PONTUAÇÕES
por Roberto Corrêa dos Santos
I
Este livro dá prosseguimento ao trabalho anterior realizado para fins de curadoria das frases de Clarice e colhidas em parte significativa de sua obra; de tal empenho emergiu o As palavras, publicado em 2013, também pela Editora Rocco. Indo aos livros não vistos antes [Laços de família (1ª ed; 1960), Felicidade clandestina (1ª ed; 1971); Minhas queridas (1ª ed; 2007); Cartas perto do coração/Fernando Sabino, Clarice Lispector (1ª ed; 2001); O lustre (1ª ed; 1946); A cidade sitiada (1ª ed; 1949); A maçã no escuro (1ª ed; 1961)] fez-se O tempo, este exemplar sublime em suas mãos, leitor.
Como lá, em As palavras, tomou o curador a delicada tarefa como um ato de curadoria de artista, ou seja, tratar o livro, e bem um livro de tal natureza de existência e força, como um campo expositivo, isso tanto para As palavras, quanto para O tempo: em ambos, tudo se passa para além da expressão e do expressar, pois se situa o dizer, em escrita clariciana, como espécies raras de fazer emergir nas páginas aquele estado mágico e artístico de engravidamentos de sensações e saberes, sensações e saberes matéricos e imatéricos a um só instante.
Cortar por amor como ato de leitura solene foi o método – disse o curador isso antes, em As palavras – a norteá-lo, mantendo-se leal à delicadeza de alma que Clarice firma em sua diferida e ardente escritura; aqui pois: mais que frases, mais que enunciados, mais que pensares: aparições.
A soberania – verbal, plástica, afetiva, filosófica, poética e artística – de Clarice redeclara-se com grande rigor em O tempo: quase não há neste livro como apagar o fato de que a intensiva propriedade verbo-gestual do escrever mantém-se arduamente cosida à vida da mente e dos afetos (variáveis, móveis, oximóricos) pertencentes agudamente às figuras das narrativas, figuras ficcionais – personas, máscaras de vivências, jamais antes presentes de semelhante modo em pensamentos, marcas e gestos na literatura feita no Brasil ou mesmo fora dele. Os dizeres das personagens são admiráveis obras de arte contemporâneas, contemporâneas especialmente pelo fulgor extemporâneo que atingem; também em O tempo, inquietudes, avisos, paixão: viver, pensar, sentir, e os tantos sensos pós-humanos seus.
Decidiu o curador (a) por ter as frases iniciadas sempre por maiúscula, encerrando-se por ponto final, desde que interrompidas em seu todo discursivo; (b) por eliminar o parêntese em frases parentéticas que não foram integralmente postas.
O curador de O tempo não saberia bem responder sobre a dificuldade específica de curar esta edição; o curador não saberia como nomear o que se deu ao morder A maçã no escuro, ao tombar de O lustre – livros por demais raros e audazes e difíceis: verdadeiras armas de guerra, nenhuma brandura, exigentes rigores; as sentenças – constituídas por fluxos e belezas nascidos menos da literatura e mais dos motores da sensação e dos instrumentos de filtragem dos afetos fortes, bravos, quase brutais – um fervor de ideias sobre ideias, de imagens sobre imagens, de fúrias sobre fúrias, um incêndio verbal sem tamanho, e assim, para quem lê o gozo totalmente gozo.
Vale outra vez lembrar que Clarice descreveu, em sonho premonitório (tal se encontra em As palavras), os atos exercidos hoje na Web, valendo-se de ditos não seus, mas postos como se a ela pertencentes. Em 1974, narra: “Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo o meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa e elétrica e cansada que quebrei um copo.”
Em O tempo, a alta Clarice vai além de todo espanto, além de toda beleza: atinge o inatingível – o sobre-humano; em O tempo mais provas de. E agora provas do abissal, meios de alargar-se. Ousemos.
II
E ainda: O tempo
Desfaz as ideias de intimismo, de eu, de indivíduo, de identidade, pois consistem em modos unitários de existência e, assim, tendem a enfraquecer tanto a saúde da vida quanto a saúde da arte, da arte da letra e da arte em geral.
Monta-se de estados frasais irradiantes, e do arranjo desses estados gera-se sua diversa e sutil e esplendorosa sabedoria artística composta de silêncios e, subitamente, de gritos e iluminações.
Opera com uma atitude discursiva outra, capaz de construir surtos das imagens a se expandirem por meio de recursos provindos do como se (princípio do comportamento do fictício), da alusão (princípio do movimento do repetir e repetir até gerar-se o impossível definir de algo, senão pela diferença que o repetir acaba por gestar) e da tautologia (princípio de algo só se reconhecer em sua redundância congênita: isto é isto).
Diz por toda parte seu grande sim a amar, seu grande sim a ser amada; e tal liga-se a afetos como entrega, alegria, comunhão, sabendo sempre, entretanto, proteger-se do que chama de a mão indelicada do amor, mão também ao amor pertencente em seu avesso.
Dedica-se ao experimentar, o que significa valer-se do exato trunfo do desconhecer, do não saber, do ampliar-se acatando as tantas validades existenciais dos riscos.
Propõe mais do que olhar de frente: ir para o dentro-fora do que, reduzida a luz, bem permite abocanhar o que ela nomeia de neutro, plasma, coisa.
Desfaz-se a toda hora do ‘estilo’; o estilo só lhe interessaria se visto com traço capaz de anunciar uma marca inscrita a fogo nas regiões secretas de uma arte e de uma existência.
Age conclamando inteligências verbais que à escrita mesma surpreendam por sua radical capacidade de abrigar, unidas, forças filosóficas, poéticas, plásticas, existenciais – políticas.
Traz à vista seu processo, processo a compor-se da potência intuitiva e conceitual de produzir não por vontade de contar um caso, mas por valer-se do fato para que, simplesmente, naquele espaço de um-ir-quase-acontecendo, algo brote (justo a frase!): e espalhe na página o pensar ardente, grafado e vivo.
Pede do leitor maior atenção para as possibilidades não imediatas de um texto, incluindo aí os restos, as respirações, os tempos mudos e, também, maior escuta das diferentes espécies de silêncio que articulam de um só golpe palavras e afetos, fazendo com que corpos (o corpo de quem diz e o corpo de quem no escutar se encontra) se unam, e se atritem: e cresçam juntos.