Uma jangada custa aproximadamente Cr$ 9.000,00 quando em 1910 valia 1.700$000. Um pescador não pode comprá-la. Menos de dez por cento dos jangadeiros são possuidores de uma embarcação. A jangada de tábuas é muito mais cara. Chega a ser vendida entre Cr$ 12.000,00 a Cr$ 15.000,00 e mais. Em 1888 o preço variava entre 150$000 a 200$000.
Há justificativa para esta diferenciação. A jangada comum dura oito meses a um ano e a jangada de tábuas garante-se dezesseis, dezoito e mais anos, com a natural conservação.
Nas jangadas comuns, passados os oito meses, é preciso desfazê-la, pondo os paus para enxugar ao sol, substituindo algum que haja apodrecido. É trabalho durante o inverno quando as pescarias rareiam.
Os jangadeiros constroem uma latada, cobertura de palha de coqueiro sobre quatro pilastras que são os fustes do coqueiro e sob esta proteção minguada começam no serviço da recomposição da jangada. Quase sempre outubro para que vindo o tempo bom do verão, novembro a janeiro, haja embarcação para as pescarias da safra.
No inverno raro se pode pescar. No máximo vão às Curubas. O vento sopra de terra para o mar, empurrando-os para o alto. Chuva, neblina, frio. O peixe está escondido no fundo ou nas pedras, nas grotas das urcas do norte do Estado onde água é morna. Para voltar é um trabalho duro, lutando contra as lufadas e, na maioria dos casos, dando de arribada noutras praias, puxados pela ventania, tangidos pelo mau tempo.
Passados os oito meses e refeita a jangada, com uma mimbura ou bordo novo, bem limpa e esfregada com areia e bucha de coco, há outro prazo para a pescaria mas a jangada não é a mesma. Passou a paquete. Noutro inverno é a nova renovação que a rebaixa para o Bote. Já não pode mais descer na escala das utilidades.
Com a jangada de tábuas não há este problema. Substituem uma ou outra tábua e revisam o cavername, aviamentos, pano de vela, e a jangada vai durando, durando que é uma bênção de Deus.
No inverno faz-se, comumente, a pesca de agulha. Pescam também no verão mas a estação fria é preferível. Levam na jangada o Serrador, jangadinha de um metro e meio de comprimento, tripulada por um homem, também denominado o Serrador. Lá fora, perto das urcas ou pedras submersas, a jangadinha é posta no mar e o Serrador deita a ponta da corda, longa de duzentas braças, que se prende à Rede-de-Agulhas. Jangada e Serrador descrevem os dois grandes arcos da circunferência, unindo ao final. A jangada atirou a rede. Da jangada fazem a puxada e o Serrador, mergulhando o reminho na água, em repetido movimento vertical afugenta as agulhas, fazendo-as reunir no bolsão da rede.
Vez por outra o Serrador é arrastado pelo empuxo do mar para dentro das urcas, especialmente no mar alto do norte do Estado. As bocas escancaradas das urcas engolem pescador e jangadinha que nunca mais reaparecem. Os cações vivem nas urcas. São os viveiros deles.
A pescaria de agulhas, não indo à urcas prolíferas, é nas Curubas e mesmo na Carreira das Pedras.
É o tempo em que se deixa no fundo o Covo, esperando com a sanga aberta, sempre para o norte, a visita confiada dos peixes. Vão despescá-lo no outro dia.
Uma jangada, na maior pescaria de safra, pode apurar no máximo de Cr$ 3.000,00 a Cr$ 4.000,00. Mas é preciso que São Pedro ou Nossa Senhora dos Navegantes ajudem. Os três jangadeiros devem trazer de 10 a 12 arabaianas e uns três a quatro cerigados, umas três cavalas, umas três ou quatro garoupas, três ou quatro ciobas, etc. Com os preços atuais, assombrosos, é possível aquela prodigiosa quantia. Mas é raro. É o máximo. A sorte grande do mar para a jangada.
Num bote de pesca faz-se de Cr$ 6.000,00 a Cr$ 7.000,00.
Mesmo na safra do voador (o Pirabebe dos tupis), o Peixe-Voador que passa em cardume durante 30 a 50 dias, maio, junho e julho, pela costa do Rio Grande do Norte, a jangada pode pescar uns três milheiros por dia. O milheiro de voador, preço atual, pago nas praias ao peixe fresco, vai a Cr$ 8.000,00. O ganho, quando alcançado este número, irá a Cr$ 2.400,00. Estou dando a jangada que acertou com o número da loteria de Natal.
Um bote de pesca traz até 30.000 voadores, valendo... Cr$ 24.000,00.
A economia do pescado é simples. O proprietário da jangada tem direito a cinquenta por cento do que se pescar. Lembre-se de que ele assume com todas as despesas, inclusive a boia, a alimentação dos jangadeiros que vai dentro da Cabaça ou Quimanga. O único gasto dos jangadeiros, além do risco da vida, é comprar uma faca de peixe, resistente e cortante, outrora privativa dos homens do mar e hoje arma predileta dos malandros arruaceiros, a peixeira.
Chamava-se a peixeira antigamente faca americana ou faca de embarcadiço.
Cinquenta por cento do pescado para o proprietário. O Mestre tem 50% do que pescou, individualmente assim como o Proeiro e o Bico de Proa guardam a metade do que tiveram nas suas linhas e entregam ao proprietário os restantes 50%. Por isso é indispensável a marca. O Mestre deixa sem sinal o seu peixe. O Proeiro corta a ponta da cauda. O Bico de Proa corta as duas pontas da cauda e se há o Contra Bico este tira um lapo do focinho do peixe. Juntando todo o pescado no monte da pescaria faz-se a conta final, dividindo-se os quinhões.
O Mestre tem ainda direito ao que recolhe na Linha de Corso que vai amarrada na sua coxa. Direito a 50% e os outros 50% para o proprietário. O Proeiro recebe 10% dos 50% da Linha de Corso porque é o encarregado da puxada. Logo que o Mestre sente a linha de corso fisgada, solta a laçada e entrega a ponta da linha ao Proeiro para que puxe. Ganha este, pelo serviço que lhe é privativo, 10%, do peixe do Mestre na linha de corso.
Ainda há, na maioria dos casos, o peixe da ceia que cada jangadeiro tem o direito de levar para o escaldado com a família. Era antigamente quase sagrado como propriedade doméstica. Não podia ser vendido. Era a esmola do Mar à fome da família pescadora. Hoje há quem o venda embora com crítica dos colegas. “Aquilo é tão ganancioso que vende até o peixe da ceia!”
É um direito consuetudinário o Mestre receber do proprietário alguns peixes de quebra, espécie de gratificação.
O pescado é vendido imediatamente aos marchantes de peixe, atravessadores ou peixeiros. Pagam logo ou, mais habitualmente no próximo domingo. Chamam a este pagamento fazer divisão. O peixeiro, vestindo roupa enxovalhada de jangadeiro, para o efeito moral, revende ganhando muito, fingindo-se exausto da labuta do mar, falando em botes, baiteiras, jangadas e mar brabo quando não arredou o pé da areia da praia, esperando os jangadeiros de verdade. É sempre grande conversador e pabuleiro, contador de vantagens e modesto expositor de heroísmos pessoais, ignorados pelos jornais e rádios. É o tipo do herói por autossugestão consciente e permanente.
Com essa economia a jangada está-se mantendo menos na razão financeira que na fonte incessante de uma mística ainda visível entre os pescadores. Há uma boa percentagem de fidelidade tenaz à jangada. “Não há embarcação de mar como a jangada”, diz-me Pedro Perna Santa, apesar de pescar em bote de pescaria.
Todos gabam a invencibilidade dos seis paus nas águas do mar. Madeira boeira para não afundar. Morre mais pescador de bote que pescador de jangada. Mestre de jangada é o sabedor do mar, familiar dos ventos, conhecedor dos peixes.
Jangadeiro é o verdadeiro pescador. Jangada é que sabe o mar. São as opiniões ouvidas. Os pescadores maiores de cinquenta anos são todos fervorosos jangadeiros. Com a crescente socialização implacável do Estado, esmagando a pessoa dentro do grupismo profissional, não haverá esperança do jangadeiro possuir a sua jangada e pagá-la, parceladamente, com o produto de seu pescado. A geração linda desses pescadores bronzeados extingue-se lentamente, lutando no mar, dando motivo literário e peroração política, sem o auxílio financeiro que os encheria de jubiloso entusiasmo produtor. A tendência teimosa pende para a possibilidade das Colônias de Pesca ou Sindicatos de Pescadores ou Cooperativas de Pescado terem no mar sua frota e nunca o jangadeiro isoladamente, ele próprio, herdeiro de quatrocentos anos de fidelidade funcional, sempre dependente, alugado, contratado, no máximo sócio. Impossível é constituir-se o proprietário dos seus meios tradicionais de produção. Cosi va il mondo...
Na divisão do pescado em certas praias do sul do Estado, na praia da Pipa por exemplo, há pequenas modificações. No comum a divisão é feita pelo proprietário ou um seu preposto. Na Pipa qualquer veterano de pesca ou pessoa que haja ajudado a botar p’rá cima a jangada procede a divisão desde que haja consentimento, mesmo tácito, dos componentes da embarcação, especialmente o mestre. O partidor fica com o peixe sobrado da partilha, as quebras, que aí têm a singular denominação de cadeira.36 Por mais justa que seja a partição nunca deixa de haver uma boa cadeira. O mesmo ocorre na Barra do Cunhaú, Tibau, Baía Formosa.
Bicheiro
36 Informação de Hélio Galvão em 5-9-1954.