O COLECIONADOR DE PECADOS

 

 

 

Ainda tinha tempo. Tinha repetido muitas vezes os cálculos. Não confiaria no carro. Podia haver um engarrafamento. E não lhe apetecia descer abaixo da superfície para ir de metro. Em vez disso, percorreu a Circular a pé e, afinal, tinha merecido aquela caminhada.

Vestia uma velha gabardina com os punhos desfiados. A mulher tinha remendado o forro mais do que uma vez, mas não podia fazer nada acerca dos punhos desfiados. Adorava aquela velha gabardina, amando até o seu estado de degradação. A gabardina vivia com ele desde o início do outono até ficar suficientemente frio para um casaco de lã, regressando a meio da primavera e ficando até ao verão. E preferia sempre aquelas estações intermédias ao frio do inverno ou ao calor intenso do verão. Entre estações, quando o sol brilhava mansamente e o ar estava húmido e temperado com um cheiro mais forte a gasolina, era-lhe mais fácil acreditar no que o seu coração conseguia ver. O que via naquele momento não eram os carros a passar a grande velocidade, os outdoors de mau gosto, a publicidade sórdida ou o fluxo de gente passando por ele, sem que ninguém reparasse no homem com a gabardina velha e os sapatos gastos, o homem com a face que parecia cansada da vida.

Não. Tornara-se invisível até para si mesmo, como o ar mutável entre estações, e conseguia ver a paisagem urbana em redor mudando também. As muralhas de Bely Gorod ergueram-se, as muralhas a que Boris Godunov chamara Tsargrad, com a pedra branca erguendo-se para ocultar o rio de imundície por baixo. Sobre as muralhas, apenas o céu, o mesmo céu de 1593, quando Fyodor Kon terminou a construção e o Khan e os seus saqueadores cavalgaram até às muralhas da fortaleza e voltaram para trás de mãos vazias. Esboçou um sorriso astuto, como se ele próprio se sentasse sob aquele teto piramidal, vendo a horda tártara retirar para o horizonte.

Quase chegara à sua penúltima paragem: um enorme edifício em forma de C com três alas, junto à Circular. Uma das alas tinha saída para a Rua Znamenka, a «Rua do Sinal». Pensou em caminhar também por essa rua, depois. Assim, veria duas pequenas igrejas à sua frente, no crepúsculo crescente, como se nunca tivessem sido demolidas: a Igreja de São Nicolau Milagreiro, com as suas três cúpulas e o campanário, no local onde tinham construído uma nova e garrida capela, e a Igreja do Sinal da Santa Mãe, onde não existia nada além de um parque infantil. Precisaria apenas de meia hora para fazer o seu trabalho e daria um passeio tranquilo pela Praça Borovitskaya e, daí, até ao rio.

Mostrou a sua identificação à entrada e entregaram-lhe um crachá. «DMMC», dizia o crachá (Diretoria Médica Militar Central do Ministério da Defesa da Federação Russa). O canto do pequeno cartão estava decorado com um emblema complicado: a serpente tradicional enrolada à volta de um cálice. E havia algo dentro do cálice. Uma adaga? Um pilão? Ramos de carvalho de cada lado, uma águia colocada por cima e uma cruz vermelha em baixo. «Meu Deus!» Riu-se. Que heráldica tão ridícula.

Bateu à porta. A secretária já tinha saído, como antecipara, e entrou, sendo acolhido por uma voz baixa e trovejante. Leontiev até se ergueu para o cumprimentar. Havia uma certa apreensão nos seus olhos. Claramente, questionava-se sobre o que o procurador quereria dele. Mas a verdade era que ninguém rejeitaria reuniões com Herr Procurador, mesmo depois de se chegar a uma diretoria, com um gabinete vasto e vista sobre o Kremlin. Apertaram as mãos e Leontiev sentou-se na sua cadeira de couro no extremo de uma mesa longa, polida até brilhar como gelo. Gesticulou com uma mão larga ao seu visitante para também se sentar.

– Ouvi falar de si, claro! – trovejou, olhando o homem com a gabardina velha. – A que devo o prazer?

O homem sorriu, expondo dentes falsos de má qualidade.

– Serei rápido. Sei que o seu tempo é precioso. Tenho apenas uma questão simples – disse. – Fui informado de uma série de suicídios. Ou melhor, de suicídios aparentes. Todos os homens que se mataram foram soldados no Afeganistão. Eis o que percebi. – O sorriso do homem da gabardina transformava-se num esgar trocista ou sempre fora assim? – Descobri que a todos foram negadas cadeiras de rodas. Esse mesmo decreto, ditado, oficialmente falando, pela necessidade de conservar recursos, cancelou também os descontos dos veteranos na medicação receitada.

– Não sei se compreendo totalmente o seu interesse pelos assuntos deste ministério. – Leontiev tentava manter a cortesia, mas, na face franca que fora tão valiosa na sua carreira, via-se uma sugestão de irritação. – Sabe tão bem como eu a que ponto o orçamento federal encolheu.

O homem acenou afirmativamente enquanto batia com o sapato velho no chão, continuando a falar como se nada tivesse acontecido.

– Contudo, de acordo com a informação que tenho, foi comprado mobiliário novo para o seu gabinete, no mesmo período. – Passou um dedo delicadamente sobre o tampo brilhante da mesa. – Cerejeira, não é?

Leontiev acenou com a cabeça.

– Por pouco mais de cinco milhões de rublos – continuou o homem. – Todos estes entalhes, o bronze e o couro de qualidade. Tudo isto custa bom dinheiro, não? – Ergueu-se e contornou a mesa, muito perto de Leontiev, com voz amistosa. – Todo este lixo caro não lhe provoca urticária no rabo?

– Que significa isto? – Leontiev erguia-se devagar da sua cadeira, estofada com aquele couro incriminatório. De pé, tinha a mesma altura daquele indelicado procurador. De repente, ouviu um estalido. Moveu o olhar para um lado e, aí, a dois centímetros da sua têmpora, outro olho o fitava, sem pestanejar. O cano de uma pistola. Também viu, pela primeira vez, os olhos do homem com a gabardina velha. Comparada com eles, a pistola parecia quase amável.

– O que...? – começou Leontiev, mas o homem ordenou-lhe que se calasse e, com o gesto experiente de um ilusionista veterano, colocou-lhe uma mordaça e apertou-a com força. Do outro bolso da gabardina, o homem retirou um rolo de adesivo, que usou para prender Leontiev à sua cadeira extravagante. Houve um momento em que poderia ter-se libertado. Mas aquela pistola... E o procurador parecia tão seguro de si, sem qualquer indício de estar nervoso. Colocou uma pasta negra comum sobre a mesa. Tão calmo como antes, começou a retirar pequenos pinos de madeira da pasta, um de cada vez, dispondo-os ordeiramente sobre a mesa.

Leontiev julgou que enlouqueceria. O que acontecia ali, no seu gabinete, sem qualquer preâmbulo, parecia não fazer sentido. Para que quereria o homem aqueles pinos? Antes que Leontiev encontrasse uma resposta, os seus olhos começaram a mover-se em redor como os olhos de um pássaro assustado e estacou. Movendo-se um pouco, aproximou-se da mesa. O mobiliário novo não produziu qualquer som e a alcatifa abafou o movimento. Com a sola de um sapato formal de couro macio, Leontiev procurou o botão de alarme por baixo da mesa. Havia o botão que alertava a segurança do edifício e também um segundo com ligação direta à polícia. Mais um centímetro, só mais um... Tossiu um pouco para distrair o procurador do que fazia e, finalmente, graças a Deus, o seu pé tocou o botão.