, isso quer dizer que estás a ajudar a Polícia. Eles querem mesmo descobrir o que se passou.

Freyja e Silja tinham concordado que era imperativo que não se referisse a pessoa que era suposto ter assaltado a casa. O género do criminoso ainda não era certo e a mínima referência a um homem ou uma mulher poderia influenciar a memória de Margrét. Era crucial não implantar ideias que a rapariguinha pudesse aceitar como sendo dela.

— Achas que consegues dizer-me o que se passou? Só as partes de que te lembras. Se não te lembrares de nada, tudo bem. Podes dizer.

Huldar e o procurador franziram o sobrolho. O médico e a enfermeira que tinham participado na entrevista anterior não estavam presentes porque Freyja achara que tal não seria necessário, tendo em conta o custo de chamá-los pela segunda vez a um fim de semana. A Comissão de Proteção de Menores também declinara o convite para assistir.

— Eu pus as mãos nos ouvidos. — A voz pequenina transmitida pelo altifalante impressionou-os profundamente. — Pus as mãos nos ouvidos. Não queria ouvir a mamã a chorar.

Silja estava desconcertada, mas apenas Freyja notou. Não estava à espera de uma resposta tão rápida.

— Compreendo. Foi uma boa decisão.

Margrét voltou a falar, agora num quase suspiro:

— Tinha as mãos nos ouvidos. Não sei o que ele disse. Não quis ouvir.

Todos eles se inclinaram para a frente, em simultâneo. Margrét dissera «ele».

Silja também ouvira a palavra.

— Falas como se fosse um homem, Margrét. Como é que sabes isso?

— Eu vi-o. Acordei e precisava de fazer chichi. Vi-o às voltas na sala, tentei dizer à mamã, mas ela não acreditou em mim. Ela foi ver.

Margrét libertou as mãos de debaixo das coxas e começou a entrelaçar os dedos no colo.

— Então, a tua mamã saiu do quarto. Onde é que tu estavas enquanto isto acontecia?

— No quarto dela. Quando ouvi alguém a vir, escondi-me. Debaixo da cama. Espreitei e vi os pés da mamã. Ia sair, mas depois vi outros pés a aparecerem. Os pés do homem preto.

— Então, ele seguiu a tua mamã até ao quarto?

Quando Silja se calou, Freyja apercebeu-se de que aqueles que estavam à escuta na sala de reuniões mal respiravam.

Quando Margrét falou novamente, depois de uma pausa para pensar, toda a gente inspirou ao mesmo tempo, quase que abafando a pequena voz.

— Sim. Não me atrevi a sair de debaixo da cama. — Calou-se outra vez, a olhar para os dedos entrelaçados. — Eu devia ter ajudado. Devia ter saído de debaixo da cama e corrido para a rua. Podia ter encontrado um polícia ou um bombeiro para ajudar a mamã.

— Margrét, ainda bem que não o fizeste. Não há polícias nem bombeiros na tua rua à noite. O homem ter-te-ia apanhado muito antes de conseguires pedir ajuda. A tua mamã não queria isso. Se não és uma pessoa crescida, o melhor é esconderes-te. E, às vezes, também é o melhor para os adultos.

Margrét não olhou para cima. Os dedos estavam quietos agora, mas o olhar permanecia fixo neles como se os visse pela primeira vez.

— Mas era um homem. Eu vi-o e ouviu-o falar quando tirei as mãos dos ouvidos para ver se já tinha acabado. — Ela mexeu-se no sofá. — Mas não tinha acabado. Ele falava como um homem.

De uma vez, ela reduzira a metade o número de suspeitos — a secção feminina da população estava a salvo.

Silja esperou um pouco, caso o polícia ou o procurador quisessem acrescentar alguma coisa. Ninguém falou, e ela inclinou-se para Margrét e afastou o cabelo da cara da rapariga, como se estivesse a espreitar por trás de uma cortina.

— Lembras-te do que me disseste da última vez que estivemos juntas, Margrét? Disseste que pensavas que havia outra mulher em perigo.

A rapariga desviou o olhar, voltando a deixar cair o cabelo sobre a cara.

— Ouvi um pouco. Tive de tirar as mãos dos ouvidos às vezes para pô-las na boca, e o homem não me ouvir a chorar.

— Estou a ver. Às vezes, também conseguimos ouvir coisas entre as mãos, mesmo que estejamos a fazer tudo para tapar os ouvidos.

Silja estava perfeitamente calma; nem por um momento a voz dela deixou transparecer o quanto estava em jogo. Poder-se-ia pensar que estavam a falar do tempo.

— Podes não acreditar, mas provavelmente foi uma sorte teres ouvido alguma coisa. Especialmente se ajudar a Polícia a impedir que façam mal a outra mulher.

— Não quero pensar nisso. — A voz de Margrét caíra outra vez num sussurro. — Não quero. Quero falar de outra coisa.

— Lembras-te do que disse sobre seres uma heroína? Que só podes ser uma heroína se fores corajosa?

Margrét assentiu. Não conseguiam ver-lhe a cara porque ela estava inclinada para a frente, com o cabelo a tapar-lhes a vista, mas era fácil imaginar a expressão de desespero.

— Se conseguires ganhar coragem para me contares o que o ouviste dizer, vais ser uma heroína, Margrét. Não iria demorar muito e vais sentir-te melhor a seguir. Às vezes, falar da coisa que nos perturba ajuda a afastar os maus pensamentos.

As pernas de Margrét começaram a balouçar devagar para trás e para a frente. O movimento não era indolente, nem descuidado; parecia um brinquedo cujas pilhas estavam a acabar. Inspirou rapidamente, olhou para cima e mordeu o lábio superior antes de falar. As pernas deixaram de se mexer.

— A mamã chorou e perguntou se ele também ia fazer-nos mal. Ouvi isso, apesar de estar com as mãos nos ouvidos, mas depois tirei-as. Queria ouvir se ele dizia que sim. Mas ele disse «agora não». Havia outra mulher a quem tinha de dar uma lição. — Ela disse-o com grande cuidado, depois olhou inquisitivamente para Silja. — O que é que ele quis dizer com uma lição?

— Ele queria que ela entendesse qualquer coisa. — Silja estava nervosa e mexeu-se no sofá, enquanto aguardava uma explicação. — Não precisas de entender, Margrét. Nem sempre é fácil descobrir o que os adultos querem dizer. — Olhou de lado para o espelho de dupla face à procura de ajuda.

— Pergunta-lhe se ele disse quem era a mulher.

Huldar falara muito alto e Silja assustou-se. Bateu no ouvido e focou-se novamente em Margrét.

— O homem disse quem era a mulher, ou alguma coisa sobre ela?

Margrét abanou a cabeça.

— Não. Só disse que ia fazê-la sofrer. Como à mamã. — Margrét calou-se e inspirou profundamente. — Eu vi a mamã. Ele tapou-lhe os olhos com fita autocolante.

Silja tossiu. Durante o briefing, Huldar mostrara-lhe uma fotografia do corpo de Elísa ainda no local do crime. Teve mesmo de ser porque Margrét poderia referir-se aos pormenores mais aterradores. Freyja também vira a fotografia e demorou um pouco a perceber o que estava a ver. Quando entendeu, teve de desviar o olhar.

— Saíste de debaixo da cama, Margrét?

— Não. A mamã olhou para baixo. Mas ela não conseguia ver nada. Fez-me uma festa e disse: «Chh.» Depois, o homem mau arrastou-a dali.

— Foi sensato da parte dela, Margrét. Ela não queria que o homem soubesse que estavas ali. Agora podes ver por ti mesma que a última coisa que ela teria querido era que saísses de debaixo da cama. Ela queria que fizesses exatamente o que fizeste. Que ficasses escondida.

Huldar inclinou-se subitamente para o microfone.

— Não percas o fio à meada. Pergunta-lhe se ouviu mais alguma coisa. Que fosse importante.

— Depois de arrastar a tua mamã para cima, Margrét… o homem disse mais alguma coisa?

— Sim. Uma história. Ele queria contar-lhe uma história. Mas eu pus as mãos nos ouvidos. Não queria ouvir a história dele. Sabia que ia ser horrível. Ele não disse mais nada depois disso. Nem a mamã.

Ninguém conseguiu falar por momentos. Silja foi a primeira a recompor-se e continuou como se nada se tivesse passado.

— Diz-me uma coisa. Tinhas os olhos fechados? Se viste a mamã quando ela te disse para ficares caladinha, deves tê-los aberto algumas vezes. — Silja formulou esta frase com cuidado, mas Margrét não respondeu.

— Pergunta-lhe outra vez.

Huldar agarrou no microfone. Silja hesitou com o estalido no auricular dela. Ele estava a falar muito alto e não ajudava quando repetia as palavras cada vez mais alto.

— Pergunta-lhe outra vez.

Freyja pousou a palma da mão no peito dele e afastou-o do microfone. Tentou não recordar que a última vez que lhe tocara ali fora para se apoiar e para se mexer mais depressa em cima dele.

— Deixa a Silja. Ela sabe o quão é importante.

Huldar anuiu e calou-se. Viraram-se para o vidro, enquanto Silja continuava:

— Tinhas os olhos fechados, Margrét? Se tinhas, tudo bem. Se não, seria bom saber o que viste.

— Não quero falar sobre isso. — Havia agora uma ponta de raiva na voz da rapariga. — Não quero.

— Está bem. Falamos de outra coisa?

A rapariga levantou os olhos pela primeira vez. Perscrutou Silja com expectativa.

— Sim. Não está a tentar enganar-me, pois não?

— Não, claro que não estou a tentar enganar-te. Quero fazer-te perguntas sobre um desenho que fizeste.

Silja sorriu-lhe. Pegou na folha de papel que estava na mesinha ao lado do sofá. Estava lá também um urso de peluche, com as pernas direitas e a cabeça inclinada para um lado, como se tivesse pouca confiança nos procedimentos — tal como Huldar.

— Desenhas muito bem. — Silja estendeu o desenho a Margrét. — Podes dizer-me o que está aqui no desenho?

Margrét afastou o cabelo da cara e inclinou-se sobre a página.

— Pode ver o que está aqui. Disse que eu era boa a desenhar. — Devolveu o desenho.

Silja não se desmanchou.

— Vejo que é uma casa. É a tua?

Margrét assentiu.

— É o teu carro?

A rapariga assentiu outra vez.

— E isto? É a árvore que há no teu jardim ou uma árvore de Natal que compraste para levar para casa? — Silja tentava colocar a questão de forma a obter uma resposta mais longa.

— Está no jardim.

— Sim, é muito grande. Não caberia dentro de casa.

Silja fez perguntas sobre outros pormenores do desenho. Tinha o cuidado de colocar questões que requeriam respostas com frases completas. Todos repararam que cada resposta que Margrét dava era mais longa que a anterior. Ao descontrair, as respostas tornavam-se mais detalhadas. Mas o procurador e Huldar estavam a ficar impacientes. O último cruzou o olhar com Freyja quando Silja fez uma pergunta sobre as cortinas na janela, e apontou para o relógio. Freyja desviou os olhos e teve o cuidado de não voltar a olhar para ele. Os dois homens acalmaram-se quando Silja chegou finalmente ao que pretendia.

— E quem é este?

— O homem.

— Qual homem?

— Só um homem.

— Mas tu conhece-lo? É o teu pai?

A rapariga abanou a cabeça.

— Um vizinho?

— Não sei o que ele é.

— Porque é que o desenhaste então?

— Porque o vi.

— Viste-o quando estavas a fazer o desenho?

— Não.

— Estou a ver.

Huldar inclinou-se outra vez sobre o microfone. Para seu mérito, desta vez falou com comedimento e não tocou no equipamento a não ser para carregar no botão.

— Pergunta-lhe se viu o homem perto de casa ou noutro lado. Se ele não tem nada a ver com a casa, podemos seguir em frente.

Silja assentiu discretamente.

— Diz-me uma coisa, Margrét. Onde é que viste este homem?

— Na nossa rua. No passeio. E uma vez no nosso jardim. À noite.

Silja assentiu.

— Ele ia muitas vezes ao teu bairro?

— Não sei. — As crianças tinham dificuldade em definir o que era «muitas vezes».

— Viste-o duas vezes? Cinco? Dez vezes, talvez?

Freyja praguejou para si. Silja não devia ter mencionado números. A rapariga iria agarrar-se a um deles.

— Talvez cinco vezes. Mas só talvez. Não contei.

— Isso é bastantes vezes.

— Sim.

— Quando é que isso aconteceu, Margrét?

A rapariga encolheu os ombros.

— Há uns tempos.

— Depois do Natal?

— Sim. Ou não. Quando o vi no jardim, ainda era Natal. Acordei e estava à procura do meu sapatinho para ver se tinha alguns presentes, mas não tinha nenhuns. Ao princípio, achei que ele era o Pai Natal.

— Também o viste depois do Natal?

— Sim, acho que sim.

— E a fazer o quê?

— A olhar. Estava a olhar.

Huldar agarrou outra vez no microfone.

— Pergunta-lhe se viu a cara dele.

— Viste a cara dele, Margrét? Consegues descrevê-lo?

— Eu vi-o. Tinha uma cara zangada. Não estava contente.

De repente, a rapariga começou a baloiçar outra vez as pernas. Era um sinal de agitação; baloiçavam mecanicamente para trás e para a frente.

— Não quero falar mais consigo.

Ela fixou-se nas meias enquanto estas iam e vinham.

— Posso ficar aqui? — Não olhou para cima. — Não quero estar com o papá. A culpa é toda dele.