Mia chegou ao topo do penhasco e pôs as mãos nos quadris para tomar fôlego. O suor escorreu por entre os seios e no cós do short e a fez agradecer pela brisa que soprava do mar.
Noah estava sentado à sombra de uma grande pedra de granito, os joelhos dobrados contra o peito. Ela sabia que ele estaria ali. A solitária vista para o mar chamava-o diariamente ao topo do penhasco para contemplar as ondas que arrebentavam lá embaixo. Ele não se virou quando ouviu os passos atrás nem quando ela se abaixou ao lado e se encostou na parede de pedra fria.
Ela tirou uma garrafa de água e um sanduíche da bolsa de lona pendurada ao ombro.
– Achei que você devia estar com fome.
– Obrigado – ele disse, pegando a garrafa e o sanduíche. Eles se entreolharam rapidamente, mas ela notou os anéis ocos debaixo dos olhos dele. A barba de uma semana por fazer estendia-se ao longo da mandíbula e o corte na testa já estava cicatrizado debaixo de uma crosta amarronzada.
Depois do acidente no surfe três semanas antes, Noah se dirigira sozinho ao hospital, deixando uma mancha de sangue irregular no banco do motorista. O médico, que só o examinou depois que ele retornou com uma prova de que poderia pagar a conta final, explicou que ele tinha um corte agudo nos músculos do manguito rotador no ombro e uma laceração de sete centímetros e meio na parte superior do dorso que precisavam de pontos.
– Achei que você voltaria para o albergue. Como foi o check-up?
Ele continuou de olhos perdidos no mar, onde linhas de ondas suaves e vítreas ondulavam na superfície.
– O corte nas costas infeccionou.
Mia tinha visto o ferimento no dia anterior quando o ajudou a trocar de roupa. As bordas irregulares do ferimento estavam secas e rosadas, mas ela notou uma coloração esmaecida de carne no centro e temeu que estivesse começando uma infecção.
– Eles deram antibióticos pra você?
Ele assentiu com a cabeça.
– De qualquer forma, calculam que o dano muscular me deixará fora da água pelo menos por uns três meses. Talvez seis.
– Será muito menos tempo – ela prometeu, estendendo a mão e dando-lhe um aperto carinhoso.
Na manhã após o acidente, ela o tinha encontrado na praia de Nyang, lançando varetas nos rolamentos das ondas com o braço bom.
– Preciso saber – disse Mia, chegando mais perto de Noah, – por que você se coloca em perigo? – A imagem dele sendo engolfado pelas ondas era um tormento a cada noite. – Você podia ter morrido.
Noah olhou para ela, com uma expressão ilegível.
– Eu sei que poderia ter morrido.
Desde o acidente, ele passava a maior parte dos dias no alto do penhasco, observando solitariamente a arrebentação das ondas e ouvindo a algazarra e os gritos dos surfistas que surfavam ao longe. À noite aparecia no quarto dela, e fazia amor com desesperada urgência. Depois os dois ficavam deitados juntinhos sob o ventilador do teto, e mais tarde ele voltava para o próprio quarto e dormia sozinho.
– Fiquei pensando. – Ela forçou a voz para soar estimulante. – Poderíamos fazer alguma coisa diferente amanhã. Você disse que Ubud é lindo e eu adoraria visitar os templos e jardins de água. Poderíamos passar alguns dias lá, em algum albergue mais fresco. – Ela imaginava um lugar pequeno no sopé das montanhas, cercado por brilhantes plantas tropicais que perfumavam o ar. Longe do calor poeirento da cidade, o tiraria daquele estado. Fariam caminhadas matinais pela grama orvalhada e passariam as tardes na cama, fazendo amor e conversando pela noite adentro.
– Estou pensando em sair de Bali.
– O quê? – Uma pressão se expandiu pelo peito dela. – Por quê?
– Eu vim pra cá pra surfar.
– E eu vim pra cá pra ficar com você. – As palavras saíram antes que ela pudesse detê-las. Pensou por um momento em Finn e em tudo que sacrificara. A imagem dele era como um punho apertado em torno do coração. – E quanto a nós?
Noah tirou a mão de baixo de Mia, um gesto que aos olhos dela era maior do que parecia.
– Não sei – ele disse depois de alguns segundos. – Sinto muito. Não sei.
Para Mia, a felicidade era medida com uma régua dentada que passava nas reciprocidades que mantinham um com o outro. Já tinha lido alguns livros em que os personagens se descreviam como “aprisionados” pelo amor, e rejeitava o termo como melodramático. Mas agora não encontrava uma forma melhor para se descrever: estava aprisionada nos sentimentos intensos que nutria por Noah.
– Eu te amo. – As palavras escaparam sem querer e logo a fizeram ruborizar, as mãos trêmulas pelo peso do que acabara de declarar. Era a primeira vez que dizia essas palavras para um homem.
O silêncio inchou ao redor. Ela esperou ansiosa que ele dissesse alguma coisa.
Ele não disse nada. Ela ficou com os olhos marejados de lágrimas e olhou em direção a duas gaivotas que planavam nas correntes de ar, com a parte inferior das asas extremamente brancas.
Levantou-se e caminhou em direção à borda do penhasco para fugir do silêncio. A brisa bateu forte no rosto e ela apertou os olhos para protegê-los do sol e localizar as gaivotas que mergulhavam penhasco abaixo rumo ao mar, onde as ondas rolavam e cantarolavam. Invejou a liberdade das aves que podiam mergulhar do penhasco e sobrevoar à deriva pelo mar.
Mia deu um passo à frente e pôs os dedos do pé direito na borda. Era uma queda de uns 1.200 metros através de lajes de pedra enviesadas que aguardavam como lápides. A brisa enrolou um anel em volta dos dedos e ela levantou os braços como asas. Serenou acariciada pelo ar frio. O mar era atrativo e uma vertiginosa onda acenou à vista liquefeita e brilhante.
Noah apareceu de repente e pegou-a pelo braço, puxando-a para longe da borda.
– Que diabos está fazendo?
– Eu... Eu só estava... – ela gaguejou chocada consigo mesma.
– Você estava bem na borda!
– Eu só queria sentir a brisa.
Ele a soltou, deixando uma marca vermelha em torno do punho dela.
– Jesus, Mia, pensei que você fosse...
– Sinto muito. – As lágrimas picaram no fundo da garganta e ela desviou os olhos.
– Ei – ele disse, agora suavemente. – Está tudo bem. Eu exagerei.
Ele a enlaçou pela cintura e ela deu um passo em direção a ele. Foi tomada pelos braços e encostou o rosto no peito dele, enlaçando-o pela camiseta de algodão com braços firmes.
Ela ouviu o rufar feroz do coração dele e se deu conta de que não estavam mais abraçados: ela é que se agarrava.
* * *
Com a cabeça pesada, Mia caminhou ao longo do corredor em direção ao quarto. Noah não tinha dito em que data partiria nem tinha explicado em que pé as coisas ficariam entre eles. Mas por dentro, ela sabia que o romance estava terminando.
Abriu a porta e bateu de frente no calor estagnado do quarto. Esquecera-se de deixar a janela entreaberta e o sol incendiara tudo e cozinhava as partículas de poeira que pairavam no ar.
– Como é que vão as coisas?
Ela se virou na soleira da porta e se deparou com Jez, que se aproximava.
– Tudo bem – respondeu e entrou no quarto, ansiosa para ficar sozinha. Só queria se esticar na cama, fechar os olhos e dormir.
Jez a seguiu para dentro, com o tênis guinchando no piso de linóleo. Fazia quase duas semanas que ela não o via. Sabia que ele estava ali para pegar o dinheiro que ela estava devendo. Já tinha dado uma passada no banco no dia anterior e se surpreendera quando soube que o cheque especial estava no limite. Embora soubesse que as coisas ficariam apertadas depois do gasto extra com o voo para Bali, não sabia que as finanças ficariam tão precárias. O orçamento de viagem que elaborara com Finn incluía três meses de trabalho na Nova Zelândia, e agora isso estava fora da equação. Mia não fazia ideia de como poderia sobreviver.
Jogou a bolsa em cima da mesa e abriu a janela para o ar circular.
– Pegou um sol, hein – disse Jez encostado à parede, as mãos penduradas nos bolsos como um adolescente entediado. Os óculos escuros em cima da cabeça estavam com as lentes embaçadas de sal.
– Peguei?
– Nos ombros.
Ela olhou para o próprio ombro e o cutucou com a ponta do dedo, deixando uma marca branca por cima.
– Pegou uma praia?
– Não, acabei de voltar dos penhascos.
Claro que ele sabia o que a tinha levado até lá, mas não fez perguntas sobre o irmão. Em vez disso, disse:
– Vim te avisar que esta noite uma banda de reggae vai tocar no Loko’s. A galera toda vai. Quer ir?
A simples simpatia do convite desmontou-a. Ela não estava em clima de música alta e cervejas Bintang, mas também não queria quebrar aquela ponte recém-construída.
– Parece uma boa. Preciso ver como estarei me sentindo mais tarde.
– Se quiser ir com a gente, é só bater na minha porta. O show da banda é às onze.
Era uma visita inesperada, e quando ela olhou em volta havia roupas íntimas ao pé da cama e uma cartela de pílulas anticoncepcionais em cima da bolsinha de itens para higiene. Ergueu os olhos e Jez a observava. Ele esboçou um sorriso e desviou os olhos. Era imaginação ou estava mesmo nervoso?
– Noah esteve hoje no hospital para uma consulta.
– Certo. – Ele arrastou distraído o calcanhar do tênis no chão, fazendo um pequeno arco.
– O corte nas costas infeccionou. Os médicos acham que ele estará fora da água pelo menos por três meses.
Jez balançou a cabeça.
– Estou preocupada com ele. Parece, sei lá, deprimido.
– Tudo bem.
– Achei que você gostaria de saber... para ter uma conversa com ele ou coisa parecida.
Jez assumiu um ar zombeteiro.
– Talvez não tenha notado, mas não somos exatamente aquele tipo de irmãos que troca confidências sobre os próprios sentimentos.
– Por que você faz isso?
– Isso o quê?
– Age como se não desse a mínima para ele. Eu vi você na água, Jez. Você arriscou a vida por ele.
Ele a olhou com os mesmos olhos penetrantes e escuros de Noah.
– Eu não devia ter me incomodado.
– Você não quer dizer isso.
– Não?
– Ele é seu irmão.
– Você tem uma irmã?
– Tenho.
– Então, você deve conhecer um pouco sobre o amor e um pouco sobre o ódio.
Mia abriu a boca para falar, mas voltou a fechá-la. Jez estava certo: às vezes a linha entre os dois sentimentos é tão tênue que é difícil distinguir de que lado se está.
– Noah está pensando em sair de Bali – ela disse casualmente.
– Claro que ele está. Isso é o que ele sempre faz. Sempre foge quando não consegue lidar com alguma coisa.
– Ele está fugindo do quê?
– Ainda não se deu conta do quê?
Ela continuou esperando a resposta, olhando-o fixamente.
Mas ele não respondeu.
– Acho que vai querer seu passaporte de volta para ir atrás dele. Já tem o dinheiro que me deve?
– Ainda não.
– Olhe que já se passaram duas semanas.
– Estou sabendo.
– Não sou nem rico nem paciente. Preciso desse dinheiro.
Ela não se lembrava da quantia exata que ele havia pagado à polícia, e a pequena dúvida a fez perguntar:
– Quanto foi mesmo?
Ele contraiu a boca.
– Você sabe quanto. Dez milhões de rúpias.
– Vou precisar do passaporte para sacar essa quantia.
Ele desencostou da parede e atravessou o quarto. Parou a poucos centímetros de distância e só então ela notou que ele tinha os olhos mais estreitos que os de Noah e os cílios embranquecidos nas pontas pelo sol.
– Não me trate como um idiota – ele disse lentamente e apertando a boca em cada palavra dita. – Você não precisa de passaporte para sacar dinheiro vivo, Mia.
Ele girou como se para se retirar, mas se deteve ao lado da mesa onde estava a bolsa. Puxou de dentro a carteira.
– O que está fazendo?
Sacou um maço de notas e contou-as.
– Dois milhões de rúpias. – Enfiou o dinheiro no bolso. – Só faltam oito milhões.
– Isso é roubo!
– Não. É cobrança de dívida.
– Eu garanti que lhe pagaria. Você não pode sair pegando dinheiro na carteira dos outros.
– Obrigado pela lição de moral. Você também precisa de umazinha: se tratar o outro como idiota, ele vai agir como idiota. – Jez fechou a porta, soprando um beijinho pelo ar.
Mia olhou para a carteira aberta e esparramada na mesa. E de repente se deu conta da realidade da situação: estava sem dinheiro e sem passaporte; ou seja, era uma prisioneira naquele lugar... E Noah partiria em breve.
Comprimiu o dorso das mãos nas têmporas e tentou pensar. Não tinha como pagar a Jez e, mesmo que trabalhasse, precisaria de meses de trabalho com o salário de Bali para juntar o dinheiro que faltava. Não ousaria dar queixa do roubo ou da perda do passaporte porque a polícia já tinha informações sobre ela. Se contasse para Noah, teria que explicar por que não tinha falado antes sobre o suborno. Enfim, se envergonhava por todo o incidente e não fazia a menor ideia do que fazer.
Só restava pegar o diário e se chafurdar na cama. Abriu uma página em branco e passou os dedos por cima. Retirou a tampa da caneta com os dentes e começou a escrever...
Noah está indo embora. É insuportável pensar em perdê-lo, literalmente insuportável. Ele é infeliz, vejo isso, mas não faço a menor ideia de como posso ajudar. Ele não me deixa entrar dentro dele. Ele só fica na superfície.
Quando se for não haverá nada mais aqui para mim. Mas estou empacada. Só tenho cinquenta libras na mochila, só isso. Estou fodida. Estou literalmente fodida.