Não foram as belezas naturais que me levaram a Norderstedt, pequena e desinteressante cidade industrial da região metropolitana de Hamburgo. Numa quarta-feira de maio, fim de tarde, desci do metrô na estação Garstedt, tomei um táxi e me hospedei num hotel-garni na Segeberger Chaussee, uma movimentada rodovia que desemboca na autoestrada E-47, carregando homens e mercadorias para os confins da Dinamarca e da Suécia. O hotel-garni é uma espécie de pensão, em que as dependências são comuns aos hóspedes e à família, limitando-se a parte privada aos quartos e banheiros. Fui recepcionado pela proprietária, Anka, uma bonita mulher de sessenta e poucos anos, um metro e setenta talvez, cabelos louros curtos, pequenos e vivazes olhos azuis, que, num inglês razoável, me expôs as regras que deveria seguir. Nos dois primeiros dias mal nos cumprimentamos à hora do café da manhã, que ela pessoalmente servia, depositando, sobre a alva toalha bordada com motivos florais, porta-ovo quente, saleiro, pimenteiro, porta-guardanapos, manteigueira, açucareiro, bules de café e leite, tudo em louça pintada à mão, uma cestinha com três ou quatro variedades de pães e uma maçã. Controlava espartana as despesas — à noite, quando os hóspedes, a maioria alemães, funcionários das empresas de eletroeletrônicos instaladas nas vizinhanças, abriam a porta que dava para a rua, eram de imediato interceptados por ela, que, sentada numa poltrona estampada, sob a luminária, grosso livro nas mãos, indagava se iríamos tomar o desjejum no dia seguinte. Diante da resposta, pegava um caderno, que dividia o espaço da mesinha com o bule de chá e a xícara de porcelana, e anotava meticulosa ao lado do nome um J para sim (Ja) ou um N para não (Nein). Na quinta e sexta-feiras saí cedo e voltei tarde, e, embora a tenha visto apenas de relance, percebi que sutilmente claudicava da perna esquerda.
No sábado, demorei um pouco mais na cama e, quando desci, o salão do café da manhã estava vazio. Ao me receber, Anka, solícita, sorriu tímida, desejando bom dia. Sorri também e fiquei olhando pela janela os enormes caminhões que atravessavam a estrada, enquanto ela providenciava o meu repasto. Ao terminar, me dirigi ao pequeno jardim, chão coberto pela grama recém-aparada, pedras limpíssimas demarcando os limites dos canteiros laterais, onde florzinhas viçosas exibiam-se amarelas, brancas e vermelhas. Sentei-me numa mesa de ferro coberta por uma toalhinha de renda bege, à sombra de uma cerejeira carregada de flores lilases. Fechei os olhos, enchendo os pulmões com a exuberância da primavera. Logo depois, Anka sentou-se discreta à outra mesa, no lado oposto, e acendeu um cigarro. Entreabri os olhos e a contemplei a fumar, acompanhando paciente a fumaça evolar-se, o céu quase sem nuvens. Resolvi puxar assunto. Primeiro falei do tempo, ela disse, Temos que aproveitar, o inverno foi rigoroso este ano. Em seguida, comentei alguns fatos que haviam sido notícia durante a semana, e ela ouviu, atenta, sem emitir qualquer opinião. Então, me calei, e a manhã, abraçou-a alegre o canto longo e repicado de um invisível passarinho, que, vasculhando os recônditos empoeirados da minha infância solitária e selvagem nos pastos de Rodeiro, identifiquei como sendo um pintassilgo. Súbito, indaguei, quase como expressando em voz alta um pensamento fugaz, A perna dói? Assustada, ela de imediato transformou-se, o semblante crispado, a íris escurecida, o corpo inteiro alerta. Apagou nervosa o cigarro num cinzeiro portátil que trazia no bolso do vestido, e, ríspida, levantou-se e desapareceu. Embaraçado, permaneci no mesmo lugar por dez, quinze minutos, sem saber o que fazer, privado da companhia do pintassilgo que, talvez espantado com o imprevisto movimento de Anka, havia escapulido, legando-me um desagradável silêncio. Enfim, subi ao quarto, peguei documentos e dinheiro, e deixei o hotel, cuidando para não me deparar com a proprietária. Caminhei sem pressa até Garstedt, onde tomei o metrô. Na estação central de Hamburgo aguardei, ansioso, o doutor Theodor Kegler, observando os painéis de chegada e saída dos trens. Entusiasmado, ele me levou para conhecer algumas pontes reconstruídas por seu pai, engenheiro como nós, bombardeadas durante os ataques aéreos aliados na Segunda Guerra Mundial. Depois, me conduziu à rua Reeperbahn, onde comi um schnitzel e tomamos algumas cervejas, e ao estádio do Sankt Pauli, para comprar suvenires. Percorremos ainda alguns pontos turísticos, em visitas superficiais, e por volta das oito horas da noite ele me devolveu à estação central. Quando fechei a porta, Anka, imersa na penumbra, perguntou, com o tom de voz de sempre, se iria tomar o desjejum no dia seguinte.
No domingo, acordei cedo com a intenção de conhecer os arredores. Fiz barba, tomei banho, coloquei bermuda, camisa branca de mangas compridas, tênis e boné, e entrei no salão, constrangido, antecipando que teria que enfrentar os olhos magoados de Anka. Me deparei com todas as mesas desocupadas e, logo que me viu, ela esgueirou-se para a cozinha. Sentei-me acabrunhado no mesmo lugar do dia anterior, a solidão da rodovia sem tráfego. Anka aproximou-se, bandeja na mão, ordenou a louça, a cesta de vime e a maçã sobre a toalha, e me cumprimentou, simpática, Bom dia, acrescentando, Devo-lhe desculpas. Admirei-a, surpreso. Devo-lhe desculpas por ontem, repetiu. Retruquei, sem graça, que não, eu é que fora deselegante. Mas ela disse que havia sido rude, indelicada, e completou, afastando-se, Sim, de vez em quando minha perna dói. Quebrei a ponta da casca do ovo e comi a gema e a clara moles com sal e pimenta-do-reino. Passei manteiga numa fatia de pão, misturei leite ao café, adocei, e mastiguei e bebi devagar, ainda perturbado. Anka conversava com a cozinheira, uma mulher grande, corpulenta, compridas tranças castanho-claras ajeitadas em coque. Levantei-me e perguntei, A senhora sabe onde, aqui por perto, poderia alugar uma bicicleta? Ela falou, Não se preocupe, vou lhe emprestar uma. Retruquei que não precisava, mas, sem dar ouvidos, encaminhou-me para o jardim. Enfiou a mão no bolso do vestido, pegou a chave e abriu a portinhola de um cômodo, espécie de edícula sem janelas, tirando de lá uma Göricke masculina, preta, muito bem conservada. É de 1952, contou, orgulhosa, Pertencia ao meu marido… Pobre Klausi, suspirou, Em agosto completa cinco anos de sua morte… Entregou-me a pesada bicicleta, desejou-me bom passeio e voltou aos afazeres. Pedalei por cerca de duas horas, e, imaginando que tornava para o hotel, distanciei-me mais e mais, desorientado no labirinto de ruas, ruelas, aleias, alamedas, vias, vielas. Começava a me desesperar, quando me detive num bar na entrada de uma aldeia, onde um grupo de torcedores com bandeiras e camisas vermelho e branco do Hamburgo bebiam cerveja, animados. Após me fazer entender por gestos que encontrava-me perdido, eles só falavam alemão, prestativos iniciaram uma interminável e exaltada discussão sobre a melhor maneira de regressar: todos concordavam com a direção a ser tomada, mas ninguém se entendia quanto à rota.
Toquei a campainha do portão lateral, que dava no jardim, e de pronto Anka surgiu para abri-lo. Arrebatou o guidão da bicicleta, vistoriou-a, discreta, e conduziu-a à edícula. Depois, voltando-se para mim, perguntou se havia apreciado o passeio. Contei minha aventura e de início ela mostrou-se perturbada com o fato de ter me atrapalhado no trajeto, mas, ao relatar a confusa polêmica suscitada entre os torcedores do Hamburgo para decidir qual o melhor itinerário até o hotel, ela riu, jovial, Estavam bêbados! Estavam bêbados!, batendo satisfeita uma das mãos contra a outra. Então, indagou se gostaria de acompanhá-la num refresco. Respondi que aceitava, caso não fosse estorvá-la. Sentei-me à mesinha de ferro, sob a cerejeira, e ela rumou para a cozinha. Em seguida, apontou carregando uma bandeja de prata, depositou-a sobre o tampo, serviu-nos o suco de maçã, e mirou-me com os olhinhos azuis semicerrados pela claridade. Sequela da guerra, comentou. Sedento, emborquei todo o conteúdo do copo, e fiquei olhando-a, apalermado, sem compreender. Minha perna, explicou. Ah, exclamei. Ela acendeu um cigarro, Incomodo?, balancei a cabeça. Tinha uma maneira peculiar de fumar, tragando a fumaça em curtos intervalos e baforando-a, nervosamente, para os lados. Minha família migrou no início do século XIX para a Bessarábia, fugindo da miséria, Anka disse. Lá, criavam umas vaquinhas, uns leitões, plantavam um pouco disso, um pouco daquilo… Até que estourou a Primeira Guerra, depois a Revolução Bolchevique, depois a Segunda Guerra… Parou, levantou-se, remexeu distraída o canteiro de flores, suspirou, Sempre a guerra… Voltou, sentou-se, esmagou a guimba no cinzeiro portátil.
“Em setembro de 1940, minha mãe tinha dezenove anos e duas crianças, meu irmão, Joachim, de um ano e meio, e eu, que acabara de nascer, quando os colonos foram empurrados de volta para o território alemão, no Heim ins Reich. Aldeias inteiras partiram, da noite para o dia, largando tudo para trás, em direção a um país com o qual não possuíam mais nenhuma afinidade. Meu pai, na época com vinte e dois anos, foi recrutado para o Exército. Nunca mais foi visto… Para piorar, naquele ano o inverno foi terrível. Nas raras vezes em que minha mãe, uma pessoa amarga e reservada, que morreu cedo, de câncer, falava sobre essa viagem, descrevia uma interminável sucessão de paisagens brancas e desoladas. Preocupada que nem eu nem meu irmão padecêssemos com o frio, ela nos agasalhou o máximo que pôde. Andamos meses incertos até sermos alojados em Blumenhagen, uma aldeia na região de Brandemburgo, cujos moradores nos receberam com absoluta má vontade, assim mesmo porque eram obrigados, nós éramos uma espécie de párias da pátria. Permanecemos morando num celeiro por quase um ano, no meio do feno e do gado, vivendo com as galinhas, os patos e os porcos, doentes e esfomeados. Na primavera, comecei a engatinhar e então, desesperada, minha mãe percebeu que, por ter apertado demais meu corpo entre mantas e cobertores, a minha perna esquerda, talvez por falta de circulação, parecia mole, sem vida. A primeira reação foi procurar ajuda, mas então corriam boatos de que as SS sumiam com as crianças inválidas, e ela passou a me esconder de todos. Com o fim da guerra, viemos, em meio aos escombros, para Reinbeck, aqui na região de Hamburgo. Então, outros tempos. Um médico americano me examinou e a Cruz Vermelha me deu uma muleta. Aos poucos, me acostumava com a ideia de que seria manca para sempre. Um dia, eu tinha uns sete, oito anos, brincava sozinha na beira do riacho, quando por descuido a muleta caiu na água e, antes que pudesse alcançá-la, a correnteza a levou… Com medo de tomar uma surra, minha mãe cada vez mais impaciente e bruta, pensei que se conseguisse seguir até em casa, mesmo que tropegamente, me safaria. A custo, me equilibrei, forçando a perna direita. No caminho, inventava uma história, na minha cabeça bastante plausível, lembrando os ensinamentos da escola dominical. Ao chegar, contei, toda séria, que Jesus havia aparecido para mim perto do bosque, mandando que jogasse fora a muleta, porque se tivesse fé ficaria sarada. Minha mãe me deu um violentíssimo tapa no rosto, que me derrubou no chão, e em seguida me espancou com uma tala de couro que mantinha pendurada na parede. E disse que dali para a frente me considerava curada e que eu tratasse de andar direito. Se no começo coxeava bastante, com o tempo compreendi melhor o ritmo do meu corpo e consegui uma harmonia entre as pernas, de tal forma que acredito são poucas as pessoas que notam o problema. Ontem, desculpe, me assustei, porque me senti de novo uma mocinha sentada num canto do baile e que alguém súbito me convidava para dançar… Eu entrava em pânico em situações como essa… em pânico… Por isso minha reação…”
Apagou outro cigarro no cinzeiro portátil, guardou-o no bolso do vestido, e, antes que eu contestasse ainda uma vez que a indelicadeza na verdade havia sido minha, levantou-se, recolheu a jarra e os copos na bandeja de prata, e sumiu cozinha adentro.
À noite, Anka colocou um N ao lado do meu nome.