Nota do tradutor

Não é fácil entender Santa Teresa D’Ávila. O radicalismo de seu compromisso religioso, que vê como pecados gravíssimos o simples apego à família e o gosto por conversar com as amigas, por exemplo, ou que luta contra a opinião de autoridades religiosas para estabelecer seu mosteiro de São José de Ávila na pureza e rigor da regra carmelita antiga, é algo muito distante da experiência contemporânea.

Tentar entender Santa Teresa, no entanto, vale a pena. O esforço começou com Teresa de Ahumada, ou com Madre Teresa de Jesus, a própria futura santa. Diante de uma experiência incomum — a experiência direta de Deus —, Santa Teresa demorou a entender exatamente o que estava acontecendo com ela. Assim como demorou a compreender a extensão do compromisso que seus votos religiosos exigiam. São essa experiência e esse aprendizado que ela tenta elucidar quando escreve o Livro da vida.

Ela não escreve, porém, por vontade própria. Santa Teresa escreve a pedido de seus confessores, sabendo que seu manuscrito será mostrado à Inquisição para que se sancionem como legítimas — essa é a esperança — suas experiências místicas. A Espanha do século das controvérsias religiosas disparadas pela Reforma de Lutero está às voltas com o fenômeno dos “iluminados”, pseudomísticos que desestabilizam a hierarquia da Igreja. Teresa não quer ser confundida com um deles. E teme despertar as antipatias num país em que o papel da mulher não era o de escritora ou mestra. Também precisa afirmar a pureza de seu catolicismo, já que é neta de um rico comerciante judeu convertido por parte de pai, ainda que seja “cristã velha” por parte da família abastada de criadores de gado de sua mãe. Por isso Santa Teresa escreve com cuidado. Afirma ser muito mais ignorante do que de fato é. O simples fato de saber ler desde menina já a poria acima da maior parte das mulheres, e dos homens, de seu tempo. Mas ela conhece e compreende bem a literatura religiosa e laica de sua época.

O texto do Livro da vida revela uma Santa Teresa apreensiva com a recepção que seu manuscrito possa receber por parte das autoridades, mas também revela uma mulher muito segura da autenticidade e importância de seu contato íntimo com Deus. Mesmo sabendo que seu manuscrito chegará às mãos das autoridades — embora finja pensar, ao longo dele, que apenas seus confessores o lerão —, Santa Teresa sabe igualmente que outras pessoas, já muito influenciadas por ela na época da redação do livro, o lerão. Serão pessoas leigas que se aproximam dela para instrução, e especialmente as religiosas de seus conventos reformados. Ora dirigindo-se a Deus, ora a seus confessores, ora a suas religiosas, a prosa da Santa mistura um tom de conversa de freira, a dicção dos romances de cavalaria — que lia quando criança e que usa especialmente para se dirigir diretamente a Jesus —, e a mais elevada Teologia Mística da qual Santa Teresa é uma das maiores mestras. Embora diga que nem sabe direito se é esse — teologia mística — o nome daquilo que ensina.

O que Santa Teresa tem a dizer, sua experiência muito particular, ainda não está cristalizado na época em que escreve. Nem a língua em que o vai dizer. O espanhol literário é uma língua ainda muito próxima de sua origem. Basta lembrar que o Dom Quixote de Cervantes, o primeiro monumento puramente literário da língua espanhola, foi escrito quase cinquenta anos depois do Livro da vida. Santa Teresa é uma das primeiras mestras também da língua espanhola.

O espanhol do Livro da vida é uma língua maleável, usada até seus limites ainda pouco definidos para “falar daquilo que não se pode dizer”. Isso dificulta a tarefa de um tradutor. Para dar um exemplo, Santa Teresa não pontuou seu manuscrito com nada além de pontos e travessões. Por isso, algumas frases resultam quase incompreensíveis. Frei Luis de León, na primeira edição do Livro da vida, que organizou em 1588, estabeleceu uma pontuação mais de acordo com as normas gramaticais, e que vem sendo seguida pela maioria dos editores posteriores.

Mesmo assim, o texto de Santa Teresa apresenta pontos de difícil elucidação. Alguns tradutores optam por torná-lo mais claro e direto do que ele realmente é. Outros, especialmente os ligados à ordem carmelita de Santa Teresa, traduzem o texto do Livro da vida à luz dos quase quinhentos anos de discussão e interpretação da espiritualidade teresiana de que são herdeiros e praticantes. Esta tradução tenta apenas pôr em português o que está no livro de Santa Teresa.

Não se trata de um livro escrito com calma por uma religiosa confortavelmente estabelecida como autoridade espiritual amplamente reconhecida, status que Santa Teresa levou muito tempo para obter. É um documento que brota ao mesmo tempo que a santa está travando suas mais difíceis batalhas na reforma da Ordem Carmelita. Apenas a fundação do primeiro dos mosteiros reformados está narrada no Livro da vida. A tarefa ainda se prolongaria por décadas, sempre em meio a oposição e dificuldades de toda sorte. Além da ameaçadora desconfiança que suas visões e contatos com Deus despertam.

O destino do livro, assim como o texto dele, atestam a maneira atribulada em que foi escrito. A primeira redação do que viria a ser o Livro da vida foi concluída em 1562 e entregue ao padre García de Toledo. Escrito por ordem do padre dominicano Pedro Ibáñez, esse original não existe mais. Uma nova versão, maior, foi feita, incluindo a história da fundação do convento de São José de Ávila. Essa versão recebeu um tratamento mais elaborado, tendo sido dividida em capítulos a que a santa deu títulos — alguns dos quais curiosamente autoelogiosos, nos quais parece que alguma outra pessoa escreve em terceira pessoa sobre o texto de Santa Teresa. Essa versão, que teve os parágrafos numerados, é a base da primeira edição, feita apenas depois da morte de Santa Teresa. O título da obra consagrado ao longo dos séculos é Livro da vida, mas não foi dado pela própria autora. Em sua correspondência, Santa Teresa se refere a ele simplesmente como livro grande ou minha alma. Numa carta a Pedro de Castro y Nero ela diz: “Intitulei esse livro Sobre as misericórdias de Deus”, mas essa designação não consta dos manuscritos.

Para a presente tradução, foi usada a oitava edição das Obras completas de Santa Teresa de Jesus, a cargo dos frades carmelitas Efren de la Madre de Dios e Otger Steggink, publicada pela Biblioteca de Autores Cristianos de La Editorial Católica em Madri, em 1986. Também foi consultada a 14a edição preparada por Dámaso Chicharro para a coleção Letras Hispánicas da Editora Catedra, Madri, de 2006.

MARCELO MUSA CAVALLARI