INNOKENTY
Innokenty desligou o telefone e deixou-se afundar pesadamente na otomana de couro verde-escuro no corredor. Era o detetive de ganga de Masha, Yakovlev. Conduzia e, aparentemente, estava com muita pressa. Yakovlev tinha dito a Innokenty que o padrasto de Masha estava morto. Não dera pormenores, mas Innokenty sabia o suficiente para depreender que Belov teria sido assassinado de algum modo medieval hediondo. E sabia tão bem como Yakovlev que a morte do padrasto de Masha não era coincidência. O Colecionador de Pecados estava cada vez mais próximo de Masha. O facto de continuar viva poderia ser apenas uma distração, mas era difícil acreditar nisso. O mais provável era que a sua sobrevivência fosse um elemento vital do seu jogo maquiavélico, parte do seu controlo obsessivo dos acontecimentos. Dizia que podia matar Masha se quisesse, quando quisesse.
Yakovlev tinha pedido a Innokenty que fosse buscar Masha e a sua mãe e as levasse para casa.
– Apenas durante algum tempo – clarificou. Innokenty ouvia-lhe o medo e a exaustão na voz. Havia também um novo tom, uma nota de súplica.
– Claro. Vou já buscá-las – concordou Kenty. Depois, acrescentou. – Não se preocupe. O meu apartamento é como o cofre de um banco. Ficarão relativamente seguras aqui.
– Relativamente. Certo – replicou Yakovlev. Mas também lhe agradeceu com sinceridade.
– Não se preocupe – disse Innokenty automaticamente, mas algo o incomodava. Quem achava o detetive de ganga que era agradecendo a Kenty por tomar conta de Masha Karavay? Tomara conta dela durante os quinze anos anteriores sem que ninguém lhe pedisse que o fizesse! Mas não demorou a ver a razão. O taciturno chefe de Masha revelava ser um bom tipo e era natural que se preocupasse com ela. Innokenty correu pelas escadas a baixo até ao seu carro e dirigiu-se para a casa de Masha, sem sequer se dar ao trabalho de telefonar primeiro.
Quando Masha abriu a porta, Kenty sobressaltou-se. Parecia magra e doente, com as clavículas salientes visíveis por baixo do roupão de banho, com os ombros demasiado angulosos e com a face... A sua face parecia tensa e amargurada, com olheiras e faces cavadas. O cabelo pendia-lhe em madeixas longas e despenteadas e até os seus olhos pareciam baços, como se tivessem perdido toda a luz. Deu um passo lento para o lado para deixar Kenty entrar e conduziu-o até à cozinha, arrastando os pés, onde se sentou virada para a luz. Esboçou um sorriso triste.
– A mamã está no hospital – disse. – Problemas de coração. Suponho que já saberás o que aconteceu?
Innokenty acenou com a cabeça e tentou pegar-lhe na mão, mas Masha afastou-se e baixou o olhar para se concentrar em puxar uma pele solta de uma unha. Conseguiu e arrancou um grande pedaço de pele. Nem sequer vacilou. Lambeu o sangue do dedo e voltou a olhá-lo com o mesmo sorriso vazio.
– Masha – começou Innokenty –, não devias estar aqui. É perigoso de mais. Mesmo que conseguisses convencer-te de que a morte da tua amiga foi coincidência...
– Chamava-se Katya – disse Masha.
– Sim – concedeu Innokenty. – Mas sabemos que a morte da Katya não foi um acidente e o teu padrasto também foi morto por um tipo qualquer.
– Certo – concordou Masha. – Isto é sobre mim e a culpa é toda minha.
– Isso é ridículo! Porque..
– Não, Kenty! Para. É óbvio! – afirmou Masha. As palavras saíam-lhe numa torrente frenética enquanto puxava outra pele solta. – Até a minha mãe o disse!
Innokenty segurou-lhe a mão, mas sentiu-a tremer e os dedos dela contorceram-se como insetos tentando libertar-se.
– Que disse a tua mãe?
– Sim, a mamã também! Se não me tivesse envolvido nesta coisa de Jerusalém, ninguém teria percebido! Talvez ele tivesse parado de matar. Talvez se tivesse aborrecido. Mas, agora, passou a ter público. Tem alguém com quem brincar, percebes? Quem se esconderia na floresta como um idiota, sozinho? Com pessoas razoavelmente inteligentes atrás dele, é diferente e estou mais próxima do que qualquer outra pessoa. É divertido para ele brincar comigo. E tenho tantos pecadores à minha volta. É o que tenta dizer-me. Diz-me que tenho estado cega! Sigo-lhe o rasto, mas não consigo ver o que está mesmo à minha frente!
– Masha! – Innokenty apertou-lhe mais a mão. – Precisamos de preparar um saco com as tuas coisas. Escolhe o que te fizer falta durante um par de dias.
– Para quê, Kenty? Achas que não me vai encontrar?
– A minha casa é mais segura – insistiu Innokenty. Levantou-se, foi ao quarto dela e abriu o armário. Masha ficou à porta e olhou-o com um sorriso estranho.
– Não percebes, Kenty – disse, baixando a voz. – Não sou eu quem precisa de proteção. És tu. Tu, a minha mãe e todos os que estiverem à minha volta. Correm todos perigo.
Kenty não a olhou. Encontrou calças de ganga, camisolas e as T-shirts pretas preferidas dela e enfiou tudo num saco. Masha suspirou. Com uma pontada do seu antigo sentido de humor, acrescentou:
– Também me vais escolher a roupa interior?
– Onde a guardas? – perguntou Kenty, virando-se para ela e sorrindo. Graças a Deus, retribuiu o sorriso. Um sorriso real, desta vez.
Saíram do apartamento de Masha dez minutos depois, levando o saco cheio e Innokenty fechou a porta.