Comer sushi em Beirute

Quando entrei no sushi lounge bar, no décimo andar do Golden Tulip Hotel De Ville, em Beirute, havia apenas um cliente. Passava pouco das sete horas da noite e a recepcionista, que acumulava a função de garçonete, uma jovem e sorridente oriental, talvez tailandesa, conduzindo-me por entre a dúzia de mesas, vasinho de flores de origami plantado na toalha branca estendida em diagonal sobre a vermelha, instalou-me junto à ampla janela envidraçada, vizinho ao outro sujeito. Não houve como evitar, pelo constrangimento da situação, que nos saudássemos de maneira cordial. Sentei-me e busquei usufruir a beleza daquela cidade que me lembrava tanto o Rio de Janeiro, pequena faixa de terra espetada de edifícios na baía esplendorosa, cercada por uma cortina de montanhas, só que ali as encostas não estavam tomadas por favelas. Naquela semana, circulando pelo setor cristão, havia compreendido por que todos os povos em todos os tempos cobiçavam Beirute. Mesmo clichê, não conseguia evitar compará-la a uma mulher, linda, elegante, inteligente, charmosa, discreta, sensual e delicadamente exótica.

A tailandesa, ou vietnamita talvez, veio, entregou-me o cardápio, com reverência, e dirigiu-se à outra mesa. O homem perguntou algumas coisas em francês, que ela decerto não compreendeu, porque, sempre risonha, respondeu num inglês arrevesado. Me condoí com a aflição da vietnamita, ou birmanesa talvez, tentando explicar, numa língua que não era a sua, as diferenças entre os diversos pratos de uma culinária em tudo a ela alheia. Após um curto período, em que se esforçou para fomentar o diálogo, ele desistiu e apontou o dedo indicador para um item qualquer da lista do menu, como se se livrasse de um tormento. A moça encaminhou-se ao caixa, repassou a comanda a uma senhora baixinha e empertigada, que de imediato entrou pela porta vaivém da cozinha gritando algo em seu idioma nativo. O sujeito mirava agora ensimesmado as luzes que piscavam nos contrafortes do Monte Líbano. Grande, gordo, finíssimos cabelos castanho-claros, faces afogueadas, enfiado num batido terno preto, gravata azul com figuras geométricas amarelas, camisa branca, lembrava um camponês regressando de uma festa de casamento, os sapatos comprimindo os pés, sem saber como portar-se dentro da indumentária que o asfixiava.

A garçonete, cambojana talvez, aproximou-se, assinalei que desejava um missoshiru de entrada e sushis variados como prato principal, e, para beber, água; ela anotou, tomou o menu, inclinou a espinha. Voltou em seguida, depositou sobre a mesa defronte uma garrafa de vinho, desarrolhou-a com dificuldade, e despejou um pouco no cálice. O homem tomou a taça na mão direita, dançou-a no ar com insuspeitada graça, observou o líquido vermelho-rubi, aspirou-o, e por fim sorveu um gole. Olhos fechados, estalou a língua, e, abrindo-os, permitiu que a moça o servisse. Inclinando-se para mim, levantou o cálice e disse, simpático, Santé! Meneando a cabeça, correspondi, Santé! Encorajado, perguntou, num francês perfeito, se não gostaria de acompanhá-lo, Château Ksara Réserve du Couvent 2005, explicou. Devo ter feito um movimento qualquer que deu a entender que aceitava o convite, embora não tivesse sido esse meu intento, pois levantou-se e, esbarrando a cabeça na lanterna retangular de papel de arroz vermelho, deslocou-se na minha direção. Só então percebi que ele era bem mais alto e pesado do que parecia, cerca de um metro e noventa de altura, uns cento e vinte quilos.

Depositou o vinho e a taça sobre a toalha, sinalizou para a garçonete, e, puxando uma cadeira, apresentou-se, Marcelo Barresi. Ainda assustado com a sem-cerimônia, cumprimentei-o e declinei meu nome. Italiano?, perguntou, entusiasmado, Parliamo in italiano, allora! Expliquei, em francês, que, embora oriundi, não falava a língua de meus avós. Sou brasileiro, concluí. Um imenso sorriso infantil iluminou seu rosto lunar, cantarolou, voz de barítono, Copacabana, princessinha del maaaaar, e teria continuado, não o interrompesse a moça, que, confusa, não atinava como, tendo chegado em momentos distintos, acomodando-nos em lugares diferentes, dividíamos agora a mesma mesa. Bem-humorado, ele tentou explicar, mas desistiu após emitir algumas frases, que ela não alcançou. Gesticulando, pediu outro cálice, e a garçonete, chinesa talvez, deixou-nos, embravecida. Marcelo virou-se para mim, olhos semifechados, e irrompeu numa risada larga, ruidosa, avassaladora, que chocalhava seu enorme corpo gelatinoso, Hahahahahaha!

A moça regressou com a taça, Marcelo a encheu, ergueu a dele num brinde, Ao Brassil, disse, animado. Ao Brasil, repeti. Gosto muito do Brasil, o Brasil salvou minha vida, afirmou, em espanhol, completando, Podemos conversar em espanhol, por supuesto? Assenti, e ele emendou, Até falava português, mas esqueci, hahahahaha! Então, perguntou o que fazia em Beirute. Expliquei que razões profissionais me governavam e ele passou a expor generalidades, Sabia que, por motivos de equilíbrio político, desde 1932 não se faz censo demográfico neste país? Não, não sabia. Sabia que, pelas mesmas causas, aqui não se estuda história do Líbano? Não, não sabia. Sabia que, em 2006, enquanto aviões de caça israelenses bombardeavam a cidade, jovens permaneciam apáticos na praia tomando sol? Não, não sabia. Sabia que o que sustenta a economia são os bancos e a jogatina? Sim, sabia. Sabia que o vinho é excelente, mas quase não é exportado, porque a produção é pequena? Sim, sabia.

A garçonete, laosiana talvez, empurrou a cumbuca de missoshiru para mim e algo que não conseguimos decifrar para Marcelo, que, divertido, explicou ter ordenado aquilo sem querer, indicara uma linha do cardápio perguntando o que era, ela interpretou como um pedido, ele resolveu não discutir, Hahahahahaha! O que você escolheu como prato principal?, indagou. Sushi, respondi. E ele, no limite de uma apoplexia, Hahahahahaha!, disse, quase sufocado, Eu também! Depois, mais calmo, observou, Comer sushi em Beirute… Não parece título de filme? Eu sorri, concordando, Sim, filme de espionagem…

Manipulando o hashi com destreza, Marcelo consumiu a entrada, empapada de shoyu, tentando decifrar o recheio, Mariscos! Acho que são mariscos, observava, para em seguida afirmar, Não, não, creio que são moluscos… Moluscos, com certeza! Ou peixe, sim, pequenos pedaços de peixe… Hahahahahahaha! Satisfeito, limpou a boca no guardanapo, e declarou, enfático, Brassil! Belo país! Belo país! Sentindo-me na obrigação de manter acesa a conversa, perguntei, E você, de onde é? Eu?, ele disse, Eu não tenho pátria! Hahahahahaha! Após sorver um gole do cálice, retomou, sério, o corpo enorme infletido em uma carapaça de pesar, Sou argentino, ou fui… um dia… E de novo irrompeu numa gargalhada, Somos inimigos, hombre! Hahahahahahaha! Indaguei o que fazia no Líbano e ele explicou que era professor de sociologia na França, No Instituto de Ciências Políticas de Toulouse, Como temos um convênio com a Universidade Saint-Joseph, vim ministrar um curso sobre a complexa relação do indivíduo com a esfera pública. Parto em um mês… E perguntou quanto tempo ainda permaneceria por ali. Vou embora amanhã, respondi. Volta para o Brasil? E então, na gangorra de seu humor, a euforia cedeu lugar a uma tristeza difusa. Que sorte a sua, exclamou, o olhar vago, as manzorras estendidas sobre o tampo, Já eu não tenho lugar algum para regressar…

O silêncio baixou, como uma densa neblina. No Monte Líbano, as luzes eram estrelas de brilho pálido. Pensei, Também eu não tenho lar, família, ninguém me pranteará no chão onde for enterrado, mas minhas divagações foram guilhotinadas por Marcelo me perguntando se me importava se ele fumasse. Dei de ombros, ele pegou um cinzeiro na mesa ao lado, tirou do bolso um maço azul-claro de Gauloises e um isqueiro Zippo, acendeu o cigarro, tragando com ansiedade, e perguntou o que achava do vinho. A mim, me agrada, respondi, e ele falou, Vamos a outra rodada!, fazendo sinais para a moça, malaia talvez. Dois casais entraram no restaurante e foram guiados para um lugar ao fundo. Ele indagou, distraído, se visitara a Catedral de Harissa, Biblos, o Museu Nacional… Disse que sim e repliquei em que circunstância conhecera o Brasil, como fora parar em Toulouse, por que deixara a Argentina, puxando assunto, pois supus que ele desejava discorrer sobre isso. Soprando a fumaça para longe, esmagou a guimba no cinzeiro, e falou, Quer mesmo saber?, pergunta que na hora não decifrei se traduzia surpresa ou embaraço.

A garçonete, sim, talvez tailandesa, abriu a garrafa com dificuldade, envolveu a cortiça num guardanapo, exibiu-a, despejou com pressa o líquido nas taças. Volveu logo depois com duas porções de sushi, a pequena para mim, a enorme para Marcelo, cujos olhos cintilaram de gulodice. Levantou o cálice, Aos encontros fortuitos, pois neles reside a verdadeira amizade, proverbiou. E desprendeu a falar, pontuando sua narrativa com goles de vinho, tragos de cigarro e a escandalosa risada.

“Tudo começou com meu avô, Salvatore Barresi, um calabrês alto, moreno e barbudo, que migrou sozinho para o Brasil em 1913. Tinha uns dezoito anos e era anarquista, hahahahahaha! Em São Paulo, consta a lenda, participou da primeira greve geral, acho que em 1917, mas, perseguido, desceu para a Argentina. Em Buenos Aires entrou para a Federación Obrera, chegou a ser membro importante dela, secretário-geral, coisa assim. Como gráfico, ajudou a fundar jornais de curta duração e nomes curiosos, El Soldado, Alborada, El Burro, hahahahahaha!, e escreveu artigos exaltados em outros, como em La Protesta. Em meio à militância política, casou com Elena Vaccaro, uma siciliana com quem teve quatro filhos, um atrás do outro, que ela, coitada, criava sozinha como lavadeira. Estranha essa avó, baixinha, cabelos pretos em coque, olhos negros de uma tristeza rancorosa, escarvada, aflitiva… Em setembro de 1930, o general Uriburu deu um golpe de estado, e meu avô desapareceu, provavelmente assassinado pela Liga Patriótica. O cotidiano da família, já difícil, tornou-se insuportável. Minha avó não podia contar com ninguém — o pai, operário anarquista, sempre desempregado, por causa do envolvimento com greves, sindicato, manifestações; os irmãos enredados em suas próprias misérias. Então, através do conhecimento com as famílias para quem trabalhava, encaminhou meu pai, Vicente, com onze anos, e meu tio, Francisco, com dez, para ajudar no sustento da casa — meu tio lavava copos e pratos no El Caballito Elegante, em Palermo, meu pai guiava pela Calle Florida um advogado velho e cego, um Pereyra Girado, que possuía uma biblioteca com mais de dez mil livros e uma bengala com castão de ouro. Minha avó obrigou-os a jurar que nunca se deixariam desencaminhar pela política. Sempre que um deles tocava, mesmo que por acaso, no tema, ela caía no chão, numa convulsiva crise de nervos, que, não se sabe se genuína ou inventada, funcionou, hahahahaahaha!: os filhos passaram ao largo das discussões que indispunham a sociedade argentina, Guerra Civil Espanhola, Segunda Guerra Mundial, revoluções internas civis e militares, o peronismo. Marcos morreu ainda adolescente, de tuberculose; Margarita casou com um plantador de maçãs de Neuquén e desfez os laços com a família; Francisco firmou matrimônio com a filha do proprietário do restaurante, herdou o negócio; meu pai desposou Ana Sierra, uma descendente distante de charruas, e estabeleceu uma pequena papelaria em Chacarita, El Sueño Azul, que, ampliada, converteu-se em referência para a classe média portenha ao longo dos anos sessenta até meados da década de setenta. Ou seja, nasci e cresci num mundo aconchegante do ponto de vista material. Nada me faltava. Comíamos bem, todos os domingos almoçávamos no El Caballito Elegante, veraneávamos minha mãe, minha avó e eu em Necochea, onde possuíamos uma vivenda, vivíamos numa casa bastante confortável em Villa Ortúzar. Filho único, tinha meu próprio quarto, minha avó, o dela, e, além do dos meus pais, havia outro, sempre vazio. Meu pai saía sempre às sete da manhã, a pé, permanecendo até tarde no seu comércio, sem hora para regressar, porque não confiava em nenhum funcionário, nem mesmo para cerrar e descerrar as portas, achava que iriam roubá-lo. Minha mãe economizava palavras, não se dirigindo a ninguém, pois acreditava que, por ser mestiça, embora não carregasse qualquer traço indígena, desdenhavam-na todos. Eu não conseguia fazer amizades. Gordo, tímido, desengonçado, evitava participar das brincadeiras dos meus colegas, futebol, correria, tudo que exigisse movimento e suor, hahahahahaha!, e mantinha-me à parte. Além disso, não frequentava a igreja, único legado de nossa ascendência anarquista, éramos anticlericais, para desespero de minha mãe, devota entusiasmada da Virgem de Luján e do Gauchito Gil. Meu pai lia La Razón, e na sala havia uma pequena estante forrada pelos enormes volumes da Enciclopédia Britânica e pelos insuspeitos compêndios da Biblioteca Espasa Calpe, mais para ostentar a visitantes que nunca apareceram, pois minha avó inculcara nos filhos um autêntico horror ao saber livresco. Desde pequeno, portanto, para adestrar a solidão, deitava-me de bruços no parquê e devorava um a um cada título, contra o desejo de minha avó, que antevia minha perdição, hahahahahaha!, mas com a conivência surdo-muda de meu pai, que me queria advogado como o doutor Pereyra Girado, um homem distinto, enchia a boca, um aristocrata fluente em seis idiomas e que lia em dez línguas, cuja cultura era a mais vasta e profunda que a de qualquer outro em Buenos Aires, e, para ele, pronunciar Buenos Aires significava pôr fim a qualquer dúvida. Assim me desenvolvi, entrincheirado entre minha avó, autoritária, mesquinha e avara; minha mãe, silenciosa, ressentida e vingativa; e meu pai, arrogante, injusto e alheio — cada um, à sua maneira, devolvia ao mundo o que lhes havia sido imposto como pena. Eu não existia nesse universo de mágoas revoltas e tristezas infindas. No entanto, se minha avó resmungava que me mimavam demais e minha mãe me ignorava, meu pai furtivamente me insuflava o desejo de me tornar um homem distinto, que ele concluía não ser, mas em vez de mirar-me no doutor Pereyra Girado, inspirava-me em meu avô, que pairava soberano dependurado na parede central, imponente e vigilante. Assim, sem querer, meu pai amarrou pontas soltas que inexistiam entre gerações, e gastei a infância decalcando o rosto duro e sépia de Salvatore Barresi em Robinson Crusoe, Gulliver, Conde de Monte Cristo, D’Artagnan, Dom Quixote, Jim Hawkins, Allan Quatermain, em todos os meus heróis que, disfarçados, habitavam o silêncio daquele território frio, estéril, amargo. De protagonista de peripécias imaginárias, ancorei meu avô em aventuras reais, buscando informações nos arquivos da Biblioteca José Ingenieros. Entusiasmado com o alcance de sua coragem e contagiado por seus artigos incendiários, troquei Defoe, Swift, Dumas, Cervantes, Stevenson, Rider Haggard por Proudhon, Malatesta, Kropotkin, Bakunin, Emilio López Arango, Diego Abad de Santillán, hahahahahaha! Claro que ninguém em minha casa sabia dessa… ocupação subversiva… hahahahaahaha! Saía cedo para a escola, falava que depois ia encontrar com amigos, submergia nos livros, não me perguntavam nada, eu nada dizia… Nessa época, contava dezesseis, dezessete anos, o mundo se despedaçava… Guerra do Vietnã, assassinato de Luther King, revolta dos estudantes na França, Massacre de Tlatelolco, Primavera de Praga, golpe militar ‘científico’ na Argentina, o homem na Lua… Para não radicalizar o conflito doméstico, em 1970 conduzi meus passos perdidos para a Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires. Porém, desejava mesmo e apenas me ocupar da militância política. O combustível de Maio de 68 nutria minhas ideias, me alistei na Federación Libertaria. Semiclandestino, consumia os dias vendendo de mão em mão o jornal Acción Libertaria e os livros da Editorial Reconstruir, e discutindo a iminência das mudanças. Os militares se sucediam no poder, em patéticos autogolpes, acentuando o caos. Desconfiados de minhas atividades, minha família, talvez por nunca ter fundado qualquer expectativa a meu respeito, relegava-me ao desprezo, no máximo meu pai alertava, espanando-me, Não traga problemas!, Não prejudique os negócios!, Não conte conosco! Hahahahahahaha! Afastava-me de Villa Ortúzar pela manhã, e, muitas vezes, ao regressar, noite entrada, me deparava com minha mãe na sala, calada no sofá, aninhada em seus próprios braços, e minha avó, afastada, xale derreado nas costas, o corpo encolhido na cadeira de balanço, o cérebro pouco a pouco se desonerando, ambas estáticas em frente à televisão. Pugnava por uma revolução social, mas, mais que isso, ambicionava descobrir um propósito para a existência, não queria me espelhar naqueles três tigres tristes, solitários, finais… Lá fora, os companheiros me consideravam, eu fazia diferença, não um ser avançando para a morte, mas um adolescente agarrando-me com fúria à vida… De súbito, os alicerces cederam… Minha avó piorou, já não dizia coisa com coisa, urinava-se e cagava-se toda, recusava-se a se alimentar e a tomar remédios, brigava, xingava, chorava, trocando o dia pela noite, e meu pai e meu tio decidiram interná-la num asilo. Ela nunca os perdoou… Enquanto persistiu um pouco de lucidez, amaldiçoava-os, acusando-os de bastardi, magnacci, cuinnuti, canaglie, assassini… hahahahahaha! A velha, mesmo senil, sobreviveu a todos… Talvez por sentir-se culpado, meu pai passou a implicar com cada gesto, cada palavra de minha mãe, e atormentaram-se de tal maneira que decidiram habitar quartos separados, sem nunca mais dirigirem-se um ao outro. O silêncio que minava das paredes pouco a pouco inundou os cômodos, transbordou pelas portas e janelas, escorreu pela calçada em frente. Eu me afogava naquele amargor, submergia naquele desgosto. Então, em fins de 1972, como conseguia me manter dando aulas particulares de castelhano e italiano, saí de casa, fui morar em Avellaneda, abandonei a Faculdade de Direito. Fazia francês, coordenava um grupo de estudos sobre anarquismo social, possuía um Escarabajo azul, hahahahahaha!, e, quando 1973 entrou, iniciei o curso de ciências sociais. Passei tempos sem pôr os pés em casa. A campanha política incendiava o país. Em todos os lugares só se falava da disputa entre El Tío e Balbín. Na data da posse de Cámpora, 25 de maio, apareci de supetão à noite em Villa Ortúzar, estacionei o carro, abri a porta, pois mantinha uma cópia da chave, entrei. De repente, a escuridão sussurrou meu nome. Me assustei, tentei adivinhar meu pai largado na poltrona, Só vim buscar um documento, expliquei. Ele disse, a voz pálida, irreconhecível, Sabia que sua mãe morreu? Minhas pernas fraquejaram. Naquela época, a morte era para mim um conceito teológico, uma questão filosófica, não um dado da realidade. Por mais que nos desentendêssemos, saber que minha mãe existia me confortava, alentava-me a ideia de que, apesar da minha enorme solidão, proporcional ao meu tamanho, hahahahahaha!, as lembranças de nossos passeios mudos nas tardes de domingo, depois do almoço em família no El Caballito Elegante, quando eu, potro solto, mastigava sossegado a grama tenra do parque, sob o olhar atento e talvez até mesmo orgulhoso dela, pelo menos eu imaginava assim, cevavam meus sonhos inalcançáveis de contentamento. A vista apalpou o cômodo até encontrar a poltrona, onde meu corpo desabou. Morreu?, perguntei, atônito. Se matou, ele falou, com raiva. Levantei-me num impulso, e, o estômago nauseado de repugnância, corri para o banheiro e vomitei, vomitei, vomitei. Por fim, mirando meu rosto no espelho, chorei convulsivamente, não por minha mãe, que desperdiçara a vida com um homem árido, nem por meu pai, sombra bruxuleante na parede, mas por mim, condenado sem remissão à infelicidade perpétua. Permaneci ali, suspenso o espaço, imóvel o tempo, até que minha mão, tomando a iniciativa, apagou a luz, e minhas pernas arrastaram-me indecisas de volta à sala. Tive ímpeto de ir até meu pai, envolvê-lo num abraço, compartilhar nossa dor, mas a meio caminho ele disse, Faz três dias que a enterramos. Seu primo andou para cima e para baixo te procurando, mas ninguém sabia do paradeiro. Tenho um filho que mais parece bandido, vive se escondendo… Devia dar mais valor a… Não ouvi o resto. Logo a noite portenha invadia meus pulmões… Me arrependo por não ter insistido em reaproximar-me dele, somos falhos, cultivamos orgulhos estúpidos, mas eu era intransigente comigo e com os que me cercavam. Adotava modelos de comportamento ético que, embora ainda me guiem, serviam na época apenas como instrumentos infalíveis de aferição do caráter alheio. Hoje tendo a ser mais generoso, não julgo ninguém, cada um faça o que bem entender, pois mais tarde, de uma maneira ou de outra, prestamos todos contas à nossa consciência… Com minha mãe morta, minha avó no asilo, eu morando fora, meu pai viu seus dias murcharem, isolado em casa, corroído por remorsos e rancores. Antes sempre impecável, tornou-se desleixado, roupas amarrotadas, barba por fazer; apreciador de pratos fartos e bons vinhos, comia pouco e mal; austero com a administração da loja, abandonou-a à correnteza. Entre o Massacre de Ezeiza e o fim de Perón, pouco mais de um ano, portanto, El Sueño Azul despencou para a insolvência. No dia 15 de fevereiro de 1976, lembro bem a data porque faço aniversário no dia 16, sou aquariano, hahahahahaha!, talvez pressentindo o que iria ocorrer, o céu da Argentina cada vez mais chumbo, decidi afinal visitá-lo. Em Villa Ortúzar soube que encontrava-se internado no Hospital Italiano há mais de uma semana, levado por meu tio, que o achara estendido desacordado no piso da cozinha. Ao chegar à recepção, me informaram que ele falecera havia algumas horas, tomado por uma tristeza generalizada. Um mês depois, os militares derrubaram Isabelita. Naquela madrugada, acordei assustado com barulhos na rua e tentei alinhavar os retalhos de conversa que insinuavam-se pelas frestas da janela. Suspeitando que algo de muito ruim acontecia, liguei o rádio e o noticiário relatava o desdobramento do golpe, sempre ensaiado mas que considerávamos improvável. Troquei de roupa, saí às pressas e errei a pé por horas, esbarrando numa Buenos Aires atônita. Engraçado, porque sempre imaginara como me comportaria nesse caso, e enxergava-me abraçando a resistência, tratava-se de um dever cívico indiscutível, acreditava. Mas, quando desabou a noite, exausto e amedrontado percebi que me esquivara todo o tempo de manter contato com companheiros e conhecidos, e tive vergonha da minha covardia… Me peguei bisbilhotando as imediações de Villa Ortúzar, e, após certificar de não haver ninguém à vista, penetrei depressa na casa… Tateando com os olhos, explorei cada recôndito daqueles cômodos, os mesmos móveis, objetos, tapetes e quadros ocupando os mesmos lugares desde sempre, como se extintos bem antes da desaparição dos moradores. Me senti embrenhando num território de fantasmas, eu próprio um espectro execrável. Aturdido, entrei em meu quarto, o porta-retratos na cabeceira da cama exibindo-me, sete, oito anos, sorridente na praia em Necochea, a mesa de estudos, a pequena estante cheia de livros empoeirados, o guarda-roupa, o pôster da Federación Anarquista Ibérica, motivo de tanta discórdia… Lancei-me entorpecido ao colchão, tentei dormir, sem êxito. Parecia ouvir o ressonar dos meus pais ao lado, a respiração opressa da minha avó em frente… Dali a pouco, Dona Carmen chegaria, caminhando devagar pelo corredor lateral por causa do reumatismo no joelho, espremida entre a parede e o Dodge Coronado azul-metálico que meu pai usava nos fins de semana, abriria a porta dos fundos e acenderia a luz da cozinha, inaugurando o dia. Em seguida, meu pai se levantaria, já dentro do terno preto, uma de suas austeras gravatas amarrada no pescoço, sentaria à mesa e dedicaria quarenta minutos a ler as manchetes, os editoriais, os artigos de fundo do La Razón, bebericando café preto. Depois, sairia com cuidado pela sala, e seus resolutos passos na calçada escoariam pela rua ainda vazia. De novo, o silêncio, entrecortado pelos indistintos ruídos da manhã. Então, Dona Carmen entraria no quarto convocando-me para a escola. Eu escutaria seu acentuado sotaque tucumano e acordaria maravilhado, porque, para mim, que vivia afligido pela iminência da guerra nuclear, evitava, angustiado, fechar os olhos à noite com medo de que aquela fosse a última da minha vida, despertar para uma nova manhã beirava a milagre. Mas nada mais existia. Estavam todos mortos. Meu pai e minha mãe encerrados numa sepultura em La Chacarita; minha avó, num asilo em Núñez; Dona Carmen, decerto entrevada, num compartimento apertado de uma casa simples em Merlo. Museu ambulante dos fracassos familiares, trazia expostas em meu corpo as cicatrizes daquelas histórias irreparáveis… No fundo, percebia, frustrado, não era diferente de meu pai, minha mãe, minha avó, apenas talvez mais arrogante. Para onde conduziam minhas pegadas? Não conhecia a resposta… Tinha vinte e quatro anos, terminara o curso de ciências sociais, me contentava com o dinheiro que recebia das aulas de castelhano e italiano, frequentava intermináveis reuniões com pessoas que pensavam mais ou menos como eu, e desprezava todas as que não comungavam os mesmos ideais. Sozinho, zanzava de um lado para outro, infatigável, carregando no meu Escarabajo azul panfletos, folhetos, livros, jornais, revistas, militantes. Agitava-me, iludido de que me deslocava, embora somente girasse em torno de mim mesmo — um cão perseguindo o próprio rabo… Um enorme cão obeso, hahahahahaha! Assim, amedrontado, me mantive escondido até a madrugada de segunda-feira, como se imerso nas águas de um rio que não possuísse nascente nem foz. Levei os embutidos e as duas garrafas de vinho que encontrei na despensa para o quarto mais distante da rua, que meu pai ocupara depois de se separar de minha mãe. Sem poder ligar o rádio ou a televisão, encostava o ouvido na parede da sala para tentar auscultar as conversas da calçada, sem sucesso. Tentei ler, mas, desconcentrado, mal passava do primeiro parágrafo. O telefone chamou quatro vezes na quinta-feira, seis na sexta, duas no sábado, nenhuma no domingo. A campainha tocou no sábado pela manhã. Às vezes um carro estacionava no meio-fio, e eu começava a transpirar, os músculos descontrolados, imaginando tratar-se da polícia. Trazia uma faca enorme sempre à vista, caso precisasse me defender, hahahahahaha! No domingo à noite, exausto e com fome, enchi uma bolsa com roupas do meu pai, que, claro, não cabiam em mim, juntei várias notas de pesos que descobri espalhadas pelas gavetas, e, sem qualquer plano, na manhã seguinte me esgueirei discreto pelas ruas agitadas da cidade, rumo ao terminal de ônibus. Havia grupos de militares postados em cada esquina, Buenos Aires parecia um doente agônico se debatendo amarrado num leito de hospital. Não lembro quanto despendi no trajeto, mas, ainda hoje, quando recordo aquela caminhada, sinto o suor escorrer abundante, a boca seca de ansiedade. A custo, cheguei à Rodoviária, e, sem perceber, estaquei em frente ao guichê da empresa Pluma, que fazia linha para o Brasil. Meus ouvidos, prenhes de bossa nova, haviam demarcado meu destino, hahahahahaha! O ônibus só saía na terça-feira e, amedrontado, me instalei num hotel ordinário ali por perto. Debruçado à janela, observava o movimento: onde estariam meus companheiros? teriam sido presos? resistiam? fugiram? Angustiado, sabia que nunca mais teria coragem de voltar à Argentina, país que amava mas ao qual não me sentia pertencer. Aliás, essa, minha questão, não consigo estar à vontade em lugar algum, o desconforto parece ser minha condição de existir… talvez consequência do tamanho que ocupo no mundo, hahahahahaha! Enfim, quando as luzes dos postes se acenderam, as pessoas se apressaram para casa, fustigadas pelo toque de recolher, as ruas tornaram-se vazias, o silêncio precipitou sobre a noite. Não dormi. Revirava na cama apertada, incomodado, o cheiro de naftalina que exalava dos lençóis, um fio de água que escorria em algum lugar, alguém que tossia, um rádio ligado, risos abafados… O dia amanheceu, as luzes dos postes se apagaram, a cidade aos poucos despertava, febril. Levantei, lavei o rosto, escovei os dentes, paguei o pernoite, saí devagar, atravessei a avenida, e, simulando paciência, aguardei a chegada do ônibus que me levaria ao Rio de Janeiro, Copacabana, Ipanema, o Cristo Redentor, o mar, as praias, os morros, as mulheres, hahahahahaha! Mas foi uma viagem triste… Enquanto o tempo corria para a frente, devorando a paisagem, pastos, bois, cidades, plantações, minha história fluía para trás, exibindo-me fragmentos de uma vida equivocada, inútil, falsa, vazia… Durante todo o trajeto, remexia-me, inquieto, na poltrona estreita, estorvando a senhora franzina, cara de índia, sentada ao lado. Catorze horas mais tarde, desci com os outros passageiros no posto de fronteira de Paso de los Libres. O policial olhou meus documentos, perguntou com descaso qualquer coisa que nem recordo, tão tenso estava, e, empurrando-me, autoritário me mandou seguir. Acho que minha bochecha rechonchuda gera confiança, hahahahahaha! Ao cruzar a ponte, as águas mansas do rio Uruguai me acalmaram e dormi ao longo dos quase dois mil quilômetros que ainda restavam. Daí para a frente, a história se torna desinteressante. Vivi seis meses em quase indigência, numa pensão na rua Senhor dos Passos, bem perto do cruzamento com a rua Buenos Aires, hahahahahaha! Perdi uns dez quilos, aguardando meu tio enviar o dinheiro da venda do meu Escarabajo, até hoje sinto falta dele!, e dos móveis da casa de Villa Ortúzar. Tempos difíceis! Eu me mantinha semiclandestino, medo de a qualquer momento ser preso e deportado para a Argentina, pouco conversava e menos circulava, mas, ainda assim, conheci um grupo de poetas alternativos, que vendia livros artesanais de mão em mão à noite nos bares da cidade, um pessoal muito divertido, hahahahahaha! Nessa época aprendi a falar português, ampliei meus conhecimentos sobre a música popular, passei a apreciar cachaça e caipirinha, feijoada e dobradinha, e a admirar as palavras bunda, sacanagem e bagunça, hahahahahaha!”

A garçonete tailandesa avizinhou-se com a conta e anunciou fatigada que fechariam em breve. O restaurante inchara e desinchara. Marcelo atulhara dois cinzeiros com restos de cigarro e tomara sozinho a segunda garrafa de vinho, já que eu o engabelara durante todo o tempo, preservando minha taça pela metade. Ele se mostrava levemente embriagado, o rosto vermelho, a vista embaciada. No final de agosto, peguei um avião para Paris, falou, aproximando o papel dos olhos míopes, E o resto você sabe. Dividiu o total por dois, disse quanto cabia a cada um, levantou-se, esbarrando a cabeça na lanterna vermelha, e caminhou trôpego em direção ao caixa. Enquanto aguardávamos o elevador, retomou, Voltei apenas uma vez a Buenos Aires… Fui resolver questões burocráticas ligadas à herança, logo após a eleição de Alfonsín… O país estava destruído… irreconhecível… Vários companheiros assassinados nas prisões, muitos desaparecidos, alguns enlouqueceram, outros foram aniquilados pelas torturas… Marcelo desceu no sétimo andar, e, ao se despedir, abraçou-me emocionado. Entrei no meu quarto, escancarei a janela, ávido de ar fresco, e só então notei, na esquina da quadra, um prédio em ruínas, ainda com marcas do bombardeio da última guerra…