27.
NÃO VALIA A PENA DERRAMAR MAIS LÁGRIMAS. Elas não tinham para onde ir e só faziam com que os olhos lhe ardessem. Esfregar a cabeça contra o piso de cimento também não dera em nada, a não ser esfolar a pequena parcela de pele que não estava coberta de fita. Halli não sabia quantas vezes o homem a enrolara à volta da cabeça dele; deixou de contar depois da sexta vez quando a pressão se tornou tão insuportável que já nem conseguia pensar como devia ser. Era claro que a fita grossa estava demasiado apertada para ser retirada sem usar as mãos. A orelha direita era a que mais sofrera. Parecia estar a arder. Quando escapasse, iria provavelmente precisar de uma cirurgia plástica… Se escapasse.
As lágrimas brotaram outra vez. Não só lhe picavam nos olhos como lhe enchiam o nariz de muco, o que significava que estava sempre a fungar. Tinha de respirar pelo nariz porque a boca estava cheia de enchimento e selada com fita. Ele não queria sufocar no seu próprio ranho.
Não queria sufocar, ponto final.
Valia a pena lembrar-se disto quando sentia crescer a tentação de render-se ao sono e livrar-se da dor. Tudo lhe doía. Mas sempre que se deixava ir, a dor era pior quando acordava, pelo que era melhor manter-se consciente. O calor também contribuía para o seu sofrimento, exacerbando-lhe o desconforto ao ponto de se tornar insuportável.
Já nem sequer conseguia sentir as mãos. Estavam amarradas atrás das costas com tiras de plástico que se lhe cravavam nos pulsos. Jogando pelo seguro, o homem também enrolara mais da maldita fita, bem apertada, à volta das mãos, de tal modo que seria impossível usar os dedos mesmo que encontrasse alguma coisa para cortar tudo o que o amarrava. Ao início, isto dera-lhe esperança… Deveria significar que havia ali algum tipo de objeto cortante que ele poderia usar. Mas depois de percorrer várias vezes o espaço sobre as nádegas doridas, afastara esta possibilidade.
Mas não podia ter a certeza absoluta. Vendado e impossibilitado de tatear com as mãos ou com os pés, não conseguira procurar bem. Os tornozelos estavam amarrados com mais tiras de plástico e os joelhos também estavam ligados ou unidos com fita.
Talvez lhe tivesse escapado alguma coisa. Talvez valesse a pena obrigar-se a uma última tentativa de exploração. Mas a mente encolheu-se com a ideia da dor. Halli fungou com força para fora e sentiu o muco a sair disparado e a aterrar-lhe no peito. Não se importou. Só tinha medo de que se um desconhecido ou desconhecida abrisse a porta e o visse naquele estado, voltasse a fechá-la e fugisse sem fazer perguntas.
Inspirou ar pelas narinas e sentiu-se um pouco melhor. Tentou saborear a sensação, mas esta não durou. Inevitavelmente, começou novamente a ficar ranhoso. Mexeu-se, reavivando a dor atroz nos pulsos. Não fazia mal porque, ao menos, isso queria dizer que as mãos não estavam totalmente dormentes.
Há quanto tempo estava ali? Vinte e quatro horas? Trinta e seis? Talvez não tanto ou teria mais fome. Mas era impossível sentir mais sede. Durante quanto tempo é que uma pessoa conseguia viver sem água? Dois dias? Três? Quatro ou cinco? Talvez nem tanto. Era esse o plano do homem? Deixá-lo a morrer de desidratação? Não aparecia há muito tempo e, embora Halli fosse capaz de dar tudo para não voltar a vê-lo, o receio de que ele o tivesse abandonado era ainda pior.
Se, ao menos, o homem voltasse mais uma vez, lhe retirasse o enchimento da boca e lhe desse de beber, Halli prometeria nunca o procurar se o libertasse. De alguma forma, Halli convenceria o homem de que ele era de confiança; relembrando-o de que, afinal, não teria nada a ganhar em denunciá-lo.
Talvez fosse melhor saltar a última parte, porque esta sugeria que Halli podia mudar de ideias e chibar-se. Devia era preparar o que dizer quando o homem regressasse, em vez de estar ali a inventar, à procura de objetos que não existiam. Isto é, se o homem voltasse. E se tirasse a fita da boca de Halli.
Halli fungou com tal força que o ranho foi projetado para o ar em vez de lhe aterrar no peito. Talvez lhe tivesse acertado nas calças ou nos sapatos. Uma onda de autocompaixão apoderou-se dele. O corpo sofreu uma convulsão e, por instantes, teve medo de estar com epilepsia ou com um calafrio febril. Não tinha a certeza sobre o que um calafrio implicava, mas imaginava que faria as pessoas tremer tão violentamente que seria o mesmo que sofrer um choque elétrico. Poder-se-ia morrer de calafrios? Isso seria irónico, tendo em conta o calor que estava ali dentro. Se fosse por alguma coisa, iria morrer de febre, a não ser que morresse de sede antes de sucumbir a ambas. Ou iria ter uma hipótese de dar a volta ao homem?
As lágrimas voltaram de novo e ele foi incapaz de as conter. Isto era tão horrível. E tão injusto. O que fizera ele para merecer isto?
Era este o castigo por ter participado numa conspiração tonta? Nada fizera que justificasse este destino. Vendera o equipamento ao homem, ensinara-o a montar uma emissão temporizada e pusera o telefone e as cuecas femininas no carro de Karl. Ah, e roubara o molho de chaves. Mais nada. O homem dissera que era apenas uma pequena partida pregada por alguém próximo de Karl e fizera-o prometer que não contaria nada.
Mas ele deveria ter percebido que este homem não era o que parecia; só a voz deixara bem claro que qualquer traição teria consequências graves. E para piorar as coisas, retivera metade do dinheiro que prometera a Halli pela ajuda e pelo equipamento, dizendo-lhe que depois receberia o resto. Mas somente se Halli mantivesse a boca fechada. Isso fora o suficiente para que ele nada dissesse.
Mas agora fora obrigado a enfrentar aquilo de que sempre suspeitara… que isto não era uma brincadeira. Quando o homem foi buscá-lo a casa, o convenceu a entrar no carro e arrancou, ele percebeu. Quando chegaram ao destino e ele o obrigou a mandar uma mensagem aos pais a dizer que ia de férias para um chalé onde não havia rede telefónica. Naquele momento, tudo foi gritantemente óbvio. Se não estivesse tão perplexo, teria recusado, saltado do carro e corrido sem parar. Como é que podia ter sido tão estúpido? E por que raio é que abrira a porta ao homem quando ele aparecera no seu quarto?
No fundo de si, sabia a resposta. Desejara que o homem lhe tivesse dito para não se preocupar, que a partida estava quase a acabar e que em breve receberia o resto do dinheiro. Ele precisava tanto dele. Já gastara a primeira metade a pagar dívidas, a comprar um casaco novo e sapatos, e a deixar um sinal para um computador que em breve estaria pronto para entrega. Nessa altura, teria de pagar o restante. Fora por isso que abrira a porta. Tão simples quanto isso. Dinheiro. E fora por isso que, ignorando todas as dúvidas, concordara em pregar esta partida ao amigo.
Estes pensamentos deram então lugar a outros: estaria Karl no mesmo barco que ele? O plano do homem fora apanhá-lo a ele? Merda. Para quê? Para matá-lo?
Halli tentou afastar a ideia de que o homem pudesse ser capaz de homicídio. Se fosse, Halli estava metido em merda da grossa, e Karl também. Não conseguia imaginar porque é que alguém quereria matar o amigo, mas isso já não interessava. O que interessava agora era que o homem tinha uma razão clara para querer Halli fora do caminho. Afinal, Halli podia denunciá-lo. Apesar de ele poder ser pouco credível, havia sempre uma hipótese, e o homem não iria querer correr esse risco.
Ele apenas tinha de encontrar uma forma de conversar com o homem. Prometeria manter a boca calada e iria cumprir a promessa. Mesmo que o homem matasse Karl. Halli ficaria calado como um túmulo, manteria a cabeça baixa, não diria uma palavra. Se ao menos conseguisse convencer o homem disto.
Aguçou os ouvidos. O que era aquilo? O barulho de um motor? Depois ouviu uma chave a ser enfiada na fechadura e o bater da corrente que fora colocada à volta dos puxadores das portas quando eles tinham chegado e o homem o convencera a entrar. Dissera que o rádio transmissor estava ali dentro e não funcionava; Halli tinha de ajudá-lo a resolver aquilo e receberia mais dinheiro pelo incómodo. Mais uma vez, a ganância fora o seu erro.
Antes de a porta se abrir, Halli tentou desobstruir o nariz. Preferiria não ter de o fazer diante do homem. Era uma estupidez, claro, mas ele não conseguia evitar.
Houve o clique de um interruptor. Por isso, Halli deduziu que estivera às escuras e, estranhamente, o pensamento confortou-o. Era mais fácil desculpar-se pela sua incapacidade de ver alguma coisa do que se estivesse ali vendado em plena luz.
Ouviu os passos do homem a aproximarem-se e pararem diante dele. Halli calculou que o homem se curvava. Esperou com impaciência nervosa que ele falasse. Talvez para lhe dizer que iria dar-lhe de beber.
— Ah, estás aqui. Que sorte termo-nos cruzado.
O tom sarcástico era novo e Halli não sabia como interpretá-lo. Poderia ser um bom sinal? Halli começou a fazer barulhos com a boca para indicar que queria falar, mas acabou por soar como um porco amordaçado num impasse com o empregado de um matador.
— A tua orelha está quase rasgada ao meio.
Agora, a voz do homem parecia mais normal, mas estranhamente abafada, como se estivesse a falar através de uma máscara. A tentativa de Halli de fazer um barulho surgiu como um patético gemido.
— Já não vais precisar da parte de cima. Aliás, nem da de baixo. — O homem pareceu suspirar. — Nem de mais nada.
Calou-se e, pouco depois, Halli ouviu passos de novo, desta vez a afastarem-se. Depois, ouviu um clique que pensou ser o interruptor, indicando que o homem se ia embora outra vez sem lhe oferecer uma hipótese de implorar por misericórdia. Quase engoliu o enchimento que tinha na boca numa tentativa desesperada de atrair a atenção do homem e fazê-lo voltar. Mas depois o cérebro processou o som com maior precisão e ele pensou que, em vez de apagar a luz, o homem ligara alguma coisa. Mas o quê?
Os passos aproximaram-se e, sem aviso, o homem estava mesmo ao lado dele. Halli começou a tremer, primeiro de medo, depois de dor enquanto o homem lhe agarrou na orelha magoada. Estava a ser terrivelmente desajeitado se a intenção era pôr um penso ou uma ligadura. Mas não era isso que o homem tinha em mente. Halli sentiu uma coisa gelada contra o lóbulo da orelha dorido; não só fria, mas também pontiaguda. Queixou-se o mais alto que pôde, mas claro que isto de nada ajudou. Silenciando-se, fez um esforço para se manter quieto; talvez o seu tremor incontrolável tivesse feito com o que homem lhe acertasse na orelha. Ele não podia tencionar magoá-la ainda mais, certo? Talvez fosse apenas a tesoura que ele iria usar na fita. Talvez Halli ainda viesse a ter uma hipótese de implorar por clemência. Fez um esforço sobre-humano para controlar o tremor e os gemidos. Deveria conseguir. Havia tanto em jogo… tudo estava em jogo.
Ficou sentado sossegado, mantendo-se quieto.
— Assim é melhor. Obrigado. Ajuda-me muito.
Halli esperava sentir uma faca ou uma tesoura a serem inseridas debaixo da fita e a começarem a cortar. Mas quando chegou o toque, não era onde ele esperava e revelou-se de uma natureza muito distinta. A picada no lóbulo da orelha foi esquecida, substituída por uma agonia inqualificável dentro da cabeça dele. Ouviu um clique e tudo o que acontecera antes se tornou insignificante.