A minha vida é como se me batessem com ela.
Bernardo Soares [Fernando Pessoa], Livro do desassossego
Sob o signo de Sagitário, nasceu Dório Finetto em Rodeiro, interior de Minas Gerais, no dia 12 de dezembro de 1952, numa família de pequenos agricultores — o pai, Pedro Finetto, e a mãe, Luisa Pretti, filhos de italianos fugidos da miséria do Vêneto, em fins do século xix. No sítio, denominado Fazenda Corgo dos Sapos, viviam da mão para a boca, arando terra ordinária, rasgada por voçorocas e coalhada de cupins, e morando em uma casa sem horizontes, envolta por morros que pareciam debruçar-se sobre ela. Frangos riscavam soltos o terreiro, galinhas escondiam ovos em ninhos sob o assoalho, porcos chafurdavam no chiqueiro, vacas e bois salpicavam o capim-gordura. Havia horta, pomar, cercado de cana para alimentar o gado, brejo de arroz, leiras de feijão e milho, e plantação de fumo, que, encordoado, constituía o único produto de venda. Seis irmãos, dois homens, quatro mulheres, afora dois ou três abortos, um ou dois outros que finaram ainda na infância.
Sistemático, o pai, como a maioria dos colonos vizinhos, gostava de enfurnar-se na roça, chapéu enterrado na cabeça, cigarro de palha pendurado nos lábios, puxando enxada de manhã ao anoitecer, só estacando no domingo, quando, devidamente paramentados, iam até a cidade para assistir missa e rever a parentalha. Ele então aproveitava para resolver pendências, cascar um saco de arroz, barganhar umas caixas de manga, negociar um capado por uma bicicleta, regatear peças de tecido grosseiro na loja do seu Ibrahim Salum, ferrar os cavalos. À tarde, almoçados, rapazes e moças rondavam a praça, guardados pelos mais velhos, enquanto as crianças se divertiam em acidentes estúpidos. À noite, rumavam para casa, o pai, a mãe e os menorzinhos de charrete, os maiores a pé.
A mãe, sempre preocupada com a prole, esquecia-se de si. Prestimosa, gostava de visitar a fieira de tios, primos, sobrinhos, afilhados, a cada um, uma palavra de afeição. A porta, mantinha-a sempre escancarada, batessem palmas no terreiro, conhecidos ou nunca antes vistos, e ofertava um prato de comida, um pedaço de broa, uma caneca de café recém-coado, um copo de água, pois qualquer um podia ser Jesus, para destempero do pai, que, além de desconfiar de tudo e todos, lamentava trabalhar para sustentar gente estranha. Aos domingos, metia-se em floridos vestidos de chita, presilhas amanhando os cabelos castanhos, sorriso ilustrando o rosto avermelhado e uma incomum afobação, como soubesse não lhe caber mais muito tempo.
Caçula, Dório desenvolveu-se, calado e pensativo. Muito cedo o estranharam, pois, ao contrário dos irmãos, que se assenhoravam das horas, domesticando-as, ele delas permanecia refém, extasiado com o vento que flauteava no bambuzal, cafungava as grimpas das árvores, corcoveava a aguinha do riacho, enxugava a roupa que quarava na capoeira, eriçava as narinas das éguas, espichava vozes longínquas, sustentava círculos fedorentos de urubus e coraçõezinhos adocicados de beija-flores, cochichava atalhos para terras do nunca-jamais: a paisagem magoava seus olhos míopes. Na hora da janta, o único momento em que juntavam-se, porque no almoço devoravam marmitas à sombra das árvores no cocuruto do pasto, enfiava-se para debaixo dos móveis e, quieto, ouvia as conversas, miudezas, bobiças, quantas covas, quantas semeaduras, a foice sem corte, o cabo escapulido, a caninana avistada, as artes do Cigano, a notícia entreouvida na Rádio Educadora, um desejo, um suspiro, outro desejo.
Então, um dia, Juliano, o mais velho, encheu-se de coragem, disse, Pai, esse, e apontou para Dório, precisa ir embora estudar, Serve para capina não. E a mãe, como em combinação, completou, Tem uma cabeça!… E a tarde, assustada, recolheu-se discreta para além das encostas. Três, quatro meses de amuo e o pai rendeu-se. Continuava a achar besteiragem alguém aprender mais que tabuada, mais que contorno do nome, A garrancho de lápis no caderno prefiro enxada destrinchando a terra, proclamava, mas, como sempre, soçobrou à silenciosa teimosia da mulher. Em 4 de fevereiro de 1961, apeou do ônibus da Viação Marotte na rua São José, em Ubá, a mão direita apertando a alça da mala, a esquerda o coração, para se homiziar na casa da irmã da mãe, tia Honorina, cujo marido, Paulo Frutuoso, um português tagarela e bigodudo, adquirira fama na colônia, não pela imensa facilidade para ganhar dinheiro, mas pela maior ainda de perdê-lo. Na época, moravam num sobrado alugado no bairro Industrial, quintal com pés de laranja, limão, manga, abacate, abio, jambo, carambola, Rural na porta, crédito na praça. A prima, Márcia, recém-debutada, já andava de namoro firme; o primo, Mauro, com quem regulava idade, desfilava os bolsos da calça curta abarrotados de notas amassadas, que o pai dispensava pelos cômodos.
Se no começo maravilhava-se com as novidades, os colegas do Grupo Escolar Coronel Camilo Soares, as charretes, carroças, carros e bicicletas atravancando as ruas calçadas por paralelepípedos, o luxo de desfilar roupas domingueiras no dia-a-dia, as longas tardes de ócio em que pastoreava pensamentos a planar solitários o azul imenso, logo passou a inimizar-se com a mãe, que julgava responsável por tê-lo apartado de tudo o que o conformava. Abandonado naquele quarto de fundos, quente, úmido, gastava as noites a observar a lua branca boiando nas águas escuras do céu. O infinito esmagava seu peito, sobrevinha a tosse que lhe roubava o fôlego, apavorava-se com a andadura mansa da morte que se avizinhava, pressentia. Então, os pés, calcando o chão áspero da região dos sonhos, adivinhavam o vívido cenário que, pouco a pouco, transfigurava-se em espessa neblina que um dia seria não mais que um rol de lembranças espedaçadas. O berro dos bezerros inaugurando a manhã, os latidos do Cigano, assustado com o esvoaçar dos habitantes das sombras, o cheiro de pipoca que transbordava da cozinha, a algazarra em torno da mesa do truco, a piada fresquinha que forrava a solidão daqueles tempos encharcados de felicidade clandestina, nada mais lhe pertencia… Cedo percebeu, desesperançado, o tempo vertendo sem cessar para o abismo do ontem. O pêndulo do relógio-de-parede açoitava-lhe as costas, empurrando-o para o minuto seguinte que já passou no exato instante decorrido. Ele mirava o futuro, mas não há nada lá. Viver é morrer…
Antes, despertava quando a luz irritava os olhos, comia quando roncava a barriga, bebia água fria da moringa quando a boca seca. Se cansado, retirava-se para a sombra. Se amedrontado, refugiava-se no meio do bando. Posto o sol, recolhia-se à cama. E não o afugentavam especulações se o dia findo se dissipara para sempre, porque, repetidas, sentia a duração das coisas. Agora, no entanto, as madrugadas insones eram a compreensão da ausência que macula a memória. O mundo não existe, existimos no mundo — se sucumbimos, sucumbe o mundo. Tinha medo de cerrar os olhos — não o inquietava a morte, mas temia que, morrendo, tudo que amava desaparecesse… E resistia a dormir, acreditando assim adiar o arremate de tudo. Ansiava regressar à roça, tornar-se de novo criação do pai, mas enfronhara-se numa floresta desconhecida, e, quanto mais se sabia, mais arruinava-se. A tia Honorina o acordava aos berros, chamando-o preguiçoso, esquisito. O menino ruminava as horas indigestas.
O longo 1965, Dório dedicou-o ao curso que a nunca suficientemente pranteada professora Ana Maria Camargo de Oliveira ministrava em sua casa, visando ao exame de admissão. Naquele mesmo ano, o tio Paulo perdeu tudo o que amealhara, desta vez contrabandeando linguiça, queijo e cachaça para o Rio de Janeiro. Ele descia a serra duas vezes por semana, a Rural lotada, e regressava empanturrado de dinheiro. Em abril, o mês mais cruel, bandidos, em conluio com a Polícia Rodoviária, talvez insatisfeita com os valores do suborno ou invejando sua evidente prosperidade, sequestraram-no na Rio-Bahia, forçando-o a esvaziar a conta do banco. Deprimida, a tia Honorina entocou-se no quarto e só saiu para galgar a boleia do caminhão que mudou parte da mobília do bairro Industrial para Santa Bernadete, um loteamento ainda agreste onde foram morar de favor. A prima já se casara com Nivaldo Scapulatempori, pequeno sitiante em Rodeiro, que manteria, anos a fio, uma enorme plantação de tomates regada a ddt, que, afluindo para suas veias, envenenou-o para sempre. O primo abandonaria a escola nas primeiras letras, e, depois de bater cabeça, abriu um sacolão que virou armazém que virou rede de supermercados. O tio logo reaprumou-se como corretor de fazendas… e de novo caiu sem nada — até o fim desequilibrou-se nessa gangorra. A tia nunca se recuperou dos nervos…
Como o pai já não contava com Dório na lavoura, não houve necessidade de esforço para convencê-lo a manter o filho estudando em Ubá, desde que custasse pouco e não o amolassem com falatórios comparativistas entre o atraso da roça e as benesses da cidade. Encaramujava-se mais e mais, temendo o que, passado não muito, ocorreria, a revoada de todos, parentes, descendentes, vizinhos, para longe daquela terra sáfara, que atava-os implacável à pobreza e à ignorância. Enfiaram o menino numa pensão simples da rua do Rosário e matricularam-no no Colégio São José, de renome. Da janela da primeira contemplou os destroços da família, e nas carteiras do segundo ultrapassou sua fé ingênua. Da família, preservou raras fotografias e uma imantada, e por isso tênue, atração. Da fé, a certeza de que ao pó voltaremos…
Uma a uma se foram, arrulhando, as mulheres da casa: Neusa, para Cataguases, com Alírio, contramestre na Industrial; Hilda, para Juiz de Fora, com Vasconcelos, militar; Cleusa, para Astolfo Dutra, com Solano, dono de sorveteria; Cidinha, para São Paulo, com um tal Doutor Coutinho, de quem nunca entenderam como angariava a lida. Juliano resistiu, casado, até os filhos alcançarem a idade de desasnar. Então, pressionado pela esposa, que os queria calcando as pegadas de Dório, um rapaz sabido, e não um jeca qualquer, segundo palavras da própria, mudou, largando o pai roído pelo rancor, para o Triângulo, em Ubá, onde montou uma pequena serraria, mais tarde tornada fábrica de colchões. A mãe desmantelava-se, solapada pelo câncer que ofenderia a todos, menos ao pai, que, curtido em amargura, escapou, esquecido das moléstias, em meio a mato e mosquitos, até quase noventa anos, xingando-os de ingratos, e renomeando o mundo com a nomenclatura da mais dolorida solidão, o exílio.
A fé, Dório não a perdeu — desvestiu-se dela, pouco a pouco, à medida que desbravava veredas, atalhos, trilhas. Se cedo contrapôs-se ao cínico credo do pai, que anotava meticuloso deves e haveres em seu livro pessoal da salvação, e da mãe, submissa aos irrefutáveis desígnios divinos, não tardou a também se desentender com as simplórias lições de Dona Glorinha, que administrava o catecismo aterrorizada pela vigilância onipresente, e com os preceitos do padre Jonas, que berrava do púlpito sua incorruptível arrogância. A ideia de Deus, Dório reformulou-a como uma prancha de madeira arrancada a um navio destroçado pelas ondas durante a tempestade: agarrava-se a ela apenas para manter-se à tona, rechaçando, a todo custo, que outros se aproximassem, temeroso de que afundassem juntos.
Concluído o ginasial, Dório desembarcou, começos de 1970, na casa da irmã, Hilda, no bairro Eldorado, em Juiz de Fora, para cursar o colegial na Academia de Comércio. O cunhado, terceiro-sargento do Exército, envolveu-se com ardor no golpe de estado, convertendo-se em fervoroso zelador dos fundamentos da reação militar: o urgente resgate da tradição, o imperativo fortalecimento da família, a defesa intransigente da propriedade. Auxiliado por Hilda, Vasconcelos farejava comunistas com invulgar ferocidade, Sinto a catinga da subversão, dizia. Pia, a mulher visitava os vizinhos, como membro influente da comunidade católica, catalogando intimidades, submetidas aos caprichos do marido. Entretinham-se, ambos, em preencher minuciosas fichas, arquivadas em um acervo particular que orientava a caça aos pervertidos, insubmissos, rebeldes.
Em julho, morreu a mãe, após largo padecimento. A sala, fedendo a vela e crisântemos, flutuava na madrugada gélida, caixa de silêncio arranhada, vez em vez, pelo pipilar dos pardais empencados nos fícus, pelos ais sussurrados da cozinha. Então, velando aquele corpo devastado, Dório percebeu que, embora o sal das lágrimas vertesse da mesma fonte, as suas derramavam-se pelo fardo de existir, enquanto as que observava nos rostos que entravam e saíam da casa eram horror à hora presente. Um precipício intransponível apartava-o daquelas pessoas, daquele mundo — na caverna que habitava agora, ouvia, impotente, o lamento das coisas que nunca seriam.
Indignado, Dório deixou a convivência com o cunhado e a irmã, que já o encaravam com o desprezo dos verdugos, para pousar em pensões baratas nos arredores da Rodoviária, onde compartilhava mofo e pulgas com peões de obra, pequenos traficantes, drogados, vagabundos, prostitutas, alcoólatras, encostados. O pouco dinheiro aportado da roça para sustentar os estudos, complementava com aulas particulares de matemática. Arrastou-se assim franciscano até após conseguir um lugar na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde, desde o começo, encantou-se com a mecânica dos solos. Antes mesmo de se formar, estagiando nos canteiros da Construtora Alber Ganimi, examinava carinhoso dos torrões a textura, plasticidade, consistência, compactação, permeabilidade… Tanto desvelo guiou-o a uma pós-graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde firmou-se discípulo do legendário mestre, professor Anacleto Roncesvalles.
Embora não se interessasse por política, a política o cevava. Em Juiz de Fora, empenhara em preservar-se alheio, enredado em números e análises e estatísticas, mas impossível respirar aqueles ares sem se intoxicar com os desmandos. Os militares passeavam sua arrogância, os poderosos desembainhavam seus sobrenomes, ele seguia acuado, a cabeça milímetros além da lâmina de água. Dório se esmerava na assimilação de cálculos e estruturas, por sobrevivência: não se recusava a perceber o que ocorria, mas conduzia os pés um pouco acima do chão. Em 1978, já morando no Rio de Janeiro, funcionário de uma grande empresa, iniciou a pós-graduação, mantendo-se atento à agonia da ditadura. Afinal, em 1984, defendida a tese Efeitos da penetração da água em estacas em solos granulares, acatou aconselhamento do professor Roncesvalles e tornou-se consultor do Banco Mundial. Principiou então o que nominou uma “longa imersão para fora”.
Quando despertou, o século xx morria…
Luiz Ruffato