30.
A PIZA COLARA-SE À CAIXA DE CARTÃO. Karl tentou tirar o queijo derretido pegado ao fundo, mas a única coisa que conseguiu foi ficar com os dedos gordurosos e a tresandar a pepperoni. A fatia recusou-se a sair sem trazer um pedaço de cartão agarrado. Frustrado, viu Börkur enfiar uma fatia pela boca adentro, mastigando e cuspindo bocados de cartão antes de engolir. Karl desistiu de tentar descolar a piza. Já matara a fome; estava só a ser ganancioso. Em vez disso, esvaziou a sua coca-cola e entreteve-se a esmagar a lata contra a mesa.
Tinham mandado vir piza quando a fome começara a apertar e já estavam fartos de estar na cave à espera de que a emissora de números ganhasse vida. O aparelho continuou teimosamente silencioso. Talvez a emissão tivesse sido rastreada e desativada pela Companhia de Correios e Telecomunicações. Karl duvidava que o emissor tivesse pedido uma licença, mas a natureza esporádica das emissões e a sua curta duração tornavam-nas difíceis de localizar. A menos que tivessem tido início muito antes de ele começar a ouvi-las. Fosse qual fosse a razão, Karl sentiu-se aliviado. Mas, apesar de tudo, uma parte dele sentia falta delas. Só um pouco. Não era bem um sentimento de perda, mas sobretudo uma sensação de vazio na sua vida agora que esta estranha aventura parecia estar prestes a chegar ao fim. Quando isso acontecesse, ele voltaria a ser um indivíduo comum, aborrecido, por quem ninguém se interessava. Por mais perturbadoras que as emissões tivessem sido, pelo menos haviam feito com que se sentisse importante; haviam dado um sentido à sua vida, que parecia agora evaporar-se… se a estação tivesse sido, de facto, silenciada para sempre.
Börkur deu mais uma dentada e começou a mastigar quando, de repente, gaguejou como se tivesse tido uma epifania.
— Ei!
Karl foi presenteado com a imagem de uma piza meio mastigada, que teria dispensado de boa vontade.
— Trouxe-te o telefone.
Börkur levantou-se, limpou nas calças a maior parte da gordura dos dedos e saiu disparado para o hall. Reapareceu com um ar triunfante e o telemóvel na mão, atirou-o para cima da mesa e serviu-se de mais uma fatia, sem se incomodar com o pedaço de cartão agarrado a ela.
Karl inspecionou o telemóvel. Vira-o apenas de raspão no carro, na noite em que Börkur o encontrara, mas nem por isso lhe parecia mais familiar à luz intensa da cozinha. A capa cor-de-rosa, coberta de cristais, revelava, sem sombra de dúvida, que pertencia a uma senhora ou a uma rapariga.
— Isto não é barato.
— Bem podes dizê-lo.
Depois de empanturrado, Börkur recostou-se com um ar satisfeito. O molho de tomate nos cantos da sua boca fazia, de forma desconcertante, lembrar sangue, como se ele tivesse mordido um pedaço de vidro sem querer.
— Talvez pertença a uma gaja rica que comprou outro porque não quer dar-se ao trabalho de o procurar. Típico.
Börkur tinha uma atitude peculiar no que tocava a gente rica… herdada dos pais, suspeitava Karl. Nas raras ocasiões em que pessoas endinheiradas eram mencionadas nas suas conversas, ele exprimia sentimentos como este, que não tinham nada a ver com nada. Regra geral, Karl não se dava ao trabalho de o contradizer; não se sentia propriamente compelido a defender aqueles que se safavam melhor do que ele.
— Pois, talvez. Mas acho que ela ficaria contente por recuperá-lo. Deve ter uma série de coisas que não podem ser substituídas. Tipo fotografias e outras cenas.
Börkur fungou, franziu a testa e esfregou o nariz.
— Não sentes um cheiro estranho? Como se alguma coisa estivesse a arder?
Karl inspirou.
— Não. — Inspirou de novo. — Espera, tens razão. Argh! Cheira a queimado ou cheira a mijo? Deve vir de lá de fora. — Fechou a janela da cozinha. — Merda, um gato deve ter mijado a parede toda ou assim. Que nojo. — Ligou o telemóvel e o ecrã iluminou-se. — Está a pedir um código.
É claro que estava.
— Tenta «um, dois, três, quarto».
Karl assim fez, assumindo que ninguém seria idiota o suficiente para utilizar uma combinação tão óbvia.
— Não deu. — Tentou várias outras combinações, sem sucesso. — É inútil. — Pousou o telemóvel. — Vou tirar uma fotografia e publicar no Facebook. Se ninguém o reconhecer, posso levá-lo à Polícia.
Tinha trinta e três amigos no Facebook, quase todos estudantes de Química que haviam criado um grupo onde partilhavam trabalhos de casa e apontamentos, que foi a razão que o fizera aderir. Apenas o tempo poderia dizer se viria a ter outros amigos. Mas as probabilidades de algum desses trinta e três amigos conseguir desvendar o mistério do telemóvel eram muito remotas.
Teria de descobrir uma das amigas da sua mãe no Facebook e enviar a fotografia para ela partilhar. Não lhe agradava a perspetiva, já que se arriscava desencadear uma torrente de perguntas sobre a sua vida. Ainda assim, poderia despender alguns minutos a magicar respostas que pintassem um cenário mais agradável do que a realidade. Não suportava a cortesia cínica delas. Nas raras vezes que se cruzava com alguma, conseguia perceber que ficavam doidas por ligar às outras e mexericar sobre o quão miserável e fraco o pobre Karl parecia.
De súbito, o seu telefone tocou. Karl olhou para o ecrã, temendo uma chamada de Arnar e na esperança de que fosse Halli. O número que apareceu não pertencia a nenhum dos dois.
— Está?
— Boa noite. Quem fala?
Karl não reconheceu a voz.
— O meu nome é Karl. Será que marcou o número errado?
— Não. O meu nome é Ríkhardur e estou a ligar da Polícia. Soube que nos contactou relativamente à investigação de homicídio em curso.
— Sim. É verdade. — Karl murmurou a palavra «Polícia» e Börkur pareceu não perceber, embora nunca se conseguisse perceber: ele tinha uma compreensão notoriamente lenta. — Querem que vá aí prestar declarações?
— Não, não há necessidade. Comecemos por definir o que é que acha que devemos saber.
O tom do homem era estranhamente robotizado, lembrando a Karl os leitores das emissoras de números. A cada sílaba era dada a mesma inflexão. Se o homem alguma vez se despedisse do emprego, poderia sempre arranjar trabalho a dizer as horas.
— Sei que o rádio tem falado consigo.
Na voz do homem não se detetava qualquer indício de condescendência ou incredulidade. Um discurso seco tem as suas vantagens. Quando Karl contactara a Polícia pela primeira vez, a pessoa com quem falara mal conseguira disfarçar o riso.
— Por onde quer que comece?
Karl tentou organizar os eventos numa narrativa coerente na sua cabeça, mas não serviu de nada; não era preciso verbalizá-los para perceber como pareciam absurdos.
— Pelo princípio, se não se importa.
— Bom. Eu tenho um transmissor e encontrei uma emissora de números da Islândia.
— Uma emissora de números?
— Uma emissora que emite séries de números. Em código. Principalmente para espiões e contrabandistas.
— Compreendo. Alguém está a espiá-lo, é isso?
— Não. Não a mim. Podem ser transmissões entre continentes. Têm origem no estrangeiro. Não têm nada a ver comigo.
— Não disse que era islandesa?
— Sim. Esta é. O que é muito raro. Foi onde ouvi ler o número de identificação da senhora que vi na televisão, assassinada na semana passada. E o meu número de identificação também. Foi assim que percebi.
— Então, essa emissora islandesa tem vindo a espiá-lo.
— Não. — Karl calou-se e fez um esforço para se recompor. Se perdesse a cabeça, o homem poderia perder o interesse e desligar. A conversa já estava a correr suficientemente mal. — Ninguém está espiar ninguém.
— Então, qual é o sentido de ter uma emissora espiã?
Karl inspirou.
— Oiça, eu não estou doido. É um método de trocar mensagens de forma a não serem rastreadas. É mais seguro do que chamadas telefónicas ou emails.
— Terei entendido corretamente que está a falar de uma emissão de rádio?
— Não apenas de uma. De muitas. Em onda curta.
— E em que sentido é que as emissões de rádio são mais seguras do que as chamadas? Qualquer um pode ouvir, certo? Ou é a única pessoa que pode ouvi-las?
O homem continuava a encurralá-lo a um canto.
— Não, claro que não. Não sou o único que pode ouvi-las. Qualquer pessoa que tenha um rádio de ondas curtas pode sintonizar estas estações. O que as torna seguras é que as transmissões são indecifráveis.
Karl nem precisou de ver o olhar aterrorizado de Börkur para perceber que estava a enterrar-se. A menos que a expressão do amigo fosse apenas uma reação ao odor desagradável que ainda pairava no ar, embora a janela estivesse fechada.
— A sério, eu ouvi o número de identificação da tal Elísa Bjarnadóttir, depois o meu, depois o número de identificação de uma mulher chamada Ástrós. Não me recordo do apelido, mas posso pesquisar.
Ele não mencionou Jóhanna Hákonardóttir. Essa informação só a ele pertencia. Se a Polícia decidisse investigar a relação dela com o caso, havia o risco de a informação chegar a Arnar. Isso não poderia acontecer em circunstância alguma. Karl até tivera o cuidado de rasgar em pedacinhos o papel com o nome dela e deitá-lo num dos caixotes de lixo do campus da universidade, juntamente com a certidão de nascimento. Não precisava deles para se lembrar dos nomes. Por mais absurdo que parecesse, queria assegurar-se de que Arnar não descobriria nada, caso aparecesse sem avisar. Era perfeitamente capaz de voar para a Islândia apenas para vasculhar o lixo à procura dos papéis que Karl deitara fora.
— Ástrós?
Finalmente a voz do outro lado revelou algum interesse. Ao fundo, Karl conseguia ouvir um ruído crescente de barulho e vozes entusiasmadas, como se algo estivesse a acontecer na esquadra de Polícia. O homem fez uma pausa e, depois, pediu a Karl que aguardasse um momento. O barulho foi interrompido. Karl fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Nunca deveria ter ligado para a bófia. Era preciso uma pessoa bem mais inteligente do que ele para explicar tudo de forma a que levassem a história a sério. Talvez devesse ter contratado um relações públicas. O homem voltou ao telefone.
— Onde está, Karl?
— Onde? Em casa. — O homem leu a morada dele e perguntou se a informação estava correta. Karl confirmou que sim e, a seguir, percebeu que o homem voltava a tapar o telefone. — Há algum problema?
A mão foi retirada e seguiu-se um barulho de murmúrios e respiração acelerada.
— Não, nada disso. Continue. Estava a falar de números de identificação.
— Não se trata apenas de números de identificação. Existem mensagens também, num código que consegui decifrar. — Não conseguiu esconder o orgulho na sua voz. Poucos podiam gabar-se de ter resolvido aquele quebra-cabeças.
Contudo, a alegria de Karl foi de pouca dura. Quando o agente falou novamente, usou um tom paternalista, como se estivesse a falar com uma criança.
— É bom nisso, não é? A decifrar códigos, quero eu dizer?
Consciente de que estava a fazer asneira, Karl sentiu uma crescente onda de pânico. Não que alguma vez tivesse estado em vantagem na conversa.
— Não, não sou bom a decifrar códigos. Foi apenas uma coincidência. Sou estudante de Química e foi assim que o decifrei. Era a tabela periódica.
— Certo, compreendo. Significa que usou a química para decifrar o código. Foi inteligente.
— Não acredita numa palavra do que estou a dizer, pois não?
— No que acredito ou deixo de acreditar, é irrelevante. O meu trabalho consiste em tomar nota das suas declarações e tentar entendê-las. Não há pressa, tome o tempo que for necessário e, se achar que percebi mal, diga-me.
Karl endireitou-se e esfregou os olhos. Ainda lhe ocorreu dizer ao homem que tudo não passara de um grande mal-entendido. Ou de uma partida. Isso faria com que eles eliminassem os registos ou poderia ele ser acusado de obstruir uma investigação de homicídio? Poderia sempre partilhar uma cela com Halli, quando este fosse condenado. A piza pesava-lhe no estômago e não conseguia deixar de sentir o cheiro nauseabundo que vinha do exterior.
— Estou a tentar explicar como tudo aconteceu. — Abriu os olhos e fitou Börkur. — De qualquer forma, não fui o único a ouvir. O meu amigo estava comigo em duas ocasiões. Ele pode confirmar o aconteceu.
Finalmente parecia ter conseguido apanhar o homem desprevenido. Desta vez, não foi tão rápido a responder.
— Compreendo. Posso perguntar se estavam sob a influência de álcool ou drogas quando isso aconteceu?
— Não, não estávamos.
Nem pensar que ele iria admitir que tinham fumado um charro. Não tinha nada a ver com o caso; ouvira a maioria das emissões com a cabeça limpa. Börkur é que não. A sua ansiedade voltou a crescer. Será que Börkur contaria a verdade, caso fosse interrogado? O pensamento não era encorajador. Börkur começaria bem, mas logo se iria abaixo sob interrogatório. Será que eles interrogavam testemunhas comuns? Provavelmente não. Nenhum deles era suspeito de atividades criminosas. Corrigiu-se a si próprio. Börkur não seria suspeito, apenas ele próprio.
— Deseja que vamos à esquadra? Os dois? Seria mais fácil explicar cara a cara.
— Não, por agora não será necessário. Continue apenas com a sua explicação. Depois, poderemos decidir o que fazer. Não me compete convidar-vos a vir prestar declarações. Outros tomarão essa decisão, se necessário.
A conversa continuou no mesmo tom, com Karl explicando e o homem questionando todas as declarações. Karl ficou com a sensação de que o homem estava deliberadamente a prolongar a conversa, como se tivesse sido instruído para manter o diálogo por um certo período de tempo. Mas porquê? Talvez a chamada estivesse a ser utilizada para fins de treino. Mas o homem soava demasiado autoritário para ser um novato.
Quando a campainha da porta tocou, o telefone apitou avisando que a bateria estava fraca.
— Tenho de desligar. O meu telemóvel está quase sem bateria e está alguém a tocar à porta. De qualquer forma, penso que não tenho mais nada a acrescentar.
— Oh, isso é o que veremos.
Karl ficou desconcertado com o súbito tom de gozo naquela voz automática. Mas antes mesmo de poder responder, o homem desligou.
— Deus, isto foi…
Deixando Börkur a adivinhar a palavra correta, Karl foi à porta. Nem teve hipótese de ouvir o que o amigo ia dizer. Os homens que estavam do outro lado mostraram-lhe um tipo de identificação que ele não conseguia ler.
— Karl Pétursson, está detido por suspeita de envolvimento nos homicídios de Elísa Bjarnadóttir e Ástrós Einarsdóttir…
— O quê?
Karl cambaleou para trás e os homens entraram atrás dele, exibindo os seus crachás de identificação, como se fossem padres católicos brandindo crucifixos contra os possuídos. Isto não podia estar a acontecer.
Para piorar a situação, a sua dor de cabeça tornara-se insuportável.