Berna é linda e calma, vida cara e gente feia; com a falta de carne, com o peixe, queijo, leite, gente neutra, termino mesmo dando um grito e comendo o primeiro boi de alma doente que eu encontrar; falta demônio na cidade.
Talvez estejam me achando excessiva, não faz mal, corro o risco.
Eu quase tenho vergonha de dizer que as pirâmides são assustadoras, principalmente de noite, sem luar, e que a esfinge me impressionou. Mando a fotografia – a fotografia é muito mais nítida e mais bela que o original; com a fotografia tem-se imediatamente uma sensação que diante da esfinge é mais lenta e mais difícil.
Como é que você me pergunta o que eu faço às três horas da tarde? Ou já falamos sobre isso? às três horas da tarde sou a mulher mais exigente do mundo. Fico às vezes reduzida ao essencial, quer dizer, só meu coração bate.
Por estranho que pareça, estou estudando cálculo das probabilidades. Não só porque o abstrato cada vez mais me interessa, como porque eu posso renovar minha incompreensão e concretizar minhas dificuldades gerais.
Digo a mim mesma: não adianta desesperar, desesperar é mais fácil ainda que trabalhar.
Dei um ar de tristeza? não, dei um ar de alegria.
Tem dias que me deito às 3 da tarde e acordo às 6 para em seguida ir para o divã e fechar os olhos até as 7 que é hora de jantar. Isso tudo não é bonito. Sei que é horrível. Caí inteiramente e não vejo um começo sequer de alguma coisa nascendo.
Não sei aprender ainda a desistir e tenho medo de desistir e me entregar porque não sei o que virá daí.
Até agora eu mesma me ergui sempre mas é um esforço muito grande e naturalmente estou bem cansada. Esta vida íntima que chega a um ponto de não ter nenhum sinal exterior, termina por me tirar a direção e o sentido das coisas. Me parece que cheguei a um ponto de onde não posso mais sair.
Não quero empregar grandes palavras, mas isso é insuportável e eu tenho suportado segundo por segundo.
Estou cheia de problemas e cada dia um deles entra em estado de crise, sem socorro. Interrompi mesmo o trabalho, minha impressão é de que é para sempre.
Ia me fazer muito bem abrir afinal meu coração e mostrar afinal a alguém que fechasse os olhos e não ouvisse, que horror se pode guardar numa pessoa.
A solidão de que sempre precisei é ao mesmo tempo inteiramente insuportável.
O que importa é que fiquei como estou agora, bem na primavera.
De repente me pareceu que eu devo continuar a trabalhar, que tudo está ruim, mas que é assim mesmo, que as coisas são desconhecidas até que rebentam numa conhecida.
A pessoa está só no mundo de modo que deve tomar certas providências urgentes de silêncio e meditação.
De vez em quando a gente pode receber este presente gratuito que é a palavra amiga de um amigo.
Mando depressa este momento de felicidade para você, e espero que ele vá incendiando papéis e ervas por onde passar.
Esse estado de graça é apenas uma alegria que não devo a ninguém, nem a mim, uma coisa que sucede como se me tivessem mostrado a outra face.
Talvez seja orgulho querer escrever, você às vezes não sente que é? A gente deveria se contentar em ver, às vezes.
Acho que sou tão seca que corto o movimento das pessoas. E só quem é assim é que pode compreender como é ruim ser assim.
Estou aqui em pleno outono, e apesar de ser outono, apenas por ser “pleno”, tem o mesmo fulgor de primavera plena, de inverno pleno – a impressão que dá é que alguma coisa está madura.
Digo adeus, que é rima pobre e nua, mas, ai de nós, absoluta.
Já dei vários nomes à fera, mas cada vez que dou um nome ela sacode os ombros de cobra e diz muito budista: que importa.
Penso, com muita estranheza aliás, que talvez a vida seja a morte e quando a gente morre, acorda e vive, com medo de morrer, quer dizer, de tornar a viver.
Cessei de me interrogar sobre se estou ou não contente de viver na Suíça. Cheguei à conclusão que não importa. Agora não sei lhe explicar se não importa viver aqui ou ali, ou se não importa estar ou não contente.
Acho que estou dispensada de falar de Washington – felizmente vocês conhecem, e assim não preciso tentar tornar concreta essa cidade vaga e inorgânica. É bonita, segundo várias leis de beleza que não são as minhas. Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas enfim, a cidade não é minha.
Como você vê, estou num dia tão pacífico que poderia estar escrevendo de um curral, com perdão pela palavra implícita.
E o tempo se conta mesmo em anos. Deus me livre se fosse em dias.
Sempre quis “jogar alto”, mas parece que estou aprendendo que o jogo alto está numa vida diária pequena, em que uma pessoa se arrisca muito mais profundamente, com ameaças maiores.
Parece que estou perdendo um sentimento de grandeza que não veio nunca de livros nem de influência de pessoas, uma coisa muito minha e que desde pequena deu a tudo, aos meus olhos, uma verdade que não vejo mais com tanta frequência.
Quanto às leituras, variadas, provavelmente erradas, a mais certa é a Imitação de Cristo, mas é muito difícil imitá-Lo, e isso é menos óbvio do que parece.
Sou tão preguiçosa que choro à ideia de estar tendo trabalho destinado à cesta.
Sinto falta de você que sabe dizer coisas tão boas que animam e põe a pessoa de novo no centro das coisas.
Não é por vaidade de rosto que não gosto que me vejam de olhos vermelhos, é por uma vaidade que, por ser menos frívola, é muito mais pecado: é por orgulho ou altivez ou seja lá o que for – enfim, vaidade mais grave.
Maury diz que eu costumo ter reações pessoais a coisas chamadas “de praxe”.
Eu seria capaz de pedir sinceramente a alguém que não apanhasse minha luva caída no chão para não amolar esse alguém, sem entender que incômodo é não apanhá-la, que incômodo é não fazer o que é “de praxe”. (O exemplo da luva é só pra exagerar, até que deixo apanharem minhas luvas, senão perderia todas.)
Não tenho nada o que dizer. Acho que é assim que pouco a pouco os velhos honestos terminam por não dizer nada.
Não tendo absolutamente nada o que dizer, dá uma vontade enorme de dizer. O quê? Quando não tenho o que dizer, fico com vontade de “passar a limpo” tudo ou então de “apagar tudo” e recomeçar, recomeçar a não ter o que dizer.
Então viro criança e minha vontade seria depender inteiramente de outra pessoa e esperar dela todos os ensinamentos. Ou então viro mãe e me preparo toda para dizer grave: as coisas são assim e assim, meu filho.
Por não ter absolutamente nada o que dizer, até livro já escrevi.
Aquele jogo que você certamente já brincou um dia: o jogo de “vamos ver quem pisca antes”, quem aguenta mais tempo ficar com os olhos bem abertos. Quem piscar é castigado. Humildemente, informo que sempre pisquei antes, tenho longo passado a piscar.
Este é um ghost chamado Clarice escrevendo para você.
Esperas que fazem mal, me atrapalham, fazem de mim uma impaciente.
Minha vontade de me livrar das coisas é quase doença.
Minha vontade seria mesmo viver em estado conceituoso, é tão mais calmo, dorme-se tão melhor.
Meditar comigo é sempre uma coisa esporádica, além do que tenho que vencer minhas próprias teimosias.
Meditação é coisa que me deixa com olheiras e com frio – e é neste estado que estou escrevendo a você agora.
Cada um de nós oferece sua vida a uma impossibilidade.
A impossibilidade está mais perto de nossos dedos que nós mesmos. Pois a realidade pertence a Deus.
Temos um corpo e uma alma e um querer e nossos filhos – e no entanto o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós.
Pensamentos que mal se formam, e perdem a forma como a figura de uma nuvem. Embora essa formação e desmanchamento sejam o próprio modo tosco como avançamos.
Tão inescapável é a lentidão de nosso formar e desmanchar que o próprio prazer nisso nos dá a graça.
Tão lentos somos no avançar que só a impaciência do desejo nos deu a ilusão de que o tempo de uma vida é bastante.
A concretização de uma pessoa é muito difícil. Mas não irrealizável.
O avanço consiste em criar o que já existe. E em acrescentar ao que existe, algo a mais: a imaterial adição de si mesmo.
Sem servir há pouco a fazer. Nem sequer foi inventado gozo maior que esse. Só os tolos se furtam a se consumir.
O que não existe é inteiramente diverso da impossibilidade.
Ao sentir o agonizante arrebatamento de uma manhã que nasce ocorreu-me em agonia de amor que a impossibilidade é como se se quisesse atingir o que no entanto seria possível – se ao menos fôssemos outros. E o mais estranho – meditei olhando a enorme folha quieta no chão – é que somos os outros de nós mesmos. Só que – jamais, jamais, jamais.
Quando escrevo uma coisa, vou me desgostando dela aos poucos, mas com alguma rapidez, e se não é logo publicada, minha vontade é não publicá-la mais, ou então, quando é publicada, sinto apenas mal-estar.
Uma coisa escrita e não publicada me dá muita frustração, sinto como moça que faz enxoval de casamento e guarda num baú. Antes casar mal que não casar, é horrível ver enxoval amarelecendo.
Eu não queria que fosse tão assim, tão rolando para a salvação ou para a perdição, e tudo por questão de pendurar-se um segundo a mais ou a menos num minuto, tudo às vezes questão de mão recusada ou dada, tudo às vezes por causa de um passo a mais ou a menos.
Eu queria que você tivesse sido mais poupado, que não fosse a pessoa que atravessou a rua perigosa – mesmo que tenha chegado a salvo do outro lado.
Ainda me sinto tão longe da maturidade que nem posso falar de “adolescência”, só posso dizer que parei na infância.
Minha esperança ou é inexistente ou forte demais – esperança forte demais é “infantil”.
“Orgulho em ser humilde” é completamente diferente de “orgulho por conseguir ser humilde”. Este último orgulho é uma das alegrias a que a gente tem direito, não é?