Entre as qualidades do dinheiro não está a elasticidade.
Não fique nervosa se não puder entender a letra. Conte até 10, dê uma volta pelo jardim e volte à tarefa com o espírito de sacrifício cristão.
Viva como viveria uma princesa, isto é, sem cuidados, sem preocupações. Durma ou pelo menos se deite depois do almoço. Dê um pequeno passeio de manhã. E seja feliz e descansada. Lembre-se do “tranquilismo de Lin Yutang”. “Não fazer nada” é uma das ocupações mais produtivas do homem.
Cheguei mesmo à conclusão de que escrever é a coisa que mais desejo no mundo, mesmo mais que amor.
Atravessei parte do Saara. É uma coisa de meter medo. Nunca vi tanta solidão. A areia não é branca, é creme. É maior que um mar.
Cuide-se como se você fosse de ouro, ponha-se você mesma de vez em quando numa redoma e poupe-se.
Procuro fazer e cumprir um programa de certa pureza; o que é difícil pelas contínuas interferências, mas não impossível. Procuro também fazer com que minha vida não seja cercada de excessos cômodos, o que me abafaria. Todas as vezes em que cedo e converso demais com as pessoas fico com uma penosa impressão de devassidão e entrega.
Num dentista encontrei uma mulher simpática que quis vir aqui e veio. Ó chateação! Dei-lhe chá, olhamo-nos, procuramos uma conversa, ela foi embora. Ela já telefonou para voltar, mas jamais estarei em casa. Ela é distinta; mas e eu com isso? Não posso abrigar todas as pessoas distintas no meu pobre seio.
Sonhei que alguém dava às pessoas o sono perdido; e que a mim perguntavam: perdeu mil ou dois mil de sono? Mas antes sonhei que estava num jantar onde estava presente... Deus. E Deus era representado por um enorme bolo todo luminoso; e porque alguém estava atrasado, o bolo se afastava zangado até que eu dava uma desculpa. Que coisa doida.
O rádio está ligado para Roma, para a Academia Santa Cecilia, onde há um concerto de música moderna contemporânea, de autores italianos. Estamos ouvindo harpa. (O autor não ouvi bem.) A música é de 1939. Disse o speaker lendo um comentário muito inteligente, que esse compositor usou o instrumento romântico para uma peça que não é romântica; que ele tirou o elemento decorativo da música (é bom como observação, não é?) e que usa a matéria musical como um artesão, e que já não sei que chinês dizia que a arte era o aproveitamento da matéria-prima. Realmente a música que estou ouvindo não tem por assim dizer “história”. Parece um bordado de sons, um manejar puro de notas.
Não sei o que querem do Brasil: fala-se no calor e nos mosquitos de lá. A Itália cheia de civilização, fascismo, renascença, tem no verão um calor às vezes acima do carioca, e quanto a mosquitos, você vê, de todas as qualidades.
Os embaixadores me respeitam... As pessoas me acham “interessante”... Eu concordo com tudo, também, nunca discordo do que se diz, tenho muito tato e conquisto as pessoas necessárias. Como você vê, sou uma boa senhora de diplomata.
As pirâmides, que eu vi à noite e também de dia, são impressionantes, sobretudo à noite. E junto da esfinge leram minha sorte na areia do deserto... e não disseram nada. O maometano disse que eu tinha “white heart”, coração puro... O que eu tenho na verdade é um coração pequeno onde já não cabem coisas, tão cheio de amor guardado ele é.
Eu infelizmente sou um espírito cansado e “blasé”; pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura. Mas como deixar por exemplo de ler e escrever por um tempo? No caminho em que eu entrei eu tenho que aprofundar ao máximo até meus defeitos, quanto mais tempo passar mais enfronhada eu deverei estar no que eu faço – só assim conseguirei um arremedo de perfeição.
Não posso ver um cão na rua, nem gosto de olhar. Você não sabe que revelação foi para mim ter um cão, ver e sentir a matéria de que é feito um cão. É a coisa mais doce que eu já vi, o cão é de uma paciência para com a natureza impotente dele e para com a natureza incompreensível dos outros.
Se você quer fazer regime pelo amor de Deus cuide de não se enfraquecer. Vá a um médico para saber que espécie de coisas você deve deixar de lado, mas alimente-se bem, você não é um passarinho, é uma mulher linda.
Não ponha pó de arroz em baixo dos olhos, isso é inteiramente contra qualquer processo de maquiagem (estou rindo).
Temos ido como sempre ao cinema e saio meio tonta do cinema, de tal forma estou sempre disposta a perder a consciência das coisas e a me entregar à inconsciência.
Sou como o papagaio da anedota: não falo, mas penso muito, presto muita atenção.
Vocês nunca experimentaram o que é receber cartas quando se está fora, sobretudo fora como eu, inteiramente fora: pergunta-se sem esperança mas cheia de esperança e quase certeza: há cartas para mim? E se respondem: chegou, esta – então eu fico boba de surpresa e de reconhecimento.
Queridas, que a paz esteja convosco. Essas são palavras mágicas que dão alguma coisa. Que a paz esteja convosco, a saúde, a serenidade, a alegria. E meu amor também. Até breve, escrevam.
Mas por que afinal eu hei de observar minha natureza como se ela fosse um pecado? Por que não ver com franqueza e sem recriminações que eu tenho a pior espécie de esnobismo, que é o de não ter prazer nas “coisas do mundo”? estou rindo.
Na verdade eu tenho um temperamento pobre. Acontece que os dois gramas de força íntima que eu tenho eu gasto no meu trabalho e no meu desejo de trabalho – e não resta para mais nada. E já notei, que se eu não trabalho então, esses dois gramas eu também não sei dar. Não é engraçado?
Expandir-se é a própria alegria de viver.
Gasto muito a cabeça pensando, repensando e me preocupando e resolvendo mentalmente todos os problemas, estou sem memória. Aliás o médico disse que estou perdendo fosfato. Fomos ver ontem de tarde um filme de Carmem Miranda e de noite encontramos umas pessoas que nos falaram do filme e eu disse com a maior calma: é sim, nós vimos um dia desses esse filme. E fiquei boba quando “soube” que tinha sido nessa mesma tarde.
Eles todos são ótimos. Só que são de outra espécie absolutamente. A senhora é o tipo da boa senhora, de família, simples, boazinha. Mas eu vivo me contendo para não abrir a boca porque tudo o que eu digo soa “original” e espanta.
Só não tenho um cachorro aqui porque nunca mais terei cachorro, para não ter que abandonar depois.
Durante um só dia tudo fica claro e tudo fica escuro e de novo tudo claro. O que é preciso é não ir demais contra a onda. A gente faz como quando toma banho de mar: procura subir e descer com a onda. Isso é uma forma de lutar: esperar, ter paciência, perdoar, amar os outros. E cada dia aperfeiçoar o dia.
Ninguém tem direito de torcer e moldar demais destinos, mesmo que sejam os dos próprios filhos, suponho.
Quem faz arte sofre como os outros só que tem um meio de expressão.
Não sou muito normal, sou desadatada, [sic] tenho uma natureza difícil e sombria. Mas eu mesma, com esse temperamento e essa anormalidade de todos os instantes – se eu não trabalhasse estaria pior. Às vezes penso que devia deixar de escrever; mas vejo também que trabalhar é a minha moralidade, a minha única moralidade.
Se eu não trabalhasse, eu seria pior porque o que me põe num caminho é a esperança de trabalhar.
E eu de novo estou junto da máquina e interrompo meu trabalho rude que é tão duro como quebrar pedras.
Você me pergunta se eu tenho trabalhado. Não sei se tenho trabalhado: meu trabalho não tem aparecido. Acho que ele consiste na maior parte do tempo em me vencer. Em vencer meu cansaço e minha impotência.
É um trabalho acima de minhas forças, eu diria, se ao mesmo tempo não visse que o que eu escolho para fazer é a única coisa que posso. Se isso se chama poder. O que me atrapalha é que vivo permanentemente cansada.
Minha tendência seria a de pensar apenas e não trabalhar nada... Mas isso não é possível. O trabalho de compor é o pior.
Gasto muito de minhas forças procurando formar uma vida severa e austera, procurando me esvaziar de pequenos prazeres – só assim se consegue o tom de vida que eu gostaria de ter. Mas é exaustivo também. Eu gostaria de ter um aparelho matemático que pudesse ir marcando com absoluta justeza o momento em que eu progredi um milímetro ou regredi outro.
Minha impressão é a de que eu trabalho no vazio, e para não cair eu me agarro num pensamento e para não cair desse novo pensamento eu me agarro em outro.
Eu mesma vivo me levantando e caindo de novo e me levantando. Não sei qual é o bem disso; sei que é dessa forma confusa de vida que eu vivo.
Meu desejo mais obscuro era dar minha cabeça para alguém dirigir; que alguém me dissesse todos os dias: hoje faça isso, hoje corte isso, hoje aperfeiçoe isso, isto está bom, isto está ruim. Uma pessoa que quisesse “tomar minha direção” seria bem-vinda.
Nunca sei se quero descansar porque estou realmente cansada, ou se quero descansar para “desistir”.
Meu amor, no meio de tudo, tua existência me abençoa.
Não tenho feito nada propriamente, senão levado uma vida exteriormente calma e interiormente ocupada, se é que se chama assim.
Estou, desde o começo da carta, procurando vestir uma roupa mais decente, ou pelo menos não contar que hoje comi bife com cenoura e salada de tomate e depois pêssego e depois café. E eis senão quando, já disse!
Ontem fui comprar flores para enfeitar, e achei um lugar maravilhoso: é um jardim enorme, com um corredorzinho sombrio que leva a ele. Chega-se lá, entra-se numa casinha de teto de vidro e se diz: quero comprar flores. Então a mocinha com avental e meias compridas de algodão, pega numa tesourona e sai com a gente, mostra o jardim enorme e diz: quais? A gente escolhe: essas amarelas. Então ela corta da planta mesmo uma dúzia de flores amarelas, enrola no papel e dá. Não é bom?
Muitas histórias ela termina assim: ah, os homens, a senhora sabe... Finjo que sei, e talvez saiba mesmo.
Amor que os outros têm pela gente cria mais deveres do que o amor que a gente tem pelos outros.
Já há uns quinze dias que estou, sem interrupção, num paraíso de bom humor e de alegria de sol, de boa vontade. A boa vontade é um fator muito mais importante do que a gente pensa. A gente não muda um pouco de ponto de vista quanto às coisas porque tem medo de sair da própria pele e do próprio sistema. Mas às vezes basta resolver estar simples, e o milagre se realiza.
Será inútil dizer alguma mentira para mim, juro que sinto quando não é verdade. Quando não é verdade, absorvo a mentira mas fico ansiosa e sem base, sinto alguma coisa que me demonstra que não é verdade.
É naturalmente preciso e louvável que se queira corrigir nos filhos as próprias incorreções; mas é preciso não ultrapassar, porque se cairia em erro oposto.
Não somos nós que somos cruéis, a vida é que é, e nós somos os elementos vitais dessa vida, e não se chama crueldade viver a vida.
Junto de você, eu me sinto mais livre, e, de um modo largo e geral, perdoada. É sua própria pessoa que me perdoa, e não os seus atos.
As necessidades de uma vida não têm nada a ver com os deveres de uma vida. As necessidades são verdadeiras inspirações.
Você tem rido, querida, achado graça nas coisas, tido bom humor? Tem tido tempo moral de olhar um pouco ao redor, com um olhar tranquilo? Tem tido gosto em repousar vendo uma revista? Tem se dado presentes, tem feito favores a você mesma, tem tirado folgas?
Não sei nem como me perdoar a inconveniência de escrever. Mas já me baseei toda em escrever e se cortar este desejo, não ficará nada.
Por favor, querida, corte as preocupações inúteis, raciocine com clareza e veja que as coisas amolarão do mesmo modo, quer você se preocupe ou não.
O seu primeiro dever é estar bem, querida, acredite nisso, peço-lhe por tudo.
Como lhes disse, ele nasceu com grande cabeleira negra, fizeram chuca-chuca desde o primeiro momento. Os olhinhos são muito vivos, tem um choro muito forte, parece de um marreco chamando outros marrecos num rio.
Escrevi no mínimo umas 3 e rasguei-as porque pretendo “rasgar” também todo e qualquer sentimentalismo e deixar os outros em paz... Tentarei, por todos os meios – e que Deus me ajude nisso porque preciso – tentarei por todos os meios exigir menos amor e atenção dos outros, e também exigir menos que as pessoas se deixem amar.
Farei o possível para não amar demais as pessoas, sobretudo por causa das pessoas. Às vezes o amor que se dá pesa, quase como responsabilidade na pessoa que o recebe. Eu tenho essa tendência geral para exagerar, e resolvi tentar não exigir dos outros senão o mínimo. É uma forma de paz.
Em geral se pode ajudar muito mais as pessoas quando não se está cega pelo amor.
Tudo que consegui na vida foi à custa de ousadias, embora pequenas.
Deus me livre não gostar da Inglaterra, tenho que adorá-la, mesmo que para isso precise separá-la em duas: a Inglaterra de minhas dificuldades e a Inglaterra dos escritores que mais amo.
O pior, no estrangeiro, é que não posso adivinhar o que as pessoas são ou sentem ou pensam ou fazem. Tenho que ficar com a figura física de cada um.
Uma das coisas mais maravilhosas da vida é que o aprendizado é contínuo.
Em vários sentidos, a prevenção atrapalha... e com isto estou descobrindo a pólvora.
Não adianta se preocupar pois para cada problema existem muitas soluções.
Não acho que se deva pensar que se é formidável e que não se cansa os outros; claro que isso pode acontecer, e mutuamente, e sadiamente, pois faz parte do ser amigo ter também o direito de se irritar e de se chatear às vezes: quando isso nunca acontece é porque a pessoa não está à vontade.
Ter este sentimento, de cansar os outros, com muita frequência ou com muita intensidade, já é neurótico... E eu sei disso: sou mestra.
Um dia desses, ao comprar roupas para as crianças com Avany, esta me induziu a comprar um vestido de noite curto. Ainda sou tão pouco madura para a minha idade, que só compro coisas quando tenho a desculpa de que “fui mandada”. Mas, se Deus quiser, isso há de mudar.
Quando sou mandada, me sinto mal e revoltada..., esquecendo de que sou eu mesma quem cria a situação de ser mandada. Que complicação!
Paulinho está muito engraçado e sem-vergonha, com probleminhas de ir para a escola. Hoje, à porta da escola, começou a vomitar, e trouxe ele de volta. Filhos, hein!
Paulinho me perguntou que é que eu faria se Deus tivesse me dado, em vez de boys, uma árvore... Achei que seria provavelmente mais fácil.
A verdade é que não consigo me concentrar. E o dia se passa, partido em mil coisas vagas ou concretas, mas partido.
Já me parece sinceramente não pertencer mais a nenhum lugar, tenho medo disso.
Vamos deixar o futuro ao futuro.
Então, eu, que sempre evito me colocar em situação de poder ser rejeitada, fiquei mais corajosa e, sob a sugestão de minha professora de inglês (nós só conversamos, não estudo nada...), mandei um conto para outra revista. E a revista não gostou nem aceitou. Acho que estou ligeiramente mais forte.