Uma das coisas ruins do restaurante de Don Pepe era que, todas as vezes que alguém abria a porta, tocava um sininho, fazendo um barulho irritante, que na hora do almoço tornava-se insuportável. Eu não entendia a necessidade do mecanismo, pois Don Pepe, encastelado atrás do balcão, cuidava do caixa e dava ordens, através de uma janela verde minúscula, a uma cozinheira invisível, enquanto Claudia, a garçonete de idade indeterminada, desfilava sua tristeza por entre os fregueses, equilibrando bandejas com carne, batata e verdura — e isso era outra das coisas ruins, o prato do dia, sempre o mesmo.
Dolores é uma pequena cidade no extremo sudoeste do Uruguai, recortada em ruas planas de quadras idênticas, onde não há quase nada para fazer. Eu me encontrava há uma semana hospedado num hotel modesto, próximo à praça da igreja e, da janela do meu quarto, nos fins de tarde, observava a passagem de enormes caminhões carregados de farinha de trigo. Logo no primeiro dia, Don Pepe me falou, entusiasmado, de um morador brasilero, El Gordo, Quer dizer, ele não é brasilero, mas conhece bem o Brasil, inclusive fala brasilero, e me prometeu apresentá-lo.
Na sexta-feira, abandonando o balcão, escancarou a porta com estardalhaço e, em seguida, voltou, acionando o sininho, conduzindo um homem de cerca de um metro e setenta de altura, ligeiramente gordo, pouco menos de quarenta anos, meio calvo, dentes amarelados de fumo. É este o brasilero, apresentou, altivo. Me levantei, cumprimentando-o, e ele, constrangido, explicou, Não sou brasilero, não, apenas conheço o Brasil. Satisfeito, Don Pepe afastou-se. Convidei-o a se sentar, puxou uma cadeira, quis que me acompanhasse na cerveja, naquele dia não iria trabalhar mais, mas ele recusou, esclarecendo que não tomava bebida alcoólica, e pedindo a Claudia uma garrafa de pomelo, um refrigerante local. Então, conhece o Brasil?, indaguei, para puxar assunto, e ele, retraído, respondeu, É, uma vez fui de ônibus até São Paulo… Tem uns cinco anos já… Ah, São Paulo! Eu moro no Rio de Janeiro. Não pensou em visitar o Rio? Contrariado, afirmou, olhos baixos, Não foi uma viagem de turismo…
Sitiados pelos ruídos de pratos, garfos, facas, vozes, orquestrados pelos gritos de Don Pepe e pelo tilintar do sininho, ficamos em silêncio. Embaraçado, El Gordo perguntou, O que vai fazer amanhã? Nada, declarei. Então, para se livrar daquela situação de desconforto, propôs, Ao meio-dia, passo no hotel, em que hotel o senhor está?, vamos fazer um asado na minha casa, o senhor gosta de carne, não? Nem sequer me ocorreu rejeitar, por delicadeza, o convite, tão aflito me achava. Ele se levantou, apertou minha mão, e saiu, acionando o sininho.
No dia seguinte, sob o esturricante sol do começo de dezembro, montei na garupa da Yasuki 125 cilindradas, e, após percorrermos sete quadras, El Gordo parou em frente a uma casa simples, há muito carente de pintura, assentada na calçada estreita, que permitia ingresso direto à porta da sala. Empurrou o portão lateral, descortinando um pequeno quintal malcuidado, cercado por um muro baixo, e um viralata acorreu até nós, pulando e lambendo e cheirando e fazendo festa, apesar de El Gordo repreendê-lo com carinhosa severidade, Chega, Tigre! Chega! Depois de estacionar a motocicleta à sombra de uma amoreira solitária, disse, Vamos entrar, subindo três degraus para alcançar a cozinha, onde deparamos com uma mulher magra, de uma beleza melancólica, trinta e poucos anos, cabelos louros, apagados olhos castanhos, que escorria água quente para a garrafa térmica. Cristina, minha esposa. Apertei sua mão, ainda úmida, declinei meu nome, ela sorriu, encabulada. El Gordo pendurou o molho de chaves no gancho de um quadro com o escudo azul do Nacional, de Montevidéu, conferiu as horas no relógio de parede, acendeu, ávido, um cigarro, e berrou, Julio!, Natalia!, açulando duas curiosas e assustadiças cabeças louras surgidas por detrás da cortina de plástico que separava os cômodos. Os herdeiros!, exibiu-os, orgulhoso.
Escaldando a erva, Cristina perguntou se eu desejava provar. Respondi que havia experimentado e julgava muito amargo. Então, ela passou o mate para El Gordo, que, chupando a bomba, elogiou a inteligência de Natalia, A melhor da classe, e o talento de Julio para o futebol, Um excelente defensor, tem raça, técnica, visão de conjunto. Natalia indagou sobre minha profissão e o que fazia em Dolores, Julio demonstrou profundo conhecimento sobre times e jogadores brasileiros. Cristina, de posse da cuia, afirmou que o marido sabia português e pediu que falasse comigo. Intimidado, esquivou-se, mas, como teimávamos, pronunciou algumas frases num portunhol incompreensível, levando os filhos às gargalhadas. Afinal, ele também achou graça e, afetando zanga, convocou, Agora basta, vamos acender o fogo!
Regressamos ao quintal, Tigre, excitadíssimo, trovejava de um lado para outro, rodeamos a casa e nos instalamos sob uma varanda improvisada, coberta por folhas de zinco. Com desvelo, El Gordo, bermuda, camisa semiaberta que deixava à mostra um cordão de ouro com a medalha da Virgen de los Treinta y Tres, sandálias franciscanas, tomou uma escova de cerdas de aço e passou a limpar a parrilla. Julio aproximou-se com paus de lenha, depositou-os no chão, e saiu correndo para pegar jornais velhos. Sem saber o que fazer, apartei-me, disposto a explorar, com dissimulada atenção, cada recanto do lugar, mas uma música distante, que falava de amores perdidos, saudades, solidão, me tornou, de repente, ensimesmado… Dei meia-volta, apanhei uma das quatro cadeiras de plástico brancas espalhadas pela grama indomada, arrastei-a para junto de El Gordo e me pus a observá-lo, com admiração, instruindo o filho sobre a melhor maneira de confeccionar uma isca de papel para obter com sucesso a chama inaugural.
Entretido, nem percebi quando um senhor espigado, cabelos brancos, barba agreste, grandes olhos verdes, chegou, perguntando, efusivo, Gostando da nossa cidade? Ah, disse El Gordo, Esse é Don Carlos, pai de Cristina. Sogro dele, completou o velho, simpático, cumprimentando-me, Muito prazer! Já ofereceram algo para tomar? Aborrecido, El Gordo contestou, Ê, Don Carlos, nós nem atiçamos o fogo ainda, mas ele, ignorando o resmungo do genro, continuou, Trouxe vinho!, vinho uruguaio! Assenti com a cabeça e, contente, ele se dirigiu à cozinha. Don Carlos é uma boa pessoa, El Gordo confidenciou, mas às vezes bebe um pouco demais… fica inconveniente… Sem que notássemos, Cristina avizinhava-se, carregando dobrada uma toalha xadrez, branca e vermelha, Ele também bebia bastante, falou, melindrada, apontando o marido, e, esticando o tecido sobre a mesa de madeira, completou, Só parou por causa do acidente.
Don Carlos retornou, acompanhado por Julio e Natalia, trazendo uma garrafa de vinho e uma de Pepsi-Cola, e seis copos. Ruidoso, encheu três com tinto e três com refrigerante e propôs, eufórico, um brinde, À amizade de Brasil e Uruguai! Em seguida, Cristina autorizou os filhos a assistir televisão e eles desembestaram casa adentro, seguidos, espalhafatosamente, por Tigre. El Gordo, consultando o relógio de pulso, buscou, aliviado, um cigarro no maço, acendeu-o com impaciência, e distraiu-se montando a grelha ao lado das achas de madeira que agora queimavam céleres, espalhando um cheiro bom pela infinita tarde azul.
Então, indagou Don Carlos, de que parte do Brasil vem? Moro no Rio, respondi. Ah, Rio de Janeiro! Maracanã… Eu tinha catorze anos quando ganhamos a Copa do Mundo. Vivia em Canelones, na época, ouvimos o jogo pelo rádio. Foi uma festa quando o Ghiggia fez aquele gol… Que tragédia para os brasileiros, não? É verdade que os torcedores largaram os calçados no estádio, porque não eram dignos de pisar o chão lá fora com eles? Esclareci que aquilo parecia uma lenda, sem o convencer. Cristina, que ajudava El Gordo a pôr chorizo, morcilla e provolone na grelha, ralhou, Papá, que conversa! Isso foi há mais de cinquenta anos! É, ele suspirou, e foi a última vez que fizemos alguma coisa que preste, minha filha, a última… Depois, nos tornamos o quê? Um país sem importância… El Gordo, amuado, quis argumentar, mas Don Carlos antecipou-se, O senhor notou que somos uma nação de velhos e crianças? Não há jovens, vão todos embora. Vão para a Espanha, para os Estados Unidos, para o Canadá… Até para a Austrália vão… Não têm futuro aqui. Cristina, sugando a bomba do mate, reagiu, Não é bem assim, papá… Claro que é… A ditadura acabou com o Uruguai! Nesse momento, El Gordo falou, irritado, Don Carlos, o senhor sabe que nesta casa não se discute política! O velho, desgostoso, ingeriu o resto do vinho, sussurrou, entre dentes, É, não se discute, e calou-se.
Ouvíamos o crepitar das chamas na parrilla. Cristina despejou água quente na cuia e a levou ao pai, que, afastado, de pé, mirava casmurro o céu sem nuvens. Fora de hora, um galo cantou. Perguntei então, rompendo com ansiedade o silêncio, como o casal havia se conhecido. Cristina desconversou, a face enrubescida, alegando que tratava-se de uma história comum. Porém, diante de minha insistência, contou, em linhas gerais, que quando cursava o último ano de licenciatura em enfermagem, em Montevidéu, uma amiga, Paloma, Lembra dela?, apresentou-os. Ele já tinha esse apelido naquele tempo, embora hoje esteja bem mais magro, comentou, divertida. Reconheceu que não simpatizou de imediato com o futuro marido, porque ele fumava muito e só falava sobre futebol, no que foi repreendida, com troça, por El Gordo, Ê, isso não é verdade! De qualquer maneira, começaram a namorar, sem muita esperança da parte dela, porque, diplomada, voltaria para Dolores, onde a família morava, a mãe ainda viva, e Don Carlos mantinha um pequeno comércio. Desesperado com a perspectiva de se separarem, El Gordo, que sobrevivia como escriturário numa firma de contabilidade, propôs que noivassem. No ano seguinte, ela já trabalhando no hospital de Dolores, meteu-se a estudar e passou no concurso do Banco República, tendo sido designado, no começo, para Minas, a trezentos e cinquenta quilômetros, onde permaneceu por um ano, até conseguir transferência para Fray Bentos, a uma hora de distância. Então se casaram, nasceram Julio, Natalia… Durante dois anos e meio, El Gordo viajava segunda-feira cedo para Fray Bentos e regressava sexta-feira, após o expediente. Até que houve o desastre…
Entediado com a paradeira das crianças, Tigre retornara, e aguardava, atento, que lhe oferecessem algo para comer, que abocanhava e engolia sem mastigar. Ao longo do relato de Cristina, Don Carlos desaparecera, mas, pouco antes do final, ressurgiu com outra garrafa de vinho e a térmica renovada de água quente, pondo ambas sobre a mesa. El Gordo colocou uma partida de chinchulín e riñones na grelha, e, desviando o assunto, disse, Estou de dieta, já perdi quase quinze quilos… Além disso, estou fumando apenas de hora em hora… Logo será conhecido como El Flaco, comentou Don Carlos, sardônico. Enquanto comíamos pedaços de vacío, regados com chimichurri, e pão, Cristina especulou se eu sabia do destino das personagens de Alma Gêmea. Apressado, Julio aproximou-se, interrompendo a mãe, que nos explicava a trama da novela brasileira que a Teledoce transmitia, Papi, telefone, Don Alcides! El Gordo voltou-se para o sogro, entregando-lhe, esbaforido, o tenedor, enquanto Cristina, irônica, comentava, É a amante dele, o futebol…
Roncando a bomba do mate, Don Carlos passou a cuia para a filha, e falou, incomodado, Desculpe ele, é um trauma… o pai sumiu durante a ditadura… Cristina completou, Ele chegou a viajar para o Brasil, foi até São Paulo, sem êxito. Uma frustração… Dois anos levantando pistas… Don Carlos destacou, comovido, Dizem que a mãe dele, Doña Bárbara, durante muito tempo ainda acreditava que qualquer dia um carro ia parar na porta da casa, buzinando, e seria o marido de regresso. Mas a ditadura se prolongou, os vizinhos se distanciaram, ela teve que mudar para o subúrbio… Doña Bárbara só alcançou criar o filho sozinha porque era ótima costureira, arrematou Cristina, ao escutarmos a voz de El Gordo, Resolvido o problema! Don Alcides conseguiu o ônibus! Que bom, a mulher o felicitou. Por que não convida nosso amigo para ir com você?, disse Don Carlos, as mãos em meus ombros, Seria um ótimo passeio para ele!
Sem jeito, El Gordo alegou que não sabia se eu gostava tanto assim de futebol, balancei a cabeça afirmativamente, para querer assistir um jogo de garotos, dei de ombros, numa demonstração de que não me importava, talvez influenciado pelo calor da tarde, a fumaça olorosa da parrilla, o céu limpo, talvez por me sentir meio zonzo. Animado, ele contou que treinava, há dois anos, o time sub-17 do Progreso, que no dia seguinte viajaria até Mercedes para um amistoso, O último do ano!, contra o Racing, Quarenta minutos de ônibus, informou, Se quiser nos dar a honra da companhia… A partir daí, a conversa transcorreu cordial. Don Carlos, cada vez mais à vontade, relatou casos engraçados de sua infância e adolescência em Canelones, Cristina recordou os tempos em que estudava em Montevidéu, Nunca mais voltei lá, constatou, nostálgica, enquanto El Gordo pastoreava o fogo, examinando de quando em quando o relógio de pulso. Afinal, quando o sol agonizava por detrás dos telhados, empoleirei na garupa da motocicleta e El Gordo me desembarcou no hotel. Entrei no quarto e deitei na cama, disposto a ver alguma coisa na televisão.
Acordei assustado com o despertador, a luz da manhã cobrindo meu corpo ainda cansado. Levantei com má vontade, tomei um banho breve, nem barba fiz, bebi uma xícara de café, mastiguei uma tostada, atravessei a praça e às seis e cinco me encontrava de pé, em frente à igreja, rodeado por vozes estridentes emanadas de rostos cravejados de espinhas. Cadê Julio?, indaguei. Prancheta na mão, caneta e apito pendurados no pescoço, El Gordo coordenava o tumulto, enfiado no uniforme do time, camisa de largas listras verticais verdes e vermelhas, separadas por finas listras brancas, calça de treinamento verde. No pasa nada, respondeu, Está de castigo, brigou com a mãe, emendou, amolado.
Mais vinte minutos e o ônibus deixava Dolores pela Ruta 21. Desassossegados, os garotos falavam alto e zombavam uns dos outros. Acomodado na última poltrona, de maneira a vigiar a algazarra, El Gordo me expunha os trunfos de seu time para enfrentar o adversário difícil, exaltando as qualidades do Racing, como para valorizar uma possível vitória ou minimizar uma indesejada derrota. Quando, enfim, a paisagem se firmou, desdobrada em monótonos campos de trigo, o alarido desapareceu, substituído pelo ruído do motor do ônibus.
Cevando a erva, El Gordo disse, como para si mesmo, Sabés, ainda hoje, quando passo por esta estrada, sinto uma coisa estranha. E, virando-se para mim, explicou que aquele tinha sido o caminho usado durante dois anos e meio para ir e voltar de Fray Bentos. Foi na saída de Mercedes que sofri o acidente, falou. Reparando em meu interesse, prosseguiu, entre goles de mate. Cristina, grávida de sete meses de Natalia, passou o fim de semana reclamando de dores. Regressei para Fray Bentos preocupado. Na quarta-feira, como todo dia, deixei o serviço e parei no boliche do Paraguayo, onde tomava duas, três cervejas, jogando conversa fora antes do jantar. De súbito, a filha da dona da pensão apareceu nervosa, haviam telefonado recomendando que eu fosse para Dolores, o bebê estava para nascer a qualquer momento. Entrei no meu Peugeot 306, que chamava de El Rojo, por causa da cor dele, e ganhei a estrada. Lembro que fazia uma noite clara, lua cheia, e eu vinha a mais de cento e vinte quilômetros por hora, ouvindo uma fita de Los Olimareños. As coisas aconteciam como planejado, em breve seria transferido para Dolores, negociávamos a compra de uma casa… Me sentia feliz, pleno… De repente, algo cruzou a pista, ou foi impressão, não sei… Acordei três dias depois no hospital de Mercedes… Concussão cerebral, a tíbia direita fraturada, pequenos cacos de vidro espalhados pela cabeça… Alguns permanecem até hoje… Fiquei dez dias internado, antes de ser conduzido de ambulância para Dolores, onde continuei mais vinte dias em repouso absoluto, vigiado por minha sogra, já muito doente, que ainda revezava os cuidados com a neta recém-nascida, com Julio, de colo, e com Cristina, de resguardo… Assustado, decidi parar de beber, nunca mais pus uma gota de álcool na boca… No começo foi difícil, mas hoje já não sinto falta… As primeiras casas apontaram no horizonte, Mercedes!, exclamou, acendendo um rastilho que explodiu em gritos, berros, urros, Progreso!, Progreso!, Progreso! Marcado para as nove e meia, o jogo, muito disputado, terminou com a vitória do Racing, dois a um. Na volta, embora veloz, o ônibus, envolto numa espessa nuvem de tristeza, parecia rodar lento, como se a querer retardar a chegada. Braços cruzados, El Gordo fingia dormir.
Na semana seguinte viajei para Montevidéu. O sábado dediquei a conhecer o Mercado do Porto e o Museu Torres García. À noite, andei devagar pela Rambla Mahatma Gandhi, sorvendo a brisa, e jantei um puchero num restaurante em Punta Carretas, acompanhado de duas taças de vinho e finalizado com um chajá. A tarde abafada do domingo gastei garimpando lembranças entre as quinquilharias da feira da rua Tristán Narvaja. Não sou de demonstrar afetividade, mas o Natal se aproximava e queria expressar minha gratidão a El Gordo e sua família. Comprei uma cuia e uma bomba com o escudo do Nacional para ele; um álbum de figurinhas, completo, da Copa do Mundo de 1962, para Julio; uma boneca de louça, ainda na caixa, para Natalia; um camafeu para Cristina. Para mim, um exemplar de Don Quijote de la Mancha, publicado em Buenos Aires em 1944, por Joaquín Gil Editor, com quatrocentas e setenta e duas ilustrações de Gustave Doré, uma dedicatória, “Para Martha, porque también yo soy un Quijote luchando contra molinos de viento”, assinatura ilegível, datada de “28, abril, 1945”.
Na terça-feira, procurei El Gordo na agência do Banco República, entreguei os presentes, e ele, emocionado, fez questão de me apresentar aos colegas. No dia seguinte, ao retornar do trabalho, encontrei um recado na portaria do hotel. Liguei, e ele, após declarar que eu havia deixado todos muito contentes, me convidou para passar o domingo em La Concordia, na beira do rio Uruguai. Falei que adoraria, mas, como ia embora na segunda-feira de manhã, precisava dedicar a véspera para arrumar as malas, descansar um pouco… Demonstrando surpresa, consultou Cristina, ao seu lado, E sábado? Sábado está bem? Respondi que sim, e ele, satisfeito, ficou de me pegar às oito horas da manhã.
Cristina desceu do Astra prateado, Bom dia, disse, baixando o banco para que eu pudesse me acomodar no assento de trás, espremendo Natalia contra Julio, que ocupava, vitorioso, a janela. Bom dia a todos, falei. El Gordo deu a partida e caçoou, Che!, Cristina gostou tanto do, como é que chama mesmo?, ah!, gostou tanto do camafeu, que guardou para usar apenas em ocasiões especiais. Tímida, ela se justificou, Tão lindo! Vou botar na noite de Natal. Não passa o Natal conosco? Expliquei que tinha voo marcado para o Rio de Janeiro e que, a bem da verdade, não ligava muito para essas datas festivas. Então, não tem família?, indagou. Quem é que se interessaria por alguém que vive todo o tempo viajando?, que não para em lugar algum?, respondi. E não se sente sozinho? Olhei para a língua negra de asfalto que se estendia estreita entre largos campos dourados e me percebi meditativo. Às vezes, murmurei. E, mudando o curso da conversa, perguntei, Por onde anda Don Carlos? Em Rivera, Cristina explicou. Minha irmã menor mora lá, meu cunhado é gerente de hotel. Papá alterna as festas de fim de ano entre Dolores e Rivera.
Como se apenas aguardasse uma brecha, Julio recitou, inflamado, Em 1962 o Uruguai foi eliminado na primeira fase da Copa do Mundo. Ganhamos um jogo, contra a Colômbia, mas perdemos dois, contra a Iugoslávia e a União Soviética. Mas também a Iugoslávia terminou em quarto lugar… Tínhamos um time fraco naquela época, interveio El Gordo. E você, Natalia, gostou da boneca? Antes que respondesse, o pai intrometeu-se, Gostou, não é, Natalia?, gostou, sim. Ela não gostou, não, tripudiou o irmão. Cristina insistiu, Claro que gostou! Então, perguntei de novo, Gostou, Natalia? Pode ser sincera. Ela, levantando a cabeça, afirmou, contrariada, Ela é velha… Ela é antiga, corrigi, sorrindo. Do tempo da sua avó… Olhos arregalados, indagou, É mesmo? Confirmei, e seu rosto iluminou-se. Assim, Natalia também só vai exibir o presente dela em ocasiões especiais, El Gordo comentou, e todos rimos. Já tem nome, ela?, sondei. Que nome o senhor daria?, Cristina interveio. Mergulhado na solidão da paisagem, quilômetros e quilômetros de silêncio e vazio, sugeri, Que tal Luisa?, evocando minha mãe. Cristina emendou, Anita é um lindo nome, não é, Natalia? Anita!, a menina sussurrou, enternecida.
Maiô preto realçando a brancura do corpo delgado, Cristina sentou-se sobre a toalha estendida na praia e começou a preparar o mate, observando Julio e Natalia chapinhando nas águas mornas do rio Uruguai. Após fumar um cigarro, El Gordo me intimou a caminhar, Faz bem para a saúde. Ambos trajávamos bermuda e óculos escuros; ele exibia a barriga saliente, o cordão de ouro, eu vestia camisa branca de malha, mangas longas; eu de boné, ele sem; os dois descalços. Lá do outro lado, e apontou a margem afundada no horizonte, está a Argentina. Seguimos em silêncio, enterrando os pés na areia grossa e quente, cruzando vez em vez com raros turistas. De repente, El Gordo deteve-me e falou, Então, volta para o Brasil depois de amanhã?! Assenti, com um meneio de cabeça. Como que tentando desengasgar, suspirou, Brasil… Não tem vontade de voltar lá?, perguntei. Che, é uma longa história! E, tomando fôlego, tornou a andar, devagar, alheado.
Mirá!, disse, quando sofri aquele acidente na estrada de Mercedes, uma das coisas que mais me apavoraram era a ideia de morrer sem saber o que havia acontecido com meu pai. Meu pai… desapareceu… durante a ditadura… Ele era motorista de táxi, e, de acordo com minha mãe, não possuía qualquer envolvimento com política… pelo menos que ela soubesse… Um dia, quando tinha oito anos, justo a idade da Natalia, ele passou em casa, eu estava dormindo, deviam ser umas onze horas da noite, e falou para minha mãe, agitado, que ia sumir por uns tempos, mas que não se preocupasse, logo regressaria. Pegou algumas mudas de roupa, mandou ela ligar para a empresa, com uma desculpa qualquer, pedindo que recolhessem o carro, e saiu apressado, a pé, exigindo sigilo sobre tudo aquilo. Minha mãe, amedrontada, não encontrou forças nem para perguntar o que estava acontecendo. Evitando chamar a atenção da vizinhança, espalhou que ele fora resolver um problema de família no interior, e tentou que a vida fluísse normal. Contudo, atravessava as madrugadas em claro… esperando… esperando… Depois de quinze, vinte dias, veio o desespero. Corriam à boca-pequena histórias terríveis de gente sequestrada, torturada e morta, cujo corpo nunca era localizado. Então, largando os afazeres, e comigo en bandolera, iniciou uma peregrinação em busca de notícias. Conversou com taxistas de toda Montevidéu, frequentou delegacias e cadeias, sem sucesso. Ninguém sabia do paradeiro de meu pai. Depois de nove meses, nos achávamos numa situação bastante delicada. Recebemos ordem de despejo por falta de pagamento do aluguel, e, de uma hora para outra, fomos obrigados a trocar a casa confortável em que morávamos em La Blanqueada, perto do Gran Parque Central, por outra, pequena e úmida, em Casavalle.
Havíamos percorrido toda a extensão da praia e voltávamos, flanqueando nossas pegadas, quando El Gordo, agarrando meu braço, perguntou, Quer tomar uma cerveja? Era cedo para beber, mas minha camisa e meu boné já se encontravam encharcados de suor, e minha pele, desacostumada, ardia ao sol áspero. Atravessamos a rua e nos dirigimos a um boliche. Sentamos, El Gordo pediu uma Patricia para mim e um pomelo para ele, o rio sereno à nossa frente, ralas nuvens brancas deslizando rumo ao norte. O rapaz depositou as garrafas na mesa, abriu-as e encheu os copos. E o que aconteceu depois?, indaguei, esvaziando o meu, de uma só vez. El Gordo acendeu um cigarro e continuou, Mirá! Quando vivíamos em La Blanqueada, eu estudava de manhã, brincava na rua à tarde, assistia televisão à noite. Minha mãe, fita métrica pendurada no pescoço, me exibia às freguesas, mulheres ricas dos arredores que me estragavam com dengos e regalos. Durante a semana, meu pai me deixava na escola de carro, para inveja de meus colegas, e aos domingos me carregava aos estádios para acompanhar as partidas do Nacional. No verão, passávamos uma semana em Piriápolis. Mas, em Casavalle, os dias escorriam sempre cinzas… Pouco a pouco, nos conformávamos com nossa condição. Eu, enfurnado no quarto, sem amigos, engordava, comendo porcarias. Minha mãe, debruçada na máquina de costura, emagrecia, trabalhando. De uma hora para outra, ela se tornou encurvada, amarga, ranzinza, os cabelos branquearam. Se no começo sentia tristeza pela ausência de meu pai, aos poucos passei a ter raiva, por ele nos abandonar naquela quase indigência… Cresci tendo como único divertimento participar da Banda del Parque, a hinchada do Nacional. Cheguei a atravessar o Rio da Prata em várias ocasiões para assistir jogos em Buenos Aires. Logo que atingi a maioridade, já empregado num escritório contábil, minha mãe descobriu um tremendo câncer no intestino, que a aniquilou em três anos… Me vi, de repente, sozinho, sem parentes, sem ninguém… Então, conheci Cristina, passei no concurso para o Banco República, morei em Minas, depois em Fray Bentos, consegui transferência para Dolores… Enfim, essas coisas todas que já são de seu conhecimento. Bueno, quando sofri o acidente, El Gordo parou, interrompido por Julio, que penetrou no boliche esbaforido, É para voltar. A mamá… Nós estamos com fome… El Gordo passou a mão na cabeça do filho e perguntou, Quer tomar um pomelo? Coca-Cola, pode ser?, negociou. El Gordo virou-se para o rapaz atrás do balcão, Ê!, dá uma Coca-Cola para o menino aí, por favor. Julio abancou-se próximo da televisão e permaneceu estático vendo um desenho animado. Engoli o resto da cerveja e me preparei para levantar, mas El Gordo, gesticulando, falou, Tranquilo, no pasa nada, e pediu outra Patricia para mim.
Bueno, retomou, durante minha recuperação, deitado sem o que fazer por semanas, comecei a pensar em meu pai. Com o tempo, a imagem dele tinha se esfumaçado… O único retrato que restou é o que emoldurava a parede de nossa casa. Colorizado, mostrava um homem de bigodes bem aparados, brilhantina nos cabelos castanhos, olhos claros, uma pinta no lado esquerdo do rosto, envergando um terno elegante, ar de rompecorazones de Hollywood… No entanto, uma figura sem voz, sem movimento, sem alma, como um antepassado remoto… Minha mãe se recusava a falar dele… Eu acatava indiferente minha orfandade. Mas, naquelas horas arrastadas de repouso forçado, uma cisma me incomodava… E se eu tivesse morrido naquele acidente? Nunca me perdoaria por não haver ao menos tentado localizá-lo. Eu principiava a mudar de opinião… Algo muito sério devia ter ocorrido… Um homem não desampara assim, do nada, um filho, a mulher… E, no fundo, eu desejava que estivesse vivo, para poder abraçá-lo, conversar com ele, contar sobre os netos… Me dispunha a perdoá-lo, esquecer tudo, se necessário… Assim que melhorei, fui a Tacuarembó, onde meu pai nasceu, e, especulando com um e outro, a cidade é pequena, descobri dois tios, que me receberam ressabiados e relataram, com mágoa, que o irmão fugira adolescente para Montevidéu e nunca mais dera notícia. Aliás, sem demonstrar qualquer simpatia, ficaram admirados por saber da minha existência. Em Montevidéu, abordei antigos vizinhos de La Blanqueada, conferenciei com velhos taxistas, pesquisei nos arquivos da Chefatura de Polícia, sem avançar pista alguma. Gradualmente, as recordações colhidas esboçavam um desenho mais nítido dele… Todos realçavam sua beleza e bom gosto, as roupas impecáveis, a alegria, a conversa sedutora… Um dia, por acaso, vi na televisão um ex-tupamaro, Pedro Guardini, agora deputado, lembrando sua passagem por São Paulo durante o exílio, e não sei por que pressenti que meu pai poderia ter escapado para lá também. Liguei para a produção do programa, expliquei meu dilema, asseguraram que me colocariam em contato com ele. Natalia estacou à nossa frente, Papá, mamá está brava!, e notando a garrafa de gaseosa vazia diante de Julio, reclamou, Também quero. El Gordo, voltando-se para o rapaz atrás do balcão, disse, Ê!, dá uma Coca-Cola para a mocinha aí, por favor. Quando informei o nome, características físicas e circunstâncias do sumiço, prosseguiu, Guardini confessou que não conhecera ninguém assim, nem durante a militância no Uruguai, nem na época em que se refugiou no Brasil. Mas prometeu me repassar o número do telefone de uma pessoa que, radicada em São Paulo, tinha sido uma espécie de elo entre os expatriados.
Sob o sol do meio do dia, marchamos, a sola dos pés queimando na areia. E essa pessoa… em São Paulo… sabia de algo?, perguntei. El Gordo, após consultar o relógio, procurar o maço no bolso da bermuda e acender ávido um cigarro, respondeu, Mais ou menos… Este senhor, Don Álvaro Antonio Pardo, lembrou que havia conhecido meu pai uns vinte anos antes, mas acabou perdendo-o de vista. Entretanto, gabando-se de sua organização, mencionou que devia ter registrado os dados da época e pediu que o procurasse dois dias depois. Liguei, ele alegou que não conseguira nada ainda, requereu mais uma semana, outra, um mês… Bueno, constatei que Don Álvaro me engrupía. Assim, sem refletir, decidi viajar para o Brasil. Peguei um ônibus, quatro horas e meia até Montevidéu, e de lá mais trinta até São Paulo. Cheguei, me hospedei num hotelzinho muy malo perto da Rodoviária, e telefonei para Don Álvaro. Espantado, argumentou ser impossível nos encontrarmos naquele dia, porque trabalhava como impressor até tarde na oficina de um jornal, mas me convidou para almoçar na casa dele. Após me expor seu passado (infância pobre em Montevidéu, emprego numa gráfica, filiação ao Partido Comunista, desterro, casamento, filhos, separação, desencanto com a política), explicou que tinha sido apresentado a meu pai, não recordava mais em que passagem, e que arrolara o endereço, como fazia com todos os compatriotas, para mantê-los unidos. Com o fim da ditadura, muitos regressaram para o Uruguai, outros se abrasileiraram, a comunidade se dispersou… Depois do café, trouxe um caderno de capa dura preta, empoeirado, depositou sobre a mesa, e, umedecendo com saliva as pontas dos dedos, folheou devagar as páginas amareladas e quebradiças até identificar o nome de meu pai. O telefone, nem adianta, alertou, os números foram todos trocados. Agradeci e, ansioso, tomei um táxi para a direção anotada, mas constatei, conversando com os vizinhos mais antigos, que ele se mudara há muitos anos, sem deixar rastros. El Gordo suspirou, acabrunhado, e concluiu, A volta foi difícil… Natalia aproximou-se, anunciando que a mãe estava no carro, enojada. Bueno, che, disse, Aceitei a ideia de que nunca mais iria vê-lo… Desisti daquela obsessão… Sosseguei… Pelo menos você tentou, falei, empenhando-me em consolá-lo. É, murmurou, cético, encaminhando-se ao Astra, pronto a enfrentar a ira de Cristina.
Perguntei a Julio e Natalia onde íamos comer, eles escolheram o quiosque no meio da praça. Ordenamos chivitos e gaseosas e sentamos num banco, sob as árvores. Lambuzados de maionese, observamos Cristina aproximar-se, óculos escuros, nariz vermelho, El Gordo, desconcertado, em seu encalço. Ela se mostrou irritada com os filhos, por me terem deixado pagar os sanduíches, mas contentou-se quando expliquei que eu os havia convidado, e encomendou uma milanesa al pán. El Gordo solicitou uma empanada e um pomelo. O regresso a Dolores transcorreu em silêncio. Julio emburrado, porque compelido a ceder a vez a Natalia na janela; Cristina, ao volante, retrucando com muxoxos as investidas do marido. Ao entrarmos na cidade, ela estacionou em frente a uma heladería, falou para El Gordo descer e comprar sorvete para as crianças, queria ir para casa, Dor de cabeça, desculpou-se. Saiu do Astra, Não nos vemos mais, verdad? Abraçou-me forte, entrou no carro, deu a partida. Sem graça, o marido justificou, É enxaqueca… Bom, também vou indo, um monte de coisas para resolver, anunciei. Julio me acenou, Natalia me enlaçou o pescoço. El Gordo acompanhou-me à esquina, apertou minha mão direita, Até um dia!, disse, Até um dia, repeti, e avancei, sem virar o rosto.
Exausto, adormeci, embalado pelo zunido do aparelho de ar condicionado. À noite, perambulei pelas ruas imersas no mormaço, desviando-me das cadeiras estendidas nas calçadas, cuias de mate animando as palestras, e abrindo picadas entre as sombras das árvores. Sem perceber, me encontrei à margem deserta do rio San Salvador, na região do porto. Caminhei rumo a uma luz que, esgueirando-se pela porta estreita, banhava uma nesga do asfalto. Entrei, suspendendo a animada discussão sobre futebol entre dois fregueses, um, baixo e barrigudo, outro, alto e magro, que bebiam cerveja de pé, junto ao balcão. Cumprimentei-os, perguntei se havia ainda algo para petiscar, o dono do boliche disse que poderia providenciar uma hamburguesa. Pedi uma garrafa de Norteña e, suando, me sentei numa mesa emoldurada por uma janela minúscula.
Manhã seguinte acordei por volta das onze horas. Levantei sem pressa, fiz a barba ouvindo músicas antigas na Radio Skorpio, tomei um banho comprido e pus roupa leve para suportar o calor abafado. Percorri as três quadras que separam o hotel do restaurante, abri a porta acionando o sininho e me entoquei, preservando-me do atropelo e da zoeira do almoço domingueiro em família. Comi tapa de cuadril, papas soufflé, alface e tomate, e degustei duas taças de um vinho recomendado por Don Pepe, que se mostrava abalado por minha partida, assim como Claudia, que sumiu quando a procurei para me despedir. Gastei o restante da tarde ajeitando a bagagem, a televisão sintonizada num programa de auditório argentino. Às sete e meia, o telefone tocou. El Gordo disse que se encontrava na portaria para deixar um presente que Cristina esquecera de me dar mas que, não fosse incômodo, gostaria de entregar pessoalmente. Falei que subisse, vesti uma camisa e aguardei. Ele surgiu ofegante, embrulho na mão esquerda, Che, como está? Mandei que entrasse, ficasse à vontade, me passou o pacote, Alfajores caseiros, uma conhecida de Cristina fabrica, depositei sobre a mesa de cabeceira. Após esquadrinhar o cômodo, comentou, Bonita a vista daqui, embora estivéssemos no primeiro andar, de onde se enxergam apenas as casas dos quarteirões adjacentes e a torre da igreja.
Estranhei quando ele, sem consultar o relógio, buscou no bolso da camisa o maço de cigarros, separou um e acendeu-o. Ofereci um cinzeiro, desliguei o ar-condicionado, escancarei a janela. Só então reparei nas nuvens carregadas feridas por relâmpagos, que, atiçando trovões, apregoavam uma tempestade. Inquieto, El Gordo lamentou, Uma pena, assim, tão rápido… Tranquei o cadeado e arrastei a mala para um canto. Sai cedo? Às cinco da manhã, respondi. Pois é. Bem… eu… Ele movimentava as mãos com nervosismo. Depois de arremeter a guimba para a calçada, declarou, Bueno, acho que já vou… Perguntei, Aconteceu algo? Ele, titubeando, disse, Não… No pasa nada… Sem me convencer, perguntei de novo, Está tudo bem? Fitando a tela da televisão desligada, que refletia os clarões a iluminar o céu escuro, declarou, agoniado, É que… talvez… eu preciso… acho… eu preciso… dizer uma coisa… A história… a história que contei… sobre meu pai… quer dizer… essa história… essa história que eu conto… que é a que todo mundo conhece… É que não… não aconteceu bem assim… Eu… eu encontrei meu pai em São Paulo… Encontrou?!, indaguei, surpreendido. Mas nunca… nunca disse para ninguém… nem para Cristina… E por quê?, questionei. Ele, acendendo outro cigarro, emendou, alvoroçado, Meu pai… Ele… ele era… é… se estiver vivo… não sei… um grande… pelotudo de mierda… Por isso… nunca contei a história… a história verdadeira… Mas isso fica aqui… remoendo… dentro de mim… machucando… Tenho receio de ter um ataque… morrer… sem ver meus filhos criados… Nunca me perdoaria… Preciso contar… contar para alguém… Eu queria esquecer… queria que nunca tivesse existido… mas… não… não tem jeito… Não consigo dormir… Tomo remédio… tranquilizante… não adianta… Acordo de madrugada… transpirando… o coração descompassado… Fico com medo de revelar isso durante o sono… Cristina ouvir… os meninos… Não quero que eles saibam… Talvez… talvez se eu contar… contar para alguém… Acomodando-me à poltrona, afirmei, Pode confiar em mim. Arrastando as pernas de repente pesadas, El Gordo, um cigarro após outro, principiou a falar, o vento inundando o quarto com o cheiro ancestral de terra molhada.
“Eu tomava a terceira cerveja, quando a filha da dona da pensão, em Fray Bentos, chegou anunciando que haviam telefonado de Dolores, Cristina estava internada, o bebê nasceria a qualquer momento. Brindei com os colegas do boliche, peguei El Rojo e saí apressado. Conhecia bem a estrada e por isso considerava seguro acelerar a mais de cento e vinte quilômetros por hora. De repente, logo depois de passar por Mercedes, me assustei com algo que atravessou a pista, perdi a direção e, em segundos, o carro rodopiou e capotou. Um silêncio enorme baixou sobre tudo… Abri os olhos e não enxerguei nada… Meus músculos tremiam, descontrolados… Suspenso o tempo, não lembro quanto durou essa angústia… Aos poucos, as coisas foram se assentando… Recomeçaram os barulhos que infestam o campo, cricrilar de grilos, coaxar de sapos, pios de passarinhos, cachorros latindo ao longe… A luz da lua clareava a noite… Estrelas faiscavam no céu… Eu me achava preso nas ferragens, de cabeça para baixo. Passei a mão pela roupa empapada, não atinava se sangue, se lama… O rosto lanhado, a perna quebrada, a cabeça latejando… Me vi menino mimado andando de velocípede no quintal de nossa casa em La Blanqueada, a chuteira que ganhei no aniversário de sete anos, os jogos no Parque Central e no Centenario, os passeios pela rambla, os sorvetes de domingo em Pocitos, os aviões no Aeroporto de Carrasco, meus amigos Juanito, Tano, Lucho… Minha turma do Grupo Escolar Felipe Sanguinetti… Chela, minha primeira paixão… As férias em Piriápolis… Depois, os dias de aflição… Meu pai sumido, os vizinhos desconfiados, o desdém dos colegas, a mudança para Casavalle… As tardes de tristeza, enfiado no quarto… Minha mãe debruçada na máquina de costura… os cabelos branqueando… a magreza… as dores… as internações… as cirurgias… as sessões de quimioterapia… Lenço na cabeça, só ossos e amargura… O cheiro de doença impregnando a casa… A nossa solidão… A morte dela, quase ninguém no velório… caía uma chuvinha fina sobre os túmulos do Cementerio del Norte… Eu, na hinchada do Nacional… O encontro com Cristina… Ela, em Dolores… Eu, em Montevidéu, virando as noites a estudar para o concurso do banco… Em Minas, nos ligávamos quase todas as quartas e sábados. No casamento, a igreja cheia de parentes dela, nenhum meu… Ir e vir de Fray Bentos… O cansaço… As dificuldades… Viver na casa dos sogros… A gravidez… O nascimento de Julio… Outra gravidez… Tudo tão rápido… Trabalhava, comia, bebia, fumava, sempre correndo de um lado para outro… Tudo tão sem sentido… E agora, que vislumbrava o fim, meu pai ressurgia… Nunca mais pensara nele, desde o enterro de minha mãe, quando ansiei, pela última vez, por sua aparição. Percebi o quanto talvez estivesse sendo injusto, compreendi que apenas um motivo muito sério empurraria um homem para longe de sua família, e, como me sentia incapaz de um gesto nobre, condenava sua atitude pela minha covardia, quando deveria ser a partir da coragem de perseguir um ideal, abrindo mão da própria felicidade, que deveria julgá-lo. Não sei se tudo isso passou pela minha cabeça naquele momento ou se elaborei mais tarde. Lembro que, antes de desmaiar, tomara uma decisão: caso sobrevivesse, iria tentar localizá-lo, custasse o que custasse. Despertei três dias depois no hospital de Mercedes, concussão cerebral, tíbia direita fraturada, fragmentos de vidro incrustados no rosto e no couro cabeludo… Seis meses se sucederam, entre repouso e fisioterapia, e outros seis, de readaptação ao serviço, até conseguir iniciar minha busca. Em Tacuarembó, meus dois tios me receberam ressabiados e disseram, com indignação, que meu pai havia partido adolescente e nunca mais dera notícia, adoecendo minha avó de desgosto. Fracassaram todos os esforços para contatá-lo, parecia evitar os parentes, nunca conheceram o motivo. Eles desprezavam o irmão menor, sujeito cativante, mas pouco interessado nas pessoas. Proferir seu nome ali era revolver a carne viva. Em Montevidéu, conversei com antigos moradores de La Blanqueada e com velhos motoristas de táxi e todos realçavam sua beleza, olhos meio esverdeados para uns, cor de mel para outros, cabelos castanhos brilhantinados, bigode bem aparado, pinta no lado esquerdo do rosto… Impecável em seus ternos, gravatas e sapatos, impressionava as mulheres com sua elegância, seduzia-as com seu charme… Um rompecorazones sempre disposto a uma aventura amorosa, comentavam os colegas, com cinismo… Minha mãe, as vizinhas recordavam, não aceitava como verdadeiras as histórias escabrosas que circulavam em surdina, até porque o marido a enchia de perfumes caros, que ela adorava, e tratava-a com carinho e devoção. Ninguém entendia como ele se metera com política. Aliás, ninguém acreditava nisso… Apenas eu… Eu mantinha esperança de encontrá-lo, mesmo ciente de que seu nome não constava das listas de ex-prisioneiros, exilados, mortos ou desaparecidos. E mesmo que Cristina e meu sogro considerassem uma tontería continuar a investigação; meu chefe no banco reclamasse de meu alheamento no serviço; os amigos alertassem que meu pai poderia ter sido assassinado e seu corpo jogado no mar ou numa vala comum — mesmo assim, eu mantinha esperança de encontrá-lo. Entretanto, decorrido mais de um ano sem novidades, começava a fraquejar… Frustrado, andava cabisbaixo, pronto a admitir o revés, quando, por acaso, vi na televisão, num sábado tarde da noite, a entrevista de Pedro Guardini evocando o período em que permaneceu desterrado no Brasil. Não sei por quê, senti que meu pai poderia ter se refugiado lá também, o que confirmei com um telefonema para Don Álvaro Antonio Pardo. Admitindo tê-lo conhecido uns vinte anos antes, e orgulhoso de sua organização, ele se dispôs, solícito, a procurar entre os guardados os apontamentos que fizera à época. Mas, sem que depreendesse por quê, depois passou a me desencorajar, enredando-se em fiapos de desculpas. Após mais de um mês de evasivas, embarquei agitado para São Paulo, dia e meio dentro de um ônibus. Don Álvaro me recebeu para almoçar e, embaraçado, mostrou o nome de meu pai num caderno de capa dura preta empoeirado… ao lado do nome de uma mulher… Contrafeito, disse que, após minha primeira ligação, lembrou que, ao ser apresentado a meu pai, ele achava-se casado com uma brasileira, coisa que, deduziu, eu não atinava. Na hora, zonzeei, minha vista estremeceu, meu coração falhou… Atordoado, rabisquei o endereço num papel, agradeci, e peguei um táxi. No longo caminho entre o bairro Casa Verde, onde ficava o apartamento de Don Álvaro, e o lugar, chamado Jardim São Jorge, me martirizava. Então, meu pai possuía outra família?! Hijo de puta! Como podia ter sido capaz de largar a mim e minha mãe numa situação financeira precária, num momento político complicado, para debandar para o Brasil, sabe-se lá por quê?! Sem remorso, sepultou o passado, como se nunca houvéssemos existido… Agora entendia a raiva de meus tios, o silêncio de minha mãe, e começava a me considerar um imbecil, preocupado com alguém que não merecia nenhum apreço. Pensei em voltar ao hotel, pegar minha bolsa e retornar para Dolores. Cristina estava certa, aquilo havia virado uma obsessão estúpida… Quando notei, estacionávamos em frente ao número 245 da rua Giácomo Garrini. Os anos se vão, mas essas coisas mantêm-se grudadas na memória… Uma casa simples, mas ampla, paredes pintadas de verde-escuro, edificada no alto de um barranco, cercada por grades… Paguei a corrida, desembarquei, toquei a campainha. Muitas e muitas vezes, sem que atendessem. Tanto insisti que a vizinha do lado esquerdo aflorou à janela, curiosa e desconfiada. Cumprimentei-a e indaguei se era a residência de… e dei o nome de meu pai… Com dificuldade para nos comunicarmos, ela explicou que ali morava Dona Valentina, viúva ou separada, com dois filhos. Um calafrio percorreu minha espinha, imaginei-o morto, e me culpei por tê-lo odiado. Falou que em dez anos nunca soube do marido dela e perguntou se eu era parente. Engasguei, disse que sim, parente distante… Tomei fôlego, assuntei como poderia encontrar Dona Valentina, e a mulher contou que ela regressava por volta das sete horas, e que a filha, Selma, estudava à noite e ia direto do trabalho para a faculdade, fazia administração de empresas, e que o rapaz viajava bastante, como representante comercial. Pedi para repetir o nome dele, pois não acreditei no que ouvi… e era mesmo o meu nome… Devia ficar feliz por descobrir que tinha irmãos? O que passava por minha cabeça eram os anos de solidão e desalento, meus e de minha mãe, enquanto Dona Valentina e seus filhos usufruíam do cuidado e do carinho de meu pai. Ao mesmo tempo, não podia culpá-los, pois talvez nem suspeitassem de nossa existência… Mas a ignorância deles não diminuía a sensação de ter sido privado de meu pai na idade em que mais necessitava de sua estima. Além do quê, dando meu nome a outro, é como se me matasse, substituindo-me em sua afeição… E assim me reconhecia, um morto vivo… A caminho de um bar, seis quadras adiante, o bafo quente do asfalto subindo pelas minhas pernas, me vi pela primeira vez prestes a romper o compromisso de não tornar a beber. Entrei, suado, desejando uma cerveja, mas resisti, e, dirigindo-me ao rapaz que ajeitava as coisas atrás do balcão, pedi uma Coca-Cola. Sentei em uma mesa de plástico vermelha, bem junto à calçada, as ideias embaralhadas pelo ruído do ventilador de teto, o barulho da música alta, o estrépito da avenida… Por cerca de duas horas, quatro refrigerantes e três pacotes de batatas fritas, me distraí observando o lerdo movimento da tarde. À medida que o sol baixava, os ônibus surgiam cada vez mais lotados, despejando rostos cansados que se espalhavam ao redor. Em mim, crescia uma saudade imensa de Cristina, das crianças, de Dolores… Já não estava seguro de querer me avistar com Dona Valentina. Cheguei a levantar para ir embora, mas me contive. Eu tinha que esclarecer aquela história! Angustiado, encostei num poste, próximo à casa, fumando e consultando o relógio a todo instante. Às sete e vinte, um automóvel preto já meio velho parou transversalmente na rua, ao volante uma mulher, cerca de cinquenta anos. Respirei fundo, e, aproximando-me, disse o nome dela e mencionei o meu. Apavorada, conduziu depressa o carro para dentro da garagem, cerrando o portão eletrônico. Estaquei trêmulo, sem saber o que fazer… Não lembro quanto tempo decorreu, dez minutos?, vinte?, até que a percebi, no alto da escada, a luz fraca da varanda às costas impedindo a visão de seu rosto. Agressiva, perguntou, em espanhol, quem eu era e o que pretendia. O diálogo que se estabeleceu a partir daí é, para mim, até hoje, confuso, incerto, irreal. Recordo a silhueta magra, braços cruzados, a voz flutuando na noite, o cheiro sufocante de gasolina queimada misturado ao perfume doce das flores que disputavam com o mato o minguado espaço de um jardim selvagem, minha fome, minha sede. Então, sem pausa, expus que meu pai, antes de se refugiar em São Paulo, era casado no Uruguai, e revelei-me seu filho, falei de meu acidente, das tentativas de obter notícias, relatei a conversa com Pedro Guardini e o encontro com Don Álvaro, o espanto ao descobrir que ele constituíra nova família, o assombro ao ouvir meu nome dado ao filho dela, o temor de que, apesar de tudo, fosse tarde demais. Recordo que ela comentou, com deboche, sobre a hipótese de que tivesse sido perseguido pela ditadura militar, A única coisa pela qual se interessa é ele mesmo, e confirmou que, sim, os dois filhos dela eram meus meio-irmãos; sim, meu pai estava vivo; sim, ela conhecia seu paradeiro; não, ele nunca contou sobre o passado no Uruguai; não, ela não se admirava com nada disso; e explicou que, embora não o visse há mais de quinze anos, depositava todo mês um salário-mínimo na conta do ex-marido, em troca da certeza de que ele jamais os procuraria. E tachou-o de egocêntrico, alcoólatra, interesseiro, mulherengo, violento, mau-caráter, prepotente, arrogante. Terminou aconselhando que, como eu parecia uma pessoa boa, melhor seria abandonar a ideia de reencontrá-lo. Respondi, resignado, que não podia fazer isso. Ela insistiu que renunciasse à busca, antecipando minha decepção, mas, como não me demovia, propôs, num misto de pena e desprezo, que, se garantisse esquecer que ela existia, que existia aquela casa e mesmo que aquela visita existira, me forneceria a direção de meu pai. Argumentei que a troca não era justa, queria pelo menos conhecer meus meio-irmãos, mas, impassível, retrucou que não havia lugar para negociação, e, virando as costas, desapareceu pela porta da sala. Permaneci parado, sob a luz do poste, o chão coberto de guimbas de cigarro, sem saber que atitude adotar. Ela ressurgiu, dali a minutos, postou-se no mesmo lugar e indagou sobre minha decisão. Antecipando-se à minha resposta, advertiu, com calma, mas em tom de ameaça, que, caso teimasse em voltar lá ou ousasse contatar os filhos, tomaria providências, e insinuou que conhecia gente importante que poderia me deixar em situação bastante complicada. Ponderei que, como dificilmente regressaria ao Brasil, já que o destino me prendera a Dolores, e Cristina, Julio e Natalia eram o pouco e o tudo com que contava; e como talvez fosse mesmo absurdo surgir para os filhos dela só para dizer, Sou irmão de vocês, desvendando o feitio obscuro de nosso pai, um homem que, se Dona Valentina estivesse correta, não era o tipo de gente de quem se orgulhariam por saberem-se ligados por estreitos laços de sangue; considerando tudo isso, além do quê, de qualquer forma, nunca seria bem-vindo naquele lugar, concluí que devia acatar o acordo. Então, ela desceu alguns degraus e, antes de me passar o endereço por entre as grades, alertou que, caso me percebesse rondando pelas imediações, convocaria a polícia, prevenindo, de novo, que, precisasse, dispunha de meios para me desgraçar para sempre. Conferi o papel e, sem me despedir, arrastei-me perturbado até o ponto de ônibus. A manhã me encontrou vestido com a roupa do dia anterior, a língua grossa de sarro de cigarro, profundas olheiras, o corpo dolorido, o raciocínio em desalinho. O táxi enfrentou um descomunal congestionamento até alcançar a rua cujo nome apaguei de minha mente, só lembro da plaquinha com o número 46 pregado na parede azul desbotada, perdida no meio de um bairro de construções humildes, sitiadas por edifícios altos que se erguiam ao longe, e onde irrompiam aeronaves voando tão baixo que dava para enxergar o nome da companhia na fuselagem. Toquei a campainha e atendeu uma simpática senhora de cabelos brancos, penteados em coque, vestido de mangas longas preto. Com muito esforço, expliquei que buscava meu pai, e ela disse, admirada, pelo pouco que pude compreender, que nunca imaginara que “Seu” Martins, assim o chamava, tivesse um filho de minha idade, ainda mais estrangeiro. E, me encarando com censura, perguntou por que não o havia procurado antes, e, me acercando com intimidade, comentou que ele não andava nada bem de saúde. Articulando as palavras devagar, misturando espanhol e português, e com muitos gestos, tentei esclarecer que não tínhamos sido nós a abandoná-lo, ele é que havia largado a família, mas desisti. Ela não me entendia e eu não percebia quase nada do que ela falava. Me pôs sentado num sofá coberto por uma capa de tecido estampado com flores enormes, e retirou-se. O som alto do rádio sintonizado num programa religioso a todo momento sucumbia à balbúrdia atordoante dos aviões em procedimento de pouso. Após alguns minutos, em que passeei os olhos pelo vidro sujo da janela e pela movimentada estrada de formigas miudinhas, regressou com a xícara de café ralo, o pote de açúcar e o cesto de biscoitos na bandeja coberta por uma toalhinha de plástico branca. Quis justificar que havia comido no hotel, mas, ignorando-me, ela principiou a tagarelar, sem que adivinhasse o assunto. Só se calou quando esgotados o café e os biscoitos. Então, tomando-me pelo braço, guiou-me morada adentro, exibindo satisfeita um longo corredor, à direita três portas fechadas, talvez quartos, que terminava numa ampla cozinha inacabada. A planta comprida parecia edificada sem qualquer planejamento, escura e abafada, manchas pretas de umidade nas paredes e na laje. Voltamos à sala, alcançamos a calçada, contornamos a casa e entramos, por um portão de aço pintado com zarcão, maçaneta que trancava somente por fora, num beco que alargava-se em quintal cimentado, ao fundo um puxado com cinco cômodos individuais e um banheiro coletivo. Ela parou em frente à porta do meio e começou a esmurrá-la, Seu Martins!, ó Seu Martins!, reclamando que meu pai costumava dormir até tarde e que estava ficando surdo e ainda havia aquela zoeira infernal do aeroporto ali perto, Seu Martins, ó Seu Martins! Ouvimos ruídos, xingamentos, e um homem esquelético, pele ressecada, meio calvo, dentes deteriorados, calça e camisa puídas, apareceu, os olhos piscando por causa da luminosidade, a famosa pinta no lado esquerdo ilustrando o rosto vincado. Afinal, me defrontava com meu pai, achando-o mais baixo do que idealizava e não tão velho quanto imaginei. A mulher, batendo em meu ombro, disse algo como, Este moço é seu filho, Seu Martins, e nos deixou a sós. Sem demonstrar assombro, falou que precisava mijar e saiu capengando, descalço. Eu, que havia aguardado tanto por aquele momento, mirei seu corpo maltratado e não senti nada, nem alegria por encontrá-lo, nem tristeza por sua miséria. Meus braços não tentaram ampará-lo, não se envenenou de ódio meu coração. Apático, penetrei no aposento, peça única sem ventilação, ranço de mofo, azedo de álcool, fedor de tabaco ruim e morrinha de suor impregnando tudo: o lençol da cama de solteiro, a fronha e o cobertor ensebados; a bilha suja; o copo embaçado; a garrafa de cachaça pela metade; outras, vazias, enfileiradas num canto; o criado-mudo com uma vela equilibrando-se na caixa de fósforos; a mesa minúscula com a térmica imunda, a caneca de louça encardida e o cinzeiro abarrotado; a cadeira de encosto quebrado; o par de chinelos e o par de tênis, ambos surrados; a embalagem de papelão desmilinguida que fazia as vezes de guarda-roupa; o teto decorado por vastas teias de aranha; o chão de cimento grosso tapado por densa camada de poeira. Meu pai retornou, cigarro aceso entre os dedos. Falei, Vim de Dolores só para ver o senhor. Ele resmungou que não conhecia ninguém em Dolores. Casei com uma moça de lá, o senhor tem um casal de netos. Ele tomou um copo, cheirou, despejou água da bilha e engoliu. Passou a mão convulsa no tampo da mesa, empurrando fósforos queimados e côdeas de pão para o piso, e perguntou o que eu fazia. Respondi que era bancário, ele perguntou se me pagavam bem. Declarei meu salário, ele perguntou o que dava isso em dólar. Ri, pesaroso, apodrecendo num antro repulsivo e pensando em dólar… Perguntou se minha mulher também trabalhava e quanto ganhava. Sentou na cama, me ofereceu, mas recusei, a cadeira quebrada, e perguntou por minha mãe. Tive vontade de gritar, Cabrón!, ela morreu faz quinze anos, por sua culpa!, mas respondi que ela conservava uma saúde de ferro. Desagradado, queixou-se de que, ao contrário, padecia de dores horríveis nas pernas, no estômago e nas costas, e os médicos não identificavam a causa, mas ele intuía, pelos sintomas, ser algo bastante sério. Me pediu um cigarro, acendeu, tragou com prazer, e afirmou que seu sonho era morrer no Uruguai. Pegou a garrafa de cachaça, despejou um bocado no copo, emborcou, e passou a ironizar o Brasil, país de putas y maricones, onde todo mundo roubava suas coisas, e relatou cinco ou seis furtos, sem importância, de que fora vítima. Concluiu que, como eu estava bem de vida, deveria levá-lo para Montevidéu, pois, com toda a certeza, minha mãe não se importaria de tratar dele pelo pouco tempo que restava. Senti asco daquele pelotudo de mierda, mas, me contendo, caminhei para a porta, falei que não se preocupasse, iria carregá-lo comigo para o Uruguai. Pela primeira vez, meu pai me fitou e havia um brilho opaco em seus olhos, que, atentei, eram cor de mel. Argumentei que, antes, necessitava resolver detalhes da viagem, mas que ele aguardasse, em breve regressaria para buscá-lo. Ele perguntou se podia adiantar dinheiro para acertar contas pendentes, o aluguel do quarto, a pensão onde comia, um empréstimo para comprar remédios… Abri a carteira, separei algumas notas e coloquei em cima da mesinha. Ele mandou, então, que deixasse também o maço de cigarros. Saí apressado, bati o portão, aspirei com força o ar poluído da manhã e vagueei até me deparar com um táxi. Nunca mais soube dele.”
El Gordo calou-se, sobreveio o silêncio. Os trovões ribombavam mais próximos agora e a ventania desorganizava a noite. Num quarto vizinho, alguém assistia televisão. De repente, ouvi passos ecoando escada abaixo. Debrucei-me à janela, a motocicleta embrenhou na escuridão.
No dia seguinte, o motorista que me conduziu a Montevidéu contou dos estragos provocados pela tempestade durante a madrugada.