MASHA

 

 

 

Masha seguiu Andrey, ainda furiosa e surpreendida. O tirano de ganga expulsara-a, praticamente, do caso e da Petrovka naquela manhã! Mas Masha tinha de admitir que sabia muito bem que Katya não podia ter captado aleatoriamente a atenção do assassino enquanto percorria a estrada a caminho do apartamento de Masha. E Andrey tinha razão. Isso significava que sabia quem ela era. Esse pensamento aterrorizava-a, mas, ao mesmo tempo, provocava uma descarga de excitação e o corpo inteiro de Masha ficou tenso como um galgo pronto a partir.

«Vou apanhar-te», jurou pela milésima vez. «Gostarias disso, não gostarias? Estás cansado de provar que tens razão neste mundo sem alma. Vamos, liberta-te desse fardo! Mostra-te, fantasma!»

Olhou em redor, para o caso de aparecer algum assassino. Mas tudo o que viu foi a morgue e Andrey segurando-lhe a porta. Atrás dela, o bulício da rua moscovita.

Enquanto percorriam o corredor, com o piso revestido por um garrido linóleo amarelo, Masha tentou não pensar no que estava prestes a ver. A figura imponente de Pasha surgiu no corredor. Preparava-se para sair para fumar. Andrey apresentou-lho rapidamente e o médico-legista curvou-se numa vénia cavalheiresca.

– Yakovlev, tens sempre esta sorte com os estagiários? – perguntou.

– Nem sempre – murmurou Andrey. – Graças a Deus.

– É um brutamontes tão grande! – comentou Pasha, inclinando-se para a orelha de Masha. – Mas há um coração bondoso e nobre algures por baixo desta superfície hedionda.

– Não é sempre assim? – Masha sorriu, colaborando no jogo. – Nunca há um bom coração sem uma superfície hedionda. Haverá alguma justiça neste mundo?

– Só em contos de fadas – respondeu Pasha, completamente sério. – Estou a ler um livro cheio deles ao meu mais novo. Os monstros com bons corações transformam-se sempre em belos príncipes no fim. Mas, antes disso, precisam de ser beijados. Mesmo que sejam feios. – Pasha piscou o olho. – Que tal dar um beijo ao Yakovlev, Masha? Em que poderia transformar-se? Seria agradável poder olhar para alguma coisa bonita por aqui, de vez em quando. Só vejo cadáveres e tipos desagradáveis como, por exemplo...

Masha riu-se e Andrey semicerrou os olhos a Pasha.

– Já chega, Rudakov. Onde está o nosso cadáver?

– O teu cadáver tornou-se uma verdadeira celebridade. Uma causa de morte muito invulgar. Vamos para o meu recanto.

Pasha fez um gesto exuberante e seguiram-no até uma sala de autópsias, onde o cadáver os esperava sob um lençol. Pasha terá reparado que a cara de Masha ficou verde porque pausou.

– Sabe – disse, hesitante –, acho que não lhe vou mostrar tudo. Este é bastante perturbador, até mesmo para um cliente habitual. Para uma jovem senhora como você... Deixe-me mostrar-lhe apenas a mão.

Pasha ergueu cuidadosamente uma ponta do lençol e que mão era. Não restava nenhuma pele e, em alguns pontos, via-se osso. Masha gritou de alarme e agarrou-se a Andrey, que também estava bastante pálido.

– Que aconteceu aqui? – perguntou.

– Não posso dizer-te ao certo. Não sou um entomólogo.

– Um quê?

– Um perito em insetos. Parece que foram formigas. Comuns, tanto quanto sei. Guardei algumas num frasco ali. Afinal, não são exatamente vegetarianas.

– Dizes que foram as formigas que a mataram?

– Não. – Pasha descalçou as luvas e passou uma mão fatigada pela testa. – Fiz uma autópsia. O coração não resistiu. Os tipos no local disseram que o sítio estava coberto de formigas. Comeram-na viva e ninguém a ouviu gritar. Paredes com isolamento sonoro reforçado, ao que parece. A mulher trabalhava no apartamento como médium, bruxa ou qualquer coisa assim. Aplicou isolamento sonoro nas paredes para os vizinhos não a ouvirem falar com os clientes. Afinal, funcionavam bem de mais. Não sei dizer-vos mais nada. Acho que vou fumar. Pode ser?

Masha e Andrey acenaram com a cabeça e seguiram-no até à saída. Sem explicação, Masha correu pela porta e virou na esquina do edifício. Vomitou.

Andrey encontrou-a um minuto depois, inspirando avidamente o ar poluído da cidade. Ofereceu-lhe o seu lenço. Era enorme com um velho padrão axadrezado soviético. Masha agradeceu com um aceno de cabeça.

– Vamos – disse Andrey. – É outro motivo para já não te querer envolvida nisto. Olhar para cadáveres não é divertido. E este assassino monta um espetáculo que é demasiado até para um médico-legista experiente.

– Não me despedi do Pasha.

– Ele compreende. Vamos para o carro.

Partiram sem dizer mais nada. Quando pararam no trânsito, como sempre acontecia, Andrey olhou Masha. Continuava pálida e tinham-lhe surgido sombras escuras por baixo dos olhos. Sentiu-se dominado por uma sensação intensa de culpa.

– Lamento ter-te envolvido nisto – disse, por fim. – Tenho medo do que te possa acontecer. Não é o tipo de caso que deveria ser o teu primeiro, percebes? A maioria dos detetives nunca vê este tipo de coisa durante a carreira inteira. Não passas de uma estagiária. – Quis acrescentar que, além de tudo aquilo, era aluna de direito, filha de uma família da elite e uma miúda mimada que só conhecia formigas de piqueniques e contos de fadas.

– A minha infância não foi tão fácil como pensas – replicou Masha, como se lhe lesse os pensamentos.

– Claro, claro – retorquiu Andrey. Supôs que tivessem conceitos diferentes de facilidade.

Levou-a a casa e acompanhou-a até à porta do apartamento, o que Masha apreciou. De alguma forma, as suas pernas estavam trémulas e tinha a cabeça às voltas.

Okay – disse ele, quase a encostando ao lado da porta. – Descansa. Teremos muito trabalho para fazer amanhã. E pede aos teus pais para mudarem as fechaduras, está bem?

Virou-se rapidamente e desceu as escadas. Masha quis dizer alguma coisa, quis dizer-lhe... o quê? «Obrigada por cuidares de mim, mesmo que não precisasses de o fazer, mesmo que, provavelmente, não te importes realmente. Obrigada por revelares ser melhor do que pensava que eras.» Ou algo ainda mais louco como «Sabes, sinto-me tão calma e segura contigo. Há muito tempo que não me sentia tão bem. Não me sentia tão bem com ninguém desde a morte do meu papá».

Mas Masha limitou-se a rodar a chave na fechadura, abrindo a porta e quase caindo para a escuridão silenciosa e familiar do apartamento.

 

*

 

Masha percebeu que sorria, mas, a seguir, sentiu-se mal. Um local do crime não era sítio para ser arrogante. Mesmo assim, era difícil porque aquele apartamento, a residência de Alla Kovalchuk, ou Adelaide, como chamava a si mesmo, rebentava pelas costuras com kitsch. Tudo era dourado e torcido em contorções floreadas daquele estilo barroco específico tão próprio dos novos-ricos. Andrey examinava a divisão onde o homicídio tinha ocorrido e onde Adelaide recebera os seus clientes. Não a deixara entrar e até fechara a porta. Mas o cheiro a putrefação, aterrador, adocicado e doentio, chegou-lhe, mesmo assim, e não protestou. Na realidade, Masha decidiu deixar de discutir com Andrey quando possível. Também decidiu que lhe gritaria apenas se fosse absolutamente necessário, como quando precisou de provar que estava (evidentemente) certa.

Masha passou uma mão sobre uma almofada de veludo e tentou o sofá macio. Era evidente que a dona da casa se tinha mimado de todas as formas possíveis, como se não aguentasse a disciplina do mobiliário com costas direitas ou assento firme. Só coisas agradáveis ao toque podiam estar ali, apenas objetos macios e quentes. A mesinha suportava romances com capas decoradas com cenas luxuriantes, contando histórias tão rosadas e macias para o cérebro como aquele sofá era para o corpo. Mesmo que não a tivesse conhecido, Masha decidiu de repente que Alla Kovalchuk teria tido uma infância e adolescência difíceis. Teria sido esse o motivo provável para se ter rodeado de tanta doçura em adulta.

Masha encostou a testa a uma janela e olhou a Praça Pushkin. Não havia um único som que passasse as três camadas de vidro, o que fazia as pessoas e carros acelerando pela Avenida Tverskoy, em baixo, parecerem irreais, como fantasmas num baile de máscaras sem sentido. Ouviu passos atrás dela, mas não se virou. Andrey parou a seu lado, olhando pela janela com ela.

– Parecem formigas – disse ele, grunhindo. Estremeceram os dois, recordando a mão comida até ao osso.

– A Praça Pushkin chamava-se Praça Strastnaya – disse Masha em voz baixa.

– Não sabia isso.

Strast significa paixão. A praça foi batizada em honra da Paixão de Cristo. Em eslavo eclesiástico antigo, strast significava sofrimento ou tormento. – Masha abanou a cabeça, tentando escapar à sequência interminável de associações que se alongava na sua cabeça. – Tenho lido demasiado sobre estas coisas.

– Vem à cozinha. Tenho uma coisa para te mostrar.

Havia uma cadeira virada ao contrário e que não se parecia nada com as restantes, de madeira escura e cara. Aquela cadeira era barata, possivelmente fabricada numa fábrica de mobiliário bielorrussa para algum departamento governamental. Andrey virou-a para Masha conseguir ver uma placa de metal nas costas com o número quinze. Masha susteve a respiração. Então era ele, outra vez.

Andrey forçou um sorriso sombrio.

– Vamos embora – disse e apressaram-se ambos a sair do apartamento, puxando a porta pesada atrás deles.

Masha correu pelas escadas a baixo atrás de Andrey. Os seus olhos não se afastavam do seu cabelo rente.

– Sabes – disse-lhe –, comparei os números com as Arma Christi.

Andrey abrandou para ouvir.

– Foram os instrumentos da Paixão, os objetos usados para atormentar Jesus Cristo: a coluna, o chicote, a coroa de espinhos. As quantidades batem certo, mas...

Andrey fungou.

– Mas Cristo nunca pecou.

No andar de baixo, uma porta abriu-se e uma jovem de gabardina rosa saiu para o patamar.

– Isso mesmo – dizia Masha. – Mas o local onde a Paixão aconteceu foi Jerusalém. Por isso, pensei que talvez...

Chocou contra Andrey, que tinha parado de repente.

– Desculpa. – Masha apoiou-se no corrimão e sentiu-se corar como consequência do contacto momentâneo com as costas de Andrey. Mas este não respondeu. Nem sequer se virou.

A seguir, Masha viu que a rapariga de rosa também tinha parado de repente, olhando-o fixamente. O espanto na sua face estreita, quase de boneca, transformou-se num sorriso provocante.

– Andreeeeeyyy! Olá! Há quanto tempo! – afirmou num tom que exagerava a sua voz aguda.

Andrey continuava sem dizer nada e, quando Masha se aproximou dois passos e captou um vislumbre da cara dele, a palidez chocou-a.

– Olá – conseguiu dizer finalmente com voz fria.

Masha esperara uma apresentação, mas não restava em Andrey concentração suficiente para desperdiçar com boas maneiras.

– Não acreditei que também conseguisses fugir da velha Lixogrado e acabasses em Moscovo – continuou a desconhecida enquanto movia os olhos sobre ele, da cabeça aos pés, sem qualquer indício de modéstia. – Talvez não te devesse ter deixado depois do secundário, não é? – piscou-lhe um olho de modo teatral.

Mas Andrey deixou-se ficar onde estava, arregalando os olhos e parecendo ter engolido a língua.

Masha agiu por impulso. Pegou-lhe na mão e Andrey pareceu nem sequer ter reparado. Mas a rapariga notou e olhou Masha pela primeira vez. Aquele olhar era esmagador, mesmo estando meio lanço de escadas abaixo deles. Durante uma fração de segundo, Masha desejou ter vestido as roupas caras que a mãe gostava de lhe comprar, alimentando sempre a esperança de a filha poder responder finalmente ao chamado da moda. Mas, quase de imediato, recuperou a compostura, puxou Andrey pelos degraus até ao patamar e estendeu a mão.

– Olá. Sou a Masha. Masha Karavay.

Aparentemente, a rapariga não estava preparada para um aperto de mão. No sítio onde vivia e trabalhava, estariam habituados a cumprimentar-se uns aos outros com acenos de cabeça breves.

– Raya – disse, apertando a mão de Masha sem grande empenho.

– Prazer em conhecer-te! – respondeu Masha, invocando o sorriso que a mãe usava quando achava que algo era exatamente o contrário de um prazer, mas pretendia portar-se bem. – Queria agradecer-te por teres deixado o Andrey... – Masha puxou o seu supervisor chocado para ela com um floreado possessivo. – Sem isso, não estaríamos juntos. Por isso, muito obrigada! Desculpa-nos, mas vamos encomendar a nossa nova cozinha. Sabes que temos de estar sempre em cima deles ou enviam-nos os modelos italianos do ano anterior e não a nova coleção! – Com aquilo, Masha esboçou novo sorriso cegante. – Adeuzinho!

– Hmm... adeus – retorquiu a rapariga, com voz trémula. Não se mexera e deixara de sorrir.

– Até à vista! – disse Andrey com voz quase normal. Tinha retomado a descida das escadas com Masha, mas, desta vez, sem falar. Masha seguia à frente, puxando Andrey pela mão e não o soltou até chegarem ao carro.

– Os modelos do ano passado? Italianos? – Andrey esboçou-lhe um sorrio enviesado.

– Quem sabe? – Masha encolheu os ombros. – Precisava de uma forma rápida de lhe mostrar a tua vida familiar feliz.

– Porquê? – Andrey evitou-lhe o olhar.

Masha dirigiu-lhe um olhar irado.

– Pareceu-me que precisavas.

– De uma família falsa?

– Não – disse Masha com voz dura. – De felicidade.

– Bom, sim... – Andrey calou-se e produziu um assobio baixo. – Obrigado, acho eu.

– De nada, acho eu. – Masha sorriu. – Almoço?

– Podes ter a certeza que sim, estagiária Karavay. – Andrey respondeu com um sorriso. – E o chefe paga.