20.
MARGRÉT DEU-SE MELHOR COM MOLLY do que Freyja. A cadela seguia a rapariguinha para todo o lado, recusando-se a abandoná-la; quando Margrét se sentava, Molly ficava aos seus pés. Deitava-se com as orelhas arrebitadas, apesar de ter os olhos fechados e parecer estar a dormir. Era como se o instinto lhe dissesse que a rapariga precisava de proteção. E estava certa. Todos desejavam que a preocupação com a segurança de Margrét se revelasse desnecessária, mas ninguém se atrevia a correr riscos.
Geir, da Comissão de Proteção de Menores, salientara-o ao ligar novamente a Freyja, para informá-la da decisão final do acolhimento de Margrét. Deixara bem claro que esperavam que Freyja aceitasse a responsabilidade, e parecia mais preocupado em manter boas relações com a Polícia do que em ouvir as opiniões dela sobre o assunto. E porque a Polícia e os serviços sociais tinham concordado em tentar esta solução, ela não tinha alternativa senão aceitar.
Deu luta, apesar de tudo, usando o problema de Molly. Mas afinal, aos olhos deles, a segurança que a cadela dava era uma enorme vantagem. A descrição que Freyja fez do apartamento também não ajudou; pelo contrário, eles assumiram que ninguém iria procurar a rapariga ali. Não havia nada que ela pudesse fazer a não ser aceitar o inevitável.
Foram enviados dois inspetores para avaliar a casa e a cadela. Apareceram logo que ela desligou e ela suspeitava que haviam estado à espera lá fora no carro até que cedesse. Inspecionaram cada centímetro do apartamento sob o olhar atento de Molly. A cadela portou-se impecavelmente e, estranhamente, eles acharam o espaço muito aceitável. Ajudou, sem dúvida, que Freyja tivesse tirado objetos incriminatórios que pudessem pôr o irmão em maus lençóis. Por sorte, retirara as lâmpadas de calor do quarto vago várias semanas antes, quando convidara as amigas do grupo de costura para lá irem. Não teriam sido do agrado dos inspetores, ou até das suas amigas, ainda que a maioria talvez tivesse sorrido e uma ou duas até se tivessem mostrado interessadas na colheita.
Por isso, a arrecadação na cave estava a rebentar pelas costuras e o roupeiro do quarto estava cheio de parafernália decorada com folhas de canábis e outros motivos relacionados com droga.
Ela ficara surpreendida com o aspeto triste e vazio do apartamento depois desta limpeza. Condizia com os olhos aborrecidos de Margrét quando ficou ali, de cabeça baixa, depois dos homens a entregarem à porta. A rapariga não disse uma palavra, despiu o anoraque e só reagiu quando Freyja lhe disse que não precisava de descalçar os sapatos: o chão estava bastante sujo por causa da cadela e as meias ficariam pretas se andasse com elas por ali. A rapariga levantou os olhos e pela sua expressão ansiosa pareceu achar que Freyja estava a armar-lhe uma ratoeira ou a pô-la à prova. Freyja sorriu e apontou para os seus próprios sapatos. Os homens aproveitaram a oportunidade para entregar a Freyja duas malas de roupa e um DVD do filme Frozen, e foram-se embora sem acompanhar a criança até dentro de casa, andando depressa pelo patamar até ao início das escadas.
Algum tempo depois, Freyja estava à porta do quarto que esvaziara para Margrét. Tencionava ficar no sofá da sala em vez de dormir no quarto pequeno onde haviam estado as lâmpadas de calor. Isso teria implicado retirar a persiana que o irmão montara na janela, sem falar nos outros objetos que não deveriam estar num quarto, como a coleção de pesos e outro equipamento de ginásio. Fora isto que impedira os inspetores de insistirem para que ela dormisse ali; nenhum deles tivera vontade de tirar dali os pesos para arranjar espaço para ela.
— Queres leite com chocolate? — perguntou Freyja. — Faço um ótimo leite com chocolate. — Sorriu à rapariga. — Ou preferes café?
Margrét levantou os olhos do livro. Estava sentada na cama, estranhamente direita, como se encostada a uma parede invisível. As pernas magrinhas balouçavam na extremidade, as meias um pouco grandes a aparecer por baixo dos jeans, os sapatos atirados para o chão. A cara tinha o selo da dor.
— Não, obrigada.
— Tens a certeza?
Freyja preocupou-se que a criança não andasse a comer ou a beber. Recusara tudo desde que chegara e eram agora oito da noite.
— Também tenho refrigerantes, se quiseres. E água da torneira.
— Não, obrigada.
Os lábios de Margrét mal se mexiam. Parecia uma boneca, a cara de porcelana só exponenciava a semelhança.
— Então, e achas que podes ajudar-me a dar de comer à Molly? — Freyja olhou para a cadela que estava aninhada aos pés de Margrét. — Acho que de outra forma ela não vai querer ir até à cozinha. Gostou tanto de ti que vai recusar sair do teu lado. — Freyja sorriu de novo. — E nem é normal, sabias? Ela, por exemplo, não me adora.
— Mas não é tua?
Era a primeira vez que Margrét dava uma aberta para uma conversa.
— Não, é do meu irmão. Este apartamento é dele. Eu só estou a tomar conta da casa e da cadela.
— Então, onde é que ele está? — Margrét estava em pose de bailarina, braços de lado, costas direitas.
— O meu irmão? — Freyja procurou desesperadamente uma resposta adequada. Não podia dizer a verdade à criança. — Vive no campo agora, mas vai voltar em breve, e eu vou ter de arranjar um apartamento só para mim. Não quero viver com ele.
Margrét mexeu a cabeça pela primeira vez. Assentiu, com intensidade. Depois baixou os pés até ao chão e enfiou-os nos sapatos.
— Eu ajudo-te. A Molly tem fome.
Mal a cadela ouviu o nome, levantou-se e colocou-se ao lado de Margrét. A rapariga deu-lhe uma festa na cabeça e coçou-a atrás das orelhas. O animal fechou os olhos como um gato gigante. Freyja nunca conseguira esta reação, apesar das frequentes tentativas de lhe dar festas. Molly limitava-se a abanar a cabeça como se quisesse livrar-se de alguma praga. Quem sabe, talvez conseguissem convencer a família de Margrét a tomar conta da cadela? Absorvida nestes pensamentos, mal notou quando Margrét suspirou. Um pequenino e triste suspiro.
— Estás bem, querida? Posso fazer alguma coisa?
— Não. — A voz da rapariga era áspera e intransigente. Mas a continuação foi mais amena. — Sinto-me mal por dentro. Na minha cabeça. — Constatou isto sem emoção, como se tivesse o dever de comunicar o facto. — Como se tudo estivesse partido.
— Dói-te a cabeça? — Freyja teve de perguntar, apesar de saber que o que incomodava a criança não se curava com analgésicos.
— Não é uma dor de cabeça. É como se eu me tivesse magoado, mas dentro da minha cabeça, e aí não se pode pôr um penso.
— Eu entendo.
— Não, não entendes. Ninguém entende a não ser eu. É a minha cabeça, não a tua.
Freyja não ficou ofendida com isto; conhecia muito bem o sentimento, por causa da sua própria infância. Sentira o mesmo quando adultos lhe falavam com expressões solidárias e falsa compreensão na voz quando a mãe dela morrera. Não faziam ideia do que ela estava a passar. Nenhuma ideia.
— Posso contar-te um segredo, Margrét?
A rapariga olhou para cima. Os segredos eram sempre fascinantes, mesmo em situações muito difíceis.
— A minha mãe morreu quando eu era um bocadinho mais velha do que tu. Por isso, posso não saber exatamente como te sentes, mas tenho uma ideia.
Margrét analisou-lhe a cara para se certificar de que Freyja dizia a verdade.
— Foi morta?
— Não. Não diretamente. Morreu porque não cuidava de si como deve ser.
Freyja estava desejosa de fazer uma festa naquela cabeça vermelha e encaracolada, mas não se atrevia com medo de que a rapariga não apreciasse o gesto. Como Molly. Teria de se contentar com um sorriso travesso.
— Tiveste uma mãe melhor que eu. Mas eu ainda sinto muita falta da minha. Por isso, não sei exatamente como te sentes porque é natural que te sintas pior do que eu… mas quase que sei. — Parou, sentindo que estava a chegar a Margrét e nada disposta a quebrar o fio frágil que agora as ligava. — Anda. Não queremos que a Molly morra de fome.
A cozinha era pequena porque o edifício fora construído quando a comida e cozinhar ainda não tinham grande importância. Mas o irmão conseguira lá enfiar uma mesa e duas cadeiras ao lado da janela, e também arranjara espaço para um conjunto de enormes taças para a cadela. Era um cochicho para as três.
— Tinha de estar a morrer à fome para conseguir comer isso. E tu?
Freyja observou a rapariga a deitar cuidadosamente ração, de um saco semicheio para a taça.
— Talvez quisesse se fosse um cão. Mas não sou um cão.
Margrét esforçou-se por pôr o pesado saco em cima da mesa. A sua voz era enervantemente desprovida de emoção, mas pelo menos começara a responder às perguntas de Freyja.
Era normal. Nada do que Freyja dissesse poderia apagar a dor. Só o tempo o faria. Freyja forçou uma risada.
— Não, tens sorte. É mais divertido ser rapariga. — Conseguiu agarrar o saco antes de ele cair no chão. — Sabes o que se diz de vida de cão… pode ser muito infeliz.
— Preferia ser um cão. Agora, pelo menos. — Margrét olhou o linóleo, evitando o olhar de Freyja. — Os cães não querem saber dos pais e das mães.
— Sim, aí tens razão.
Molly não parecia sentir falta dos pais. Freyja estendeu a Margrét a taça que esta enchera. Os olhos de Molly seguiram-na e quando a comida foi colocada no chão ela começou a devorá-la, ao som do tilintar da coleira que batia contra o prato. Era inútil falar por cima do barulho, e ainda bem, porque Freyja tinha de ser cuidadosa com o que dizia. Não só a rapariga estava extremamente sensível como Freyja não queria influenciar o depoimento dela sem querer.
O silêncio instalou-se assim que Molly acabou. Freyja simulou surpresa.
— Bolas, ela devia estar com fome. Posso dizer-te uma coisa? — Margrét não respondeu, mas pareceu assentir. — A Molly tem sempre fome. No segundo em que lhe tiramos a taça, fica com fome outra vez.
A cadela olhou-as, uma de cada vez, lambendo os beiços. Emitiu um gemido baixo como se soubesse que não iria receber mais comida, mas que não perdia nada em tentar.
— Agora temos de a levar para um passeio. Alinhas?
— Está bem.
Parecia que o passeio não era nem melhor, nem pior, que tudo o resto.
Freyja afastou a antiquada e bizarramente rendada cortina da cozinha. Flocos gigantes de neve caíam lá fora. Um carro da Polícia passou lentamente; devia ser uma das patrulhas que eles tinham prometido. Apesar de andar a passo de caracol, era difícil perceber como é que isto iria deter algum potencial agressor. A dissuasão só funcionaria enquanto o carro estivesse na rua. O pensamento perturbou-a e Freyja desejou que isso não tivesse transparecido.
— É melhor agasalharmo-nos bem. Está a nevar.
Freyja tinha pouca experiência em vestir crianças e pensou se não teria exagerado, quando estavam as duas à porta. Nada de Margrét era visível a não ser um rasgo de olhos verdes entre o cachecol e o gorro de lã.
— Achas que vais ter calor?
— Não me importo. — A voz ouviu-se bastante abafada através do cachecol.
Molly não conseguia conter a alegria e abanava a cauda ruidosamente contra a parede enquanto desciam as escadas. Passou por elas quando Freyja abriu a porta, puxando a trela com força. E apesar de ter pensado em deixar Margrét levar a cadela, Freyja percebeu que era demasiado arriscado. Não queria devolver a criança com ferimentos, mesmo que fosse difícil ver como é que ela se poderia magoar por baixo de tantas camadas de roupa. Freyja teve o cuidado de não andar demasiado depressa no pavimento escorregadio, embora Molly estivesse cheia de pressa e a arrastá-la consigo. Não havia sinal do carro-patrulha nem de quaisquer outros veículos ou peões.
Os flocos de neve caíam devagar. Pareciam absorver todos os sons e as poucas palavras que Margrét e Freyja trocaram soavam estranhamente abafadas, como se enroladas em algodão.
Perto do mar, Freyja soltou Molly, que se afastou e desapareceu na penumbra branca. Por uma vez, Freyja não estava preocupada que se perdesse ou que se atirasse a estranhos. As pessoas pareciam todas ter ficado dentro de casa nessa noite. Ela e Margrét ficaram lado a lado, a observar os flocos de neve que tinham engolido Molly.
— Acreditas em Deus?
Freyja ficou contente por a rapariga não estar a olhar para a cara dela quando ela respondeu. Não queria dizer-lhe qual era sua opinião sincera porque, naquele momento, a crença no céu e na vida depois da morte poderia ser aquilo que dava algum ânimo à criança. Mas também não queria dizer-lhe uma mentira descarada.
— Às vezes, sim. Às vezes, não. — Mas achando que isto era fraco, acrescentou: — E tu?
— Às vezes, sim. Às vezes, não.
Voltaram a ficar em silêncio e, quando o telefone apitou no bolso do casaco de Freyja, quase pareceu um insulto à tranquilidade. Por hábito, tirou o telefone que brilhava no escuro. A mensagem fora enviada de um número que ela não reconheceu e que assumiu pertencer à Polícia — a Huldar. Ele prometera manter-se em contacto, mas não dera notícias. Típico. Ela percebera logo o carácter dele na manhã em que ele fugira. Sob aquela aparência atraente, havia um vazio interior.
Mas a mensagem não podia ser dele. «ACHAS QUE NÃO DOU CONTA DO CÃO?» O coração de Freyja disparou enquanto olhava em volta, à espera de ver alguém em pé atrás delas. Não conseguia esconder a agitação. A criança iria ficar com medo. Mas não havia nada a não ser neve, a cair cada vez mais espessa. Agarrou na mão de Margrét.
— Molly! Molly!
Margrét apercebera-se do pânico de Freyja.
— O que foi?
Os dedinhos dentro da luva lutavam contra o aperto da mão de Freyja.
— Nada. Mas é melhor voltarmos antes que a neve nos chegue aos joelhos ou que a barriga da Molly arrefeça. — Dizia disparates, que era o que fazia sempre que tentava esconder o desespero. — Molly! Anda cá, rapariga.
Freyja movia o telefone entre os dedos, a tentar decidir se largava a mão de Margrét para chamar a Polícia. Antes de conseguir decidir-se, ouviu um latido seguido de um gemido baixo.
— Molly! Molly!
A cadela reapareceu tão subitamente quanto tinha desaparecido e Freyja suspirou de alívio.
— Molly! Anda cá!
Enquanto a cadela se aproximava a coxear, Freyja viu que deixava um rasto vermelho-vivo na neve. Quando chegou ao pé delas, não havia dúvida de onde vinha o sangue; havia um corte grande na parte de trás da coxa. Como não podiam fazer nada por ela neste caminho desolado, Freyja tomou a dianteira e caminhou tão depressa quanto conseguia.
Foi uma sorte que a cadela estivesse a coxear ou Freyja teria corrido para casa, arrastando a rapariga consigo e revelando o terror que tentava esconder.
E pensou ter ouvido o eco de passos no silêncio espesso atrás delas.